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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Um romance da alma uruguaia |
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I |
Embora seja dono de obra considerada um marco fundamental na literatura
uruguaia do século XX, Francisco (Paco) Espínola (1901-1973) continuava
inédito em outros idiomas. Esse estranho e inexplicável silêncio, porém,
acaba de ser rompido com a publicação de seu romance Sombras sobre a
terra (1933) pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, em tradução
de Erorci Santana, com texto de “orelhas” do crítico e poeta Ronaldo
Cagiano. Além de nota do editor, o livro traz prefácio do crítico uruguaio
Leonardo Garet, professor do Instituto de Estudos Superiores e do
Instituto de Filosofia, Ciências e Letras, de Montevidéu, e a reprodução
do prefácio da terceira edição, de 1966, publicad a pelo Centro dos
Estudantes de Direito de Montevidéu, escrito pelo crítico, historiador e
ensaísta uruguaio (nascido na Argentina) Alberto Zum Felde (1889-1976).
Garet deixa claro, em seu prefácio, que foi com dor que constatou que em
América Latina en su literatura (México, Siglo Veintiuno, 1972),
obra de quase 500 páginas coordenada por César Fernández Moreno que conta
com a participação de 27 colaboradores, adotada também no curso de Letras
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP), não há uma citação do nome de Espínola.
Só César Aira o reconhece em seu Diccionario de autores
latino-americanos (Buenos Aires, Emecé, 2001).
E, no entanto, Sombras sobre a terra não fica a dever a outros
romances paradigmáticos da literatura hispano-americana, como
Junta-cadáveres, do também uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994),
Os passos perdidos, do cubano Alejo Carpentier (1904-1980),
Pantaleão e as visitadoras, do peruano Mario Vargas Llosa, O
obscuro pássaro da noite, de José Donoso (1925-1996), e Trópico
enamorado, do boliviano Augusto Céspedes (1906-1997), outra obra nunca
publicada no Brasil, embora tenha o porto de Santos como um de seus
cenários.
O romance teve sua edição de estréia em 1933, em Montevidéu, e ganhou
segunda edição em 1939, em Buenos Aires. Seguiram-se mais uma edição em
1966 e outra em 2001 (Clásicos Uruguayos), que inclui vários estudos
preliminares, a propósito dos cem anos de nascimento do escritor. A edição
brasileira surge agora depois que o editor Nicodemos Sena “descobriu” na
livraria de alfarrábios El Galeón, na zona central de Montevidéu,
um exemplar de 1966, indicado por seu proprietário, Roberto Cataldo, para
quem naquele romance “está a alma uruguaia”.
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II |
Sombras sobre a noite, como se percebe pelo título, é um
daqueles romances ligados ao (sub)mundo noturno e seus notívagos, na
linhagem de Agonia da noite, de Jorge Amado (1912-2001) e outros
poucos na literatura brasileira. A exemplo de seus congêneres
hispano-americanos, aborda as relações humanas nas casas noturnas e nos
prostíbulos. O protagonista, de nome Juan Carlos, é um órfão de pai
assassinado e mãe vítima de tuberculose, que vive num imenso e solitário
casarão aos cuidados da negra Basília e cresce no Baixo, el Bajo,
como é conhecida a zona do baixo meretrício nas cidades latino-americanas,
em meio a prostitutas, cafetões e outros seres marginalizados. Foi num
prostíbulo que o jovem Juan Carlos encontrou refúgio e compreensão, além
de in iciar-se nas artes do amor.
Autobiográfico, o romance não tem, praticamente, um enredo que se possa
seguir de fio a pavio, mas é formado por episódios que antes constituem
flagrantes do modo de vida daqueles que transitam por aquele mundo às
avessas. As prostitutas, porém, são extremamente humanas e mesmo aqueles
que vivem do suor de suas mulheres no ofício que é considerado o mais
antigo do mundo não são apresentados como seres cruéis ou vis, mas como
“namorados” ou apenas “rapazes” enamorados de suas amantes.
Não se pense também que o leitor aqui irá encontrar cenas tórridas ou
eróticas. Pelo contrário. Haverá de perceber certo desencanto em cenas no
bar de um prostíbulo em que há sempre um cantante de tangos,
milongas e estilos (típica composição uruguaia para ser acompanhada ao
violão) a lamentar a fatalidade daquela vida à margem, um purgatório para
a entrada no paraíso que só virá com a morte. Por trás desse romance
poético, ainda que realista, perpassa, porém, um sentimento de
solidariedade com os menos favorecidos, os deserdados da terra.
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III |
Francisco Espínola nasceu, em San José de Mayo, a 4 de outubro
de 1901. Era, portanto, maragato, como todo aquele que nasce no pequeno
departamento de San José, que fica às margens do Rio da Prata e na área
metropolitana de Montevidéu. O termo maragato aqui também tem a ver com os
nossos maragatos, os sulistas que deram início à Revolução Federalista no
Rio Grande do Sul, em 1893, contra os chimangos, os legalistas. Eram
chamados de maragatos não só por causa do lenço vermelho que traziam ao
pescoço, mas porque vinham do exílio no Uruguai, exatamente na região de
San José, que fora colonizada por espanhóis procedentes da comarca
espanhola de Maragatería, na província de León.
Espínola nasceu no seio de uma família de tradição blanca, ou seja,
ligada ao Partido Blanco, de inspiração conservadora, cujo ideário,
aparentemente, seguiu pelo menos até 1962, quando se filiou ao Partido
Comunista Uruguaio. Foi professor e crítico literário e teatral. Combateu
a ditadura de Gabriel Terra (1873-1942), advogado que ocupou a presidência
da república uruguaia de 1931 e 1938. Alto dirigente do Partido Colorado,
igualmente de ideário conservador, Terra liderou um golpe de estado em
1933, com o apoio do exército. Durante seu governo, colocou na prisão
muitos adversários políticos, inclusive vários professores, como Espínola.
Preso em 1935, Espínola seria felicitado na prisão por algu ns de seus
algozes, que haviam tido a oportunidade de ler Sombras sobre a terra.
Sua estréia literária deu-se em 1926 com o livro de contos Raza ciega,
no qual o crítico uruguaio Alberto Zum Felde viu similitudes com Crime
e castigo, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Escreveu ainda
Saltoncito (1930), relato para crianças; El rapto y otros cuentos
(1950); Milón o el ser del circo (1954), ensaio sobre estética; e
Don Juan el Zorro (1968), três fragmentos de romance. Escreveu
também peças de teatro. Em 1961, foi distinguido com o Grande Prêmio
Nacional de Literatura do Ministério de Instrução Pública do Uruguai.
No artigo “El Bajo maragato cruza fronteras”, publicado no semanário
Busqueda, de Montevidéu, de 19 de fevereiro de 2015, a jornalista
Silvana Tanzi, a propósito da então presumível publicação do romance no
Brasil pela editora Letra Selvagem, traça um perfil de Espínola com a
ajuda de um artigo de Alfredo Mario Ferreiro (1899-1959), em que este
poeta dizia que o escritor fazia parte de uma geração que “vivia em ritmo
lento e podia passar horas conversando no boliche”. Segundo Ferreiro,
Espínola vestia-se sempre de preto com uma gravata e colarinho quebrado e
engomado, usado em camisas destinadas a trajes formais como o smoking.
“Dias houve em que Espínola falou pelo espaço de oito ou dez horas. E
parecia um minuto”, recordou Ferreira, que era seu amigo.
Espínola morreu durante a madrugada de 27 de julho de 1973, por
coincidência dia em que ocorreu o golpe de Estado liderado pelo presidente
Juan María Bordaberry (1928-2011), que instaurou um regime de exceção que
duraria até 28 de fevereiro de 1985. Naquela manhã, os uruguaios acordaram
ao som de marchas militares que eram tocadas nas emissoras de rádio,
prenunciando um período de muitas perseguições, torturas e assassinatos de
opositores à ditadura.
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Sombras
sobre a terra, de
Francisco Espínola, tradução de Erorci Santana, com prefácio de Leonardo
Garet, prólogo da terceira edição por Alberto Zum Felde, texto de
“orelhas” de Ronaldo Cagiano e nota do editor Nicodemos Sena. Taubaté:
Editora Letra Selvagem, 5ª edição (1ª em português), 360 págs., R$ 40,00,
2016. Site: www.letraselvagem@letraselvagem.com.br E-mail:
letraselvagem.com.br |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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