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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Um mergulho na cultura árabe |
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I |
Se para conhecer a São Petersburgo do século XIX, é
preciso ler Fiódor Dostoiévski (1821-1881), tal como para descobrir
detalhes do Rio de Janeiro do final daquele século é fundamental percorrer
os romances de Machado de Assis (1839-1908), daqui a cem anos, certamente,
para saber como era (ou é) a cidade de Brasília (e o Brasil) deste começo
de século XXI, será necessário ler Enigmas da Primavera (Rio de
Janeiro: Editora Record, 2015), o novo (e sexto) romance do diplomata João
Almino (1950). Trata-se da primeira obra de peso na literatura brasileira
que não só traz para as páginas da ficção os movimentos políticos dos
últimos anos, conforme observou o crítico Manuel da Costa Pinto (Folha
de S. Paulo, 16/10/2015), como incorpora na prosa as novas tecnologias
e formas de comunicação, como o e -mail, o iPhone, o iPad, o Facebook, o
WhatsApp e outras redes sociais.
A partir das chamadas Jornadas de Junho, que agitaram
as grandes cidades brasileiras em 2013, o autor cria um jovem personagem,
Majnun, neto de um antigo esquerdista, simpatizante da luta armada contra
a ditadura civil-militar (1964-1985), que, a exemplo daqueles que foram às
ruas, não sabe bem o que quer nem para onde ir. “Se não fosse a companhia
de seu laptop, de seu iPhone e de seu iPad, seu mundo não seria mais do
que uns poucos centímetros de chão de cimento rachado”, diz o narrador.
Com o pai morto por overdose de droga e a mãe, viciada e psicótica, sem
condições para assumir sua criação, os avós de Majnun seriam os seus
verdadeiros progenitores,
Apaixonado pela cultura muçulmana, Majnun sonha
abandonar a casa do avô e ganhar o mundo, indo de Brasília para Madri e,
em seguida, para Granada, à época do 15-M (15 de maio de 2011), movimento
de protesto que ganhou as ruas da capital espanhola, e da Primavera Árabe,
que marcou a queda de vários regimes ditatoriais no Oriente Médio.
Como um protagonista de romance picaresco, Majnun está
em vários lugares, vê o mundo de fora, mas acaba por não se integrar à
sociedade. “Aos 20 anos, ele era uma tela em branco”, diz o narrador. Não
tinha vocação para se tornar militante político, como fora seu avô. “Não
havia mais ditadura contra a qual lutar, e não era suficiente juntar-se à
mediocridade, agregar uma pequena peça na engrenagem, corrigir uma
injustiça aqui e outra ali, fazer um trabalho de formiguinha, tapar um
buraco, consertar um defeito. Sua avó Elvira fazia projetos para
prefeituras. Mas ele nunca conseguiria ser prático (...)”.
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II |
Encantado pelas fábulas e histórias do mundo
árabe e em busca de suas raízes, o protagonista do romance depara-se com o
paradoxo multissecular do fundamentalismo islâmico, que, em seus
primórdios, assumia a tolerância como comportamento ético, mas que, hoje,
dividido por facções radicais, faz da intolerância o seu lema. Por
isso, romântico, contraditório e imprevisível, Majnun encarnaria as
idiossincrasias da juventude dos dias de hoje. “Majnun é um jovem enfadado
com seu cotidiano, que busca preencher seu vazio nas redes sociais. Tem
todo um futuro pela frente, que, em vez de alimentar sua utopia, o faz
mergulhar inicialmente num pensamento antiutópico, já que flerta com a
volta a um passado que nunca vivenciou”, diz o narrador.
Dividido pela atração por três mulheres –
especialmente, Laila, casada, mais velha que ele quinze anos –, Majnun, “o
homem que amava demais”, envolve-se numa trama densa e sedutora, que atrai
do começo ao fim. E que ao mesmo tempo, não só consagra como mostra o
perfeito domínio que o ficcionista João Almino tem de seu ofício, ao
passar ao leitor uma reflexão sobre o atual estágio político do Brasil
deste século em que os jovens não vêem a saída nem o futuro e protestam
sem saber o que colocar no lugar daqueles que lhes causam repulsa porque
não encontram líderes confiáveis.
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III |
Não bastasse a erudição do autor, que, de fato,
preparou-se para escrever este romance, mergulhando no estudo da história
árabe e de sua influência na Espanha de ontem e de hoje, o livro traz
ainda um percuciente e esclarecedor prefácio de João Cezar de Castro
Rocha, que ajuda o leitor a conhecer os caminhos que o romancista
percorreu para construir a sua ficção neste livro labiríntico, ao mostrar
que a trama de Enigmas da Primavera “atualiza, ou seja, transforma,
a mais divulgada história de amor da literatura árabe, transmitida
oralmente e codificada, no século XII, pelo poeta persa Nizami – e, desde
então, reescrita um sem-fim de vezes”. De fato, como observa o
prefaciador, o protagonista do romance carrega o nome do personagem do
poema de Nizâmî ou Nizman ou Nezami Ganjavi (1141-1209), “Layla y Majnún”,
que t em um pequeno trecho reproduzido como epígrafe em tradução de Jordi
Quingles.
Como se sabe, “Laila e Majnun”, uma espécie de “Romeu e
Julieta”, de William Shakespeare (1564-1616), da literatura persa, é um
conto folclórico em versos e seu protagonista está associado a um homem
que, de fato, teria existido, Qays Ibn al-Mulawwah, que viveu,
provavelmente, na segunda metade do século VII d.C., no deserto de Najd,
na Península Árabe. Esse poema épico, dedicado ao rei Shirvanshah, com
cerca de 8 mil versos, em 1188, tornou-se tema de populares canções,
sonetos e odes de amor entre os beduínos ao longo dos séculos.
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IV |
João Almino, nascido em
Mossoró, Rio Grande do Norte, diplomata, é autor de seis romances. Fez
doutoramento em Paris, orientado pelo filósofo Claude Lefort (1924-2010),
ex-professor da Sorbonne, da École des Hautes Études en Sciences
Sociales e da Universidade de São Paulo (USP), que teve como tutor o
fenomenologista Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), cujas publicações
póstumas editou.
Almino ministrou aulas na Universidade Nacional
Autónoma do México (Unam), na Universidade de Stanford e na Universidade
de Chicago, nos Estados Unidos. Parte de sua obra está traduzida para o
inglês, o francês, o espanhol e o italiano, entre outras línguas. Tem
também escritos de história e filosofia política, que são referência para
os estudiosos do autoritarismo e da democracia.
Vencedor de prêmios como o Casa de las Américas de 2003
e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura de 2011, área de ficção,
entre outros, João Almino é autor ainda de Ideias para Onde Passar o
Fim do Mundo (1987), Samba-Enredo, (1994), As Cinco Estações
do Amor (2001), O Livro das Emoções (2008) e Cidade Livre
(2010).
Na área de não-ficção, incluem-se Os Democratas
Autoritários (1980), A Idade do Presente (1985), Era uma Vez
uma Constituinte (1985), O Segredo e a Informação (1986),
Brasil-EUA: Balanço Poético (1996), Literatura Brasileira e
Portuguesa Ano 2000, organizado com Arnaldo Saraiva (2000), Rio
Branco, a América do Sul e a Modernização do Brasil, organizado com
Carlos Henrique Cardim (2002), Naturezas Mortas – A Filosofia Política
do Ecologismo (2004), Escrita em Contraponto – Ensaios Literários
(2008) e O Diabrete Angélico e o Pavão: enredo e amor possíveis em Brás
Cubas (2009).
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Enigmas da
Primavera, de João Almino. Rio de Janeiro: Editora Record, 287
págs., 42 reais, 2015. E-mail: mdireto@record.com.br |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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