Anderson Braga Horta
O romance de Adelto

Anderson Braga Horta, mineiro de Carangola, poeta, ensaísta e crítico literário, formado em Direito pela Universidade do Brasil-RJ, vive em Brasília desde 1960. Foi diretor legislativo da Câmara dos Deputados e co-fundador da Associação Nacional de Escritores. É membro da Academia Brasiliense de Letras e da Academia de Letras do Brasil. Já conquistou 15 prêmios literários. É autor de Proclamações (Brasília, Editora Thesaurus, 2013), entre outros livros de uma vasta obra.

I

O professor Adelto Gonçalves é conhecido e enaltecido pelo exercício da crítica literária, função que desempenha com segurança, simpatia e estilo tanto nos modernos meios de comunicação virtual — importantes sites do País e do exterior, notadamente Portugal — quanto em órgãos da imprensa tradicional. A qualidade, a frequência e a intensidade desse trabalho, uma das mais louváveis exceções à tendência dos grandes periódicos, hoje, de eliminar a resenha crítica regular a cargo de profissionais “do ramo”, competentes e respeitados, fazem, por si sós, benemérita a pena do escritor.

A crítica registra e analisa a produção literária, atuando como fiel e guia do leitor e armazenando, para os historiadores e estudiosos do setor, informações sem as quais a pesquisa seria um perder-se na floresta, cada vez mais densa e intrincada, dos produtos e despejos editoriais. Sem a crítica restam a publicidade e a resenha expositiva, cumpridoras, é certo, de um papel respeitável, mas incapazes, por definição, de ir ao âmago da criação literária, em termos de técnica, de humanismo e de arte.

Além disso, é autor de ensaios literários, históricos e biográficos como, apenas exemplificando, os que dedicou a Bocage, Tomás Antônio Gonzaga e Fernando Pessoa, que lhe aumentaram a notoriedade e lhe granjearam justos prêmios.

Finalmente, sabemo-lo autor de narrativas ficcionais, como os contos de Mariela Morta (sua estréia, em 1977) e o romance Barcelona Brasileira, publicado em Lisboa, em 1999, e em São Paulo, em 2002. Quanto a mim, tomo conhecimento direto desta sua faceta de escritor apenas agora, com a recente publicação, por LetraSelvagem, da segunda edição de Os Vira-Latas da Madrugada. Tendo-o escrito no final da adolescência, refundiu-o em 1977-78, vindo essa versão a merecer destaque, dois anos depois, no Prêmio Nacional José Lins do Rego, da editora José Olympio, que o publicou em 1981.

II

A trama tem base na realidade, passando-se em Santos, num espaço fervilhante de vida e de miséria, entre o porto, o bairro Paquetá e o centro da cidade. Os personagens são — diz em nota o editor, Nicodemos Sena — “ex-sindicalistas, punguistas, jornaleiros, vendedores de jogo do bicho, catadores de restos que caem no transporte antes de chegar aos navios, mendigos, engraxates, cafetinas, cafetões, prostitutas e jovens aprendizes de todo tipo de expediente”; os “vira-latas”, diz o posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes, são os moleques do bairro.

E o tempo? Este, segundo o autor, “não existe, os acontecimentos se confundem, as datas são esquecidas”; não obstante, deve ser afastada a idéia de uma intemporalidade absoluta: a trama se desenvolve às vésperas do golpe militar de 1964, que lhe impõe um corte brusco, sem o recurso usual de um final definitivo.

Conforme detalha Ademir Demarchi nas orelhas, em que lhe traça ágil roteiro, há um plano de fundo fortemente político por trás do enredo, com personagens que rememoram a Coluna Prestes e a era Vargas, tomados em cena “no período pré-golpe”.

Desse grupo humano emergem com força figuras marcantes como o velho Marambaia, seu calejado “mestre”, e o jovem Pingola com sua explorada amante, a jovem prostituta Sula. Marambaia, legendário participante da Coluna, depois homem do mar e, nessa condição, capitão de motins em defesa de direitos dos marujos, é forte presença nessas páginas, com um halo de conselheiro e mentor. Pingola, seu protegido, malandrinho, mas aprendiz de estatuário, leva sua contradição até a página final, quando parece tomar consciência de sua condição subumana e apontar os olhos para uma meta.

O verdadeiro protagonista do romance, assim o sentimos, é a sua humanidade sofrida, recalcada em patamares de primitivismo socioeconômico. O livro estrutura-se em três “confissões”, palavras do eu-narrador que o comentam e definem, cada uma delas introduzindo uma de suas partes, culminando com uma “Última confissão”, sem sequência, espécie de brevíssima coda à guisa de “moral da história”. É interessante registrar como numa dessas confissões, a segunda, o romancista nos adianta uma das vertentes mais notórias do futuro crítico, o ensaio de fulcro histórico, ao discorrer sobre a origem e a etimologia do nome de batismo da região do Paquetá, com base nas anotações de Francisco Martins dos Santos, em sua História de Santos, de 1937; e, naturalmente, ao descrever o Paquetá de “hoje”.

III

Sobre quem leia o livro salteadamente, randomicamente — eu mesmo às vezes o faço, e isso é possível no caso, pois os capítulos de Os Vira-Latas da Madrugada soem ter um fechamento que lhes permite o folheio aleatório —, impende o risco de acabar pespegando-lhe o rótulo de niilismo, tal o acúmulo de desgraças e humilhações que relata. Se se detiver nas páginas que descrevem a animalesca fúria repressória e torturadora dos beleguins da quartelada, ou nas que pintam a loucura supostamente revolucionária do velho Marambaia, seguida de seu covarde assassínio, tal conclusão parecerá indiscutível: a mensagem seria de treva e desesperança.

Mas o capítulo do enterro do negro artesão, quando Plínio intui que Marambaia “aproveitara o dinheiro do jogo do bicho para dar ao pobre João de Angola um enterro decente”, antecipa conclusão bem diversa. Pois, “então, Plínio sentiu uma ternura imensa por Marambaia; nem tudo no mundo era mesquinharia”; e “de repente, ali, inclinado sobre os joelhos, descobria a solidariedade, a honestidade, a amizade, valores que pareciam mortos”. Outro momento luminoso é o que encerra o volume (antes da já comentada “confissão” final), com Pingola, após o sepultamento de Angola, que lhe ensinara a arte de esculpir em madeira, e o martírio de Marambaia, seu protetor, abraçando a companheira grávida:

“Amanhã, iremos embora desta merda de cais .... Vamos começar de novo. Ele vai precisar de um pai de quem possa ter orgulho”, diz, apontando com os olhos para a sombra do ventre inchado da mulher que se desenha na parede.

Valida-se, assim, em termos de fé — ou pelo menos de esperança — em nossa tumultuosa humanidade, este belo romance de Adelto Gonçalves, válido essencialmente, de resto, pelo vigor da narração e pela compassividade intrínseca do narrador.

   Brasília, 12 de novembro de 2015.

 

Os Vira-latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br  

Site: www.letraselvagem.com.br

Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br