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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Amilca Ismael e a escravidão no
século XXI
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I |
A escravidão é prática tão antiga
quanto a Humanidade. Mas, ao que tudo indica, foi na Roma Antiga
(723.aC.-476) que se estabeleceu o tráfico de seres humanos.
Os escravos se encarregavam apenas da produção das grandes fazendas
e de todo serviço nas obras públicas, inclusive nas arenas dos
gladiadores, mas, a princípio, não eram utilizados como mercadoria. Na
África, em muitos reinos, a escravidão sempre constituiu prática milenar,
mas o tráfico parece que foi implantado por viajantes europeus,
provavelmente romanos, que logo descobririam que também poderiam explorar
os atributos físicos de seus escravos.
Tanto séculos depois, essa prática
ainda é corrente não só nos lupanares requintados de Roma, Milão, Turim e
outras cidades italianas como é visível em suas ruas e avenidas. E não há
evidência de que, algum dia, venha a ter fim, apesar da retórica dos
governos que sempre anunciam medidas de repressão policial.
Para denunciar essa ignomínia, a
escritora moçambicana Amilca Ismael decidiu escrever o seu terceiro
romance, Efémera Liberdade (Lisboa, Labirinto de Letras, 2014). Escrito
originalmente em italiano (Effimera
Libertà) e lançado em 2014 pela editora Youcanprint, o romance ganhou
tradução de João Manuel Peres de Seixas e da própria autora, com revisão
de Adriana Barreiros.
O romance nasceu a partir da leitura
de uma reportagem de jornal que exaltava os esforços de uma equipe médica
para salvar uma jovem que fora abandonada de madrugada à porta de um
hospital, em Turim. Com lesões internas e hemorragia grave como resultado
de uma tentativa inábil de fazê-la abortar, a jovem morreu, sem que as
autoridades policiais soubessem sequer o seu nome. A partir daí, Amilca
imaginou a jovem, que seria Ruth Onwenu, africana, de 24 anos, a delirar e
lutar pela vida e com o seu passado numa mesa de operações, em estado de
semiconsciência.
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II |
O romance denuncia a mercantilização
da sexualidade feminina, ao recuperar a travessia que Ruth faz, saindo,
aos 14 anos de idade, de um país africano, vendida por seu pai a um
suposto protetor italiano, um tal de Presidente, que a levaria para Roma a
fim de que pudesse supostamente prosseguir os estudos. A princípio, ao
chegar, a jovem fica encantada com o que vê ao seu redor:
(...) É a casa onde ficarei hospedada e não consigo
acreditar. Não é apenas uma casa, é grande como um castelo mas é moderna:
sintaxe maravilhosa de paralelepípedos, janelas enormes sobre as quais o
telhado parece flutuar, casa de cristal, aquário de sereias. Num dia
passei de uma tabanca húmida em África para um castelo de vidro fora de
Milão. Querido Deus, serei eu, na verdade, uma Princesa Castanha? Olho
para a boneca e não me atrevo a ter resposta. Depois penso na minha mãe
que ficou sozinha na tabanca, na humidade que faz apodrecer os ossos,
devorada pelos mosquitos, ressequida, e não me capacito como pode o meu
destino ser tão diferente do seu. (...).
Obviamente, a jovem cai num circuito
de prostituição, onde é preparada por funcionários e funcionárias do tal
Presidente para frequentar ambientes sofisticados em que transitam
mulheres oriundas de regiões pobres de países da África, da Ásia e da
América Latina e homens endinheirados.
Ganha o nome de guerra de Princesa
Castanha, aprende a beber whisky
sem vomitar, a fumar cigarros de uma maneira “provocante”, a ter as unhas
bem cuidadas, a dançar valsas de Strauss, a ver filmes pornográficos sem
se envergonhar, a consumir drogas e, um dia, é conduzida num carro alemão
com assento de pele branca leitosa por um motorista particular e começa a
descobrir a realidade: em Turim, sua virgindade vai à leilão.
Começa assim uma carreira pecaminosa
que poderia ser igual à de tantas jovens do Terceiro Mundo atraídas para a
prostituição, não fosse o incidente – ou melhor, o crime – que a levaria à
morte. À beira da morte, ela ainda reflete:
(...) “Atrás de mim, de onde eu parti, surge
assustadora a África machista e polígama que me vendeu a Itália. O que é
que eu queria ser? Advogada? Médica? Queria ajudar as pessoas de minha
aldeia? Garantir educação, igualdade, bem-estar? Queria lutar pelos
direitos das mulheres do meu País e, portanto, pelos direitos de todas as
mulheres do mundo? Mas que proporção poderia existir entre uma menina de
catorze anos e o mundo? (...).
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III |
O romance é dedicado a Laura Prati,
sindaca (funcionária pública) de Cardano al Campo, cidade da
Lombardia, ao Norte da Itália, assassinada provavelmente por desafetos que
se irritavam com o seu trabalho em favor de jovens com trajetória e
destino semelhantes ao da
personagem Ruth. Depois da dedicatória, a título de complemento, há ainda
uma carta escrita pelo filho de Laura Prati, Massimo Poliseno, que, na
altura do assassinato, tinha 22 anos de idade.
Como se vê, embora seja um romance,
a obra tem muitos pontos de contato com a realidade, pois inspirado em
fatos verídicos. Em outras palavras: trata-se de uma denúncia e um alerta
para a situação das mulheres africanas (e não só africanas) atraídas para
Itália (e outros países ricos) com falsas promessas, mas que depois são
obrigadas a prostituir-se para sobreviver e sustentar máfias de
proxenetas.
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IV |
Amilca Ismael nasceu em Lourenço
Marques, atual Maputo, no dia 25 de junho de 1963 e mudou-se para a Itália
em 1986. Na Itália, depois de vários trabalhos ocasionais, decidiu voltar
à escola, tendo obtido em 2002 um diploma de assistente social e, em 2004,
o diploma de assistente de saúde. Técnica social e de saúde, trabalhou por
anos num lar de idosos, mas hoje a sua vida está dedicada às letras.
Sua estreia na literatura deu-se em
2008 com o romance A Casa de
Recordações (La casa dei
ricordi), publicado pela editora Ndjira (do Grupo Leya), de Maputo,
com mais de 2000 exemplares vendidos, 11 reimpressões e uma segunda
edição. O livro conta precisamente as recordações de uma mulher que vive
num lar de idosos.
Em dezembro de 2010, publicou o seu
segundo romance, Il raconto di Nadia
(A história de Nadia), que
conta o encontro num avião de duas moçambicanas, uma que mora na Itália e
outra residente em Portugal. No trajeto de Maputo para Lisboa, Nadia conta
a história da mãe em paralelo com a história de Moçambique no tempo
colonial. O livro deverá ganhar em breve edição em português.
Amilca Ismael já participou de
várias feiras internacionais, como a Expo América, em Nova York, a
Piú libri piú leberi, em Roma, a Feira Internacional do Livro de
Guadalajara, no México, a Feira Internacional do Livro de Frankfurt, a
Feira Internacional do Livro de Pequim, a Feira Internacional do Livro do
Cairo, e a Feira Internacional do Livro de Londres.
Em
outubro de 2010, recebeu, na Universidade da Suíça Italiana e de um júri
internacional o Prêmio da Mulher do Ano-Secção Social. Já conquistou
vários prêmios literários, como o Mulher Somente Mulher, dedicado ao Dia
Mundial da Não Violência contra as Mulheres, o Prêmio Musolona Solbiate
Olona Varese, na Itália, o Prêmio Europa, em Lugano, na Suíça, e o prêmio
especial para os Direitos Humanos, em Nápoles, entre outros. Faz parte do
Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora, de Lisboa, e é conselheira
da Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas, do
Brasil, entre outras entidades.
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Efémera
Liberdade, de Amilca Ismael, com
tradução de João Manuel Pereira de Seixas. Lisboa: Editora Labirinto
de Letras, 115 págs., 12 euros, 2014. E-mail:
correio@labirintodeletras.pt Site:
www.labirintodeletras.pt
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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