Adelto Gonçalves

Amilca Ismael e a escravidão no século XXI 

I

A escravidão é prática tão antiga quanto a Humanidade. Mas, ao que tudo indica, foi na Roma Antiga (723.aC.-476) que se estabeleceu o tráfico de seres humanos.  Os escravos se encarregavam apenas da produção das grandes fazendas e de todo serviço nas obras públicas, inclusive nas arenas dos gladiadores, mas, a princípio, não eram utilizados como mercadoria. Na África, em muitos reinos, a escravidão sempre constituiu prática milenar, mas o tráfico parece que foi implantado por viajantes europeus, provavelmente romanos, que logo descobririam que também poderiam explorar os atributos físicos de seus escravos.

Tanto séculos depois, essa prática ainda é corrente não só nos lupanares requintados de Roma, Milão, Turim e outras cidades italianas como é visível em suas ruas e avenidas. E não há evidência de que, algum dia, venha a ter fim, apesar da retórica dos governos que sempre anunciam medidas de repressão policial.

Para denunciar essa ignomínia, a escritora moçambicana Amilca Ismael decidiu escrever o seu terceiro romance, Efémera Liberdade (Lisboa, Labirinto de Letras, 2014). Escrito originalmente em italiano (Effimera Libertà) e lançado em 2014 pela editora Youcanprint, o romance ganhou tradução de João Manuel Peres de Seixas e da própria autora, com revisão de Adriana Barreiros.

O romance nasceu a partir da leitura de uma reportagem de jornal que exaltava os esforços de uma equipe médica para salvar uma jovem que fora abandonada de madrugada à porta de um hospital, em Turim. Com lesões internas e hemorragia grave como resultado de uma tentativa inábil de fazê-la abortar, a jovem morreu, sem que as autoridades policiais soubessem sequer o seu nome. A partir daí, Amilca imaginou a jovem, que seria Ruth Onwenu, africana, de 24 anos, a delirar e lutar pela vida e com o seu passado numa mesa de operações, em estado de semiconsciência.

II

O romance denuncia a mercantilização da sexualidade feminina, ao recuperar a travessia que Ruth faz, saindo, aos 14 anos de idade, de um país africano, vendida por seu pai a um suposto protetor italiano, um tal de Presidente, que a levaria para Roma a fim de que pudesse supostamente prosseguir os estudos. A princípio, ao chegar, a jovem fica encantada com o que vê ao seu redor:

(...) É a casa onde ficarei hospedada e não consigo acreditar. Não é apenas uma casa, é grande como um castelo mas é moderna: sintaxe maravilhosa de paralelepípedos, janelas enormes sobre as quais o telhado parece flutuar, casa de cristal, aquário de sereias. Num dia passei de uma tabanca húmida em África para um castelo de vidro fora de Milão. Querido Deus, serei eu, na verdade, uma Princesa Castanha? Olho para a boneca e não me atrevo a ter resposta. Depois penso na minha mãe que ficou sozinha na tabanca, na humidade que faz apodrecer os ossos, devorada pelos mosquitos, ressequida, e não me capacito como pode o meu destino ser tão diferente do seu. (...).

Obviamente, a jovem cai num circuito de prostituição, onde é preparada por funcionários e funcionárias do tal Presidente para frequentar ambientes sofisticados em que transitam mulheres oriundas de regiões pobres de países da África, da Ásia e da América Latina e homens endinheirados.

Ganha o nome de guerra de Princesa Castanha, aprende a beber whisky sem vomitar, a fumar cigarros de uma maneira “provocante”, a ter as unhas bem cuidadas, a dançar valsas de Strauss, a ver filmes pornográficos sem se envergonhar, a consumir drogas e, um dia, é conduzida num carro alemão com assento de pele branca leitosa por um motorista particular e começa a descobrir a realidade: em Turim, sua virgindade vai à leilão.

Começa assim uma carreira pecaminosa que poderia ser igual à de tantas jovens do Terceiro Mundo atraídas para a prostituição, não fosse o incidente – ou melhor, o crime – que a levaria à morte. À beira da morte, ela ainda reflete:

(...) “Atrás de mim, de onde eu parti, surge assustadora a África machista e polígama que me vendeu a Itália. O que é que eu queria ser? Advogada? Médica? Queria ajudar as pessoas de minha aldeia? Garantir educação, igualdade, bem-estar? Queria lutar pelos direitos das mulheres do meu País e, portanto, pelos direitos de todas as mulheres do mundo? Mas que proporção poderia existir entre uma menina de catorze anos e o mundo? (...).

III

O romance é dedicado a Laura Prati, sindaca (funcionária pública) de Cardano al Campo, cidade da Lombardia, ao Norte da Itália, assassinada provavelmente por desafetos que se irritavam com o seu trabalho em favor de jovens com trajetória e  destino semelhantes ao da personagem Ruth. Depois da dedicatória, a título de complemento, há ainda uma carta escrita pelo filho de Laura Prati, Massimo Poliseno, que, na altura do assassinato, tinha 22 anos de idade.

Como se vê, embora seja um romance, a obra tem muitos pontos de contato com a realidade, pois inspirado em fatos verídicos. Em outras palavras: trata-se de uma denúncia e um alerta para a situação das mulheres africanas (e não só africanas) atraídas para Itália (e outros países ricos) com falsas promessas, mas que depois são obrigadas a prostituir-se para sobreviver e sustentar máfias de proxenetas.

IV

Amilca Ismael nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, no dia 25 de junho de 1963 e mudou-se para a Itália em 1986. Na Itália, depois de vários trabalhos ocasionais, decidiu voltar à escola, tendo obtido em 2002 um diploma de assistente social e, em 2004, o diploma de assistente de saúde. Técnica social e de saúde, trabalhou por anos num lar de idosos, mas hoje a sua vida está dedicada às letras.

Sua estreia na literatura deu-se em 2008 com o romance A Casa de Recordações (La casa dei ricordi), publicado pela editora Ndjira (do Grupo Leya), de Maputo, com mais de 2000 exemplares vendidos, 11 reimpressões e uma segunda edição. O livro conta precisamente as recordações de uma mulher que vive num lar de idosos.

Em dezembro de 2010, publicou o seu segundo romance, Il raconto di Nadia (A história de Nadia), que conta o encontro num avião de duas moçambicanas, uma que mora na Itália e outra residente em Portugal. No trajeto de Maputo para Lisboa, Nadia conta a história da mãe em paralelo com a história de Moçambique no tempo colonial. O livro deverá ganhar em breve edição em português.

Amilca Ismael já participou de várias feiras internacionais, como a Expo América, em Nova York, a Piú libri piú leberi, em Roma, a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México, a Feira Internacional do Livro de Frankfurt, a Feira Internacional do Livro de Pequim, a Feira Internacional do Livro do Cairo, e a Feira Internacional do Livro de Londres.

 Em outubro de 2010, recebeu, na Universidade da Suíça Italiana e de um júri internacional o Prêmio da Mulher do Ano-Secção Social. Já conquistou vários prêmios literários, como o Mulher Somente Mulher, dedicado ao Dia Mundial da Não Violência contra as Mulheres, o Prêmio Musolona Solbiate Olona Varese, na Itália, o Prêmio Europa, em Lugano, na Suíça, e o prêmio especial para os Direitos Humanos, em Nápoles, entre outros. Faz parte do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora, de Lisboa, e é conselheira da Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas, do Brasil, entre outras entidades.                            

Efémera Liberdade, de Amilca Ismael, com tradução de João Manuel Pereira de Seixas.
Lisboa: Editora Labirinto de Letras, 115 págs., 12 euros, 2014.
E-mail: correio@labirintodeletras.pt
 Site: www.labirintodeletras.pt

Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br