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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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‘Os Vira-Latas da
Madrugada’, romance caiçara
Recolhes de excluídos sociais de uma
ribeirinha sociedade anônima Por Silas
Corrêa Leite |
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Silas Corrêa Leite
Poeta e autor de Goto, a Lenda
do Barqueiro Noturno do Rio Itararé (São Paulo, Editora Clube de Autores).
E-mail: poesilas@terra.com.br
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Blog: www.portas-lapsos.zip.net
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“O livro é uma máquina de
nos fazer levantar a cabeça”. Gonçalo M. Tavares
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I |
O
literato Adelto Gonçalves tem um currículo espetacular, em breves
palavras para tanto, assim se resumindo: jornalista, trabalhou no
Estadão,
Folha de S. Paulo, Editora
Abril e A Tribuna, de Santos.
Professor universitário, doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), autor dos livros
Os Vira-latas da Madrugada,
Prêmio José Lins do Rego, da José Olympio Editora;
Gonzaga, um Poeta do Iluminismo,
Barcelona Brasileira,
Bocage – o Perfil Perdido e
Tomás Antônio Gonzaga. Ganhou
em 1986 o Prêmio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portugal.
Foi professor universitário em Santos, na Universidade Paulista (Unip) e
na Universidade Santa Cecília (Unisanta).
Por
essas e outras, reler um romance dele escrito entre os seus 18 e 19 anos
de idade, já o sabendo um brilhante artista vencedor, a própria
primorosa reedição da obra Os
Vira-Latas Madrugada pela editora LetraSelvagem, de Taubaté-SP,
credencia e sela, por assim dizer, a sua consagração em alto estilo e
ainda reverbera toda a sua vida brilhante.
Pois o romance, por assim dizer
social, Os Vira-Latas da Madrugada
é um despojo observativo e narrativo de sua primeira fase de juventude
junto a um berço litorâneo do Porto de Santos, feito o livraço ser assim
uma bela espécie de cargueiro de letras, de palavras, de orações, de
parágrafos rasgados com sentenças de vida e de morte, e ele, no
embarcadouro do olhar já primoroso, tecendo velas ao verbo, às aventuras
narrativas com o vento todo (da imaginação e criatividade) em popa.. O
próprio autor, aliás, e a bem dizer, se sente evocado e retratado, no
belo poema de Ribeiro Couto (“A Infância em um Poema”), que quase também
o retrata fielmente e saudosista, e diz de seu espaço laborial com
sustância:
“Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques//Os pesados
carretões de café//Sacudiam as ruas, faziam tremer o meu berço//Cresci
junto do porto, vendo a azáfama dos embarques//O apito triste dos
cargueiros que partiam//Deixava longas ressonâncias na minha
rua//Brinquei de pegador entre vagões das docas,//Os grãos de café,
perdidos no lajedo//Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos//As
grades de ferro dos armazéns, fechados à noite//Faziam sonhar (tantas
mercadorias!)//E me ensinavam a poesia do comércio//Sou bem teu filho,
ó, cidade marítima//Tenho no sangue o instinto da partida//O amor dos
estrangeiros e das nações//Ó, não me esqueças nunca, ó, cidade
marítima//Que eu te trago comigo por todos os climas//E o cheiro do café
me dá tua presença.(...)// Ó minha infância, adeus, morreu toda a
inocência!//Entre imagens fiéis que habitam comigo//Caminho devagar para
a serenidade//Sede os meus anjos, imagens fiéis!//Vinde voar assim, com
cantigas de roda//Vinde bater as asas, anjos do meu tempo,//Vinde cantar
em voz velada ao meu ouvido//Para que com doçura eu recebe a morte
(...)//”
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II |
Tal poema
é quase uma primeira vertente introdutória do que é o norteamento do
romance Os Vira-Latas da Madrugada,
em rápidas pinceladas poéticas. E no livro estão registrados
ex-sindicalistas, punguistas, sonhadores, noiteadeiros, perdidos,
notívagos sem eira nem beira, jornaleiros, bicheiros, pés-rapados,
mendigos, cafetinas, negros, pardos, mulatos, caiçaras; vísceras expostas
de meio e chão. A tal marginália sociedade anônima aflorando no seu
romance de excluídos sociais, despossuídos. Os manés, os párias e mesmo as
sequelas sociais de seu recanto beira-mar.
Na verdade, alguns zés sem um porto
de chegada ou de partida, mas lugar fincado de tantos pobres atracados no
destino-azar, no desperdício de vida-escória, mais sequelas e arroubos, má
sorte lançando-os aos mares de sargaços... Sobreviver é impreciso? Nos
retalhos do pano de fundo da história toda, as manifestações de
borra-botas, de vira-latas e suas oportunidades perdidas, de direitos
vilipendiados, de violências de todos os naipes, mais o golpe ditatorial
se aflorando e rugindo naquele eito. A ditadura, o horror que os
desclassificaram como nódulos de veios da história desmistificada, porque
o que era para ser revolução (pátria, família, igreja) de araque foi o que
se viu depois, rotulada por Millôr Fernandes de “A Canalha de 64”.
E
Adelto Gonçalves pontua isso, pari-passu, leva e traz, e narra. Dando voz
a quase seres, subseres, rebotalhos de um tempo, de um canto, um lugar...
Um belo livro do ciclo da chamada “identidade portuária”, entre outros da
mesma lavra e safra, como Primórdios,
de Vicente de Carvalho, o Poeta
do Mar, Navios Iluminados
(romance, 1937), de Ranulpho Prata,
Cais de Santos (romance, 1939), de Alberto Leal,
Agonia na Noite (romance, 1956),
de Jorge Amado, Cais (poesia, 2002), de Alberto Martins,
A História dos Ossos (novela, 2005), de Alberto Martins, Santos
– Natureza e Arquitetura em Fotopoemas (haikais, 2011), de Regina
Alonso, Costa a Costa (poesia,
2012), de Ademir Demarchi, entre outros.
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III |
Desgraças,
lamúrias em doses etílicas, deserdados da má sorte e
perseguidos de becos, antros e guetos, mais cenários
pobres de biroscas, biscates, inocentes úteis, batucadas,
e a sobrevivência calça curta dentro do banzo e do curtume
do possível... Adelto Gonçalves escreve sobre ruínas
humanas... |
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“Tomei coragem e desci à rua e vi
quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do
sindicato desceram as escadarias, sob a mira de metralhadoras, e entraram
numa espécie de ‘corredor polonês’ aos tapas e pescoções em direção a um
caminhão coberto” – “Essa é uma história de muitas histórias e algumas
confissões” – “... signo do Novo Estado é esse navio-calabouço e limite,
cheirando a mijo e merda” – “Tristes são também os vagabundos e os
trabalhadores do cais (...) como tristes são os tempos que as tornaram (as
histórias) reais” – “E com o tempo, a gente também fica assim, quase um
morto” – “Desse Paquetá quero escrever, sem restrição, o que sei” – “Assim
contam os velhos manguaceiros do beira-cais que tudo sabem e vêem” – “Eu
me lembro, eu era menino, mas me lembro muito bem” – “As vozes que me
trouxeram até aqui já não ouço mais (...). Este irregular relato é só uma
homenagem a essas vozes que se calaram cansadas de testemunhar tanta
ignorância e violência”(...) – (Fragmentos sequenciais do romance)
Um arguto olhar crítico e sensível
(e privilegiado?) sobre as cinzas das horas, dos burburinhos decorrentes
no derredor alvoroçado, e os revoltos calados em terra de órfãos... os
ninguéns... O pré-golpe, o levante-golpe, e o pós-golpe, cenários vistos
pelos olhos de um jovem quase menino, mas ainda assim precoce, de atiçado
prisma, pronto para o embate do que seria o futural se desanuviando, se
deslanchando, nos finca-pés dessa canoa rodada que é a vida, às vezes sem
carta náutica (mas pirateando incompletudes)... às vezes sem mastro, sem
âncora, sem sextante ou bússola, mais dos sentidores, pensadores...
criadores...
E assim despontando o que é ficção,
invenção e mentira, diferenças e disparates. O próprio uso da literatura e
da ficção como fonte de conhecimento histórico, e da própria literatura
como forma de conhecimento sobre a vida e suas erranças e errações, a alma
humana, o mundo particularizado no microespaço (a urbanidade vira-latas),
mas entrelaçado com o macroespaço que retrata e beira o humano dessa
“humana” civilização. Civilização?
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Os Vira-Latas da Madrugada,
de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman e posfácio de Maria
Angélica Guimarães Lopes, ilustrações e capa de Enio Squeff.. Taubaté-SP:
Associação Cultural LetraSelvagem, 216 págs., 2015, R$
35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
Site: www.letraselvagem.com.br
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IV |
Em
Adelto Gonçalves, como muito bem disse Antonio Cândido, “a literatura pode
contribuir para o processo de humanização ou de confirmação da humanidade
dos indivíduos, dá voz aos excluídos que personifica na obra, retrata-os
com fidelidade e características”. Revela-os com magnitude na precariedade
desses tipos com seus achismos e sentimentalismos de momentos e ações,
dentro da música de suas exclusões, preservando o espetáculo de cada ser,
cada personagem, a descida ao inferno da mesmice, mais sexo, droga,
boemia, malquerenças, e a bizarra e ordinária sobrevivência sem eira nem
beira, que não seja aquele pedaço de zona litorânea em que, mesmo assim,
os pobretões literalmente ficam a ver navios...
Tudo isso com requinte ora de
realismo, ora de piedade, mais a solidão-cadáver de cada personagem tirado
a golpe de olhar da perdição do anonimato absoluto. E nessas conotações,
embarcam fantasmas, atracam aproveitadores, mais tarefeiros de achaques,
furtos, perdições, ilusões perdidas (são tantas as ilusões perdidas), a
quem belamente e com vigor e densidade narrativa o autor denomina,
esplende do nada, dá nome, configura, enreda ramalhete de palavras, e cada
um tem seu desdizer, sua sentição, feito um estado de lástima e lamúria
posto em primeiro plano no emergente da escrita.
Sim, escrever é tocar as cascas da vida de alto a baixo, das crostas
urbanas às placas de contemplação, das cargas de profundidade às
profundezas de lamas e de vazios existenciais, do baixio chão ao alto
escalão de patentes, poses, golpes e insurreições suspeitas. Porque se um
dia tudo será memória, o livro registra os pedregulhos sujos de algum cais
como extrato da vida perpassada a limpo do limbo, e insurgida em prosa
rica de verdade real. A carne mais barata do mercado das pulgas ainda é a
dos pobres, a ralé. A grossa massa de manobra (peixes pequenos entre
tubarões) à maré de seus ensimesmamentos, porque nossa sociedade está
imersa num magnetismo que transborda alucinação, às vezes caçando os
vampiros que não necessitam de sangue, até porque somos feitos de horas
impróprias, de horas vagas, de filosofias sobrevivenciais, cada um com seu
casulo, sua chiqueza, sua escureza, sua rebeldia sem casca... Ou nos
livramos de nós, ou nos enlivramos de nós por nós mesmos?
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V |
Adelto Gonçalves, logo nessa sua já
passada e brilhante estreia, hoje revisitada com consagração literária,
com talento logo se encara de dar nome aos excluídos na crueldade da
história; logo se atiça de dar formato, composição personalística e
ramificações que tendem a aludir a ciscos e sítios literais contundentes
de Plinio Marcos ou até a alguns nuances severos de Jean Genet, tristices,
horrores, finitudes, afinidades, ambições, mortes, assassinatos,
desmoralizações, cerrações. Desesperos encruados e parcas esperanças
saindo pelo ladrão, nesse romance que é, sim, um romance de caiçaras da
periferia da sociedade anônima tendo voz, tendo dor, tendo foco, sujeitos
de si mesmos. Somos todos cheios de pose e com pinta de pedigree, mas,
afinal, curto e grosso, somos mesmo todos (os maiores e melhores criadores
também e por isso mesmo) pescadores de sargaços?
Adelto Gonçalves escreveu um
clássico com a cara e a coragem de captar arestas e essências de
desgarramentos humanos, dentro do ciclo atribulado do humanus e do núcleo
de abandono do humano lambendo feridas nas paredes das memórias...
Talvez, quem sabe, sejamos todos
sargaços também, varando madrugadas de nós mesmos, retratados no pacote
incompleto de outrem, quaisquer alguns; nas perdições arrependidas, na
cópia assentada, no espelho da interatividade existencial.
O romance
Os Vira-Latas da Madrugada é o
tenebroso sal da terra que iça velas e a tromba do motor de um braço de
mar revolto que ruge.
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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