Relatos da vida dura (*)
Por Ademir Demarchi

Ademir Demarchi é poeta e crítico, editor da revista Babel Poética, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).

Os vira-latas da madrugada se passa às margens do cais santista com personagens que fazem rememorações da época do tenentismo da Coluna Prestes, passam pela Época Vargas e chegam até o período pré-golpe de 1964. Por esse dado já se poderia esperar que o Porto de Santos e sua intensa vida sindical fossem os personagens principais.

Há um forte fundo político neste romance, no entanto o autor coloca o Porto e a vida sindical no entorno e põe à frente da cena personagens que vivem entre o bairro Paquetá e zona de prostituição nas proximidades do Centro. Trata-se de uma região decadente, até hoje, tal como é a vida das pessoas retratadas, que compreendem ex-sindicalistas, moídos no cacete repressivo, punguistas, jornaleiros, vendedores de jogo de bicho, catadores de restos que caem no transporte antes de chegar aos navios, mendigos, engraxates, prostitutas e jovens aprendizes de todo tipo de sobrevivência.

A narração, assim, vai para as rebarbas do Porto e mostra a vida e o que pensam esses personagens. Marambaia destaca-se percorrendo todo o livro. Agora um velho decadente vendedor de apostas do jogo do bicho, que atuara na Coluna Prestes, militante comunista em viagem à União Soviética, sindicalista e ativo grevista, com numerosas prisões e cacetes levados da repressão. Seu percurso dá o tom do romance, indo da juventude encantada com a revolução até acabar-se com a loucura foquista de tacar fogo num bonde e invadir o Paço Municipal, anunciando a Revolução.

À sua volta convive uma penca de marginais, ladrõezinhos que dão título ao livro, os vira-latas da madrugada; gente como o negro artesão Angola, cuja história se desdobra de sua vinda do Nordeste para o Sul, correndo a vida com Peremateu, um ilusionista argentino, com quem aprendeu a fazer esculturas, até que acaba só, em Santos, velho e já ensinando o ofício a um moleque, o Pingola. Angola é um inveterado jogador no bicho e no dia em que, amargurado, joga uma bolada que ganhou na venda de estatuetas, ganha, mas não leva, porque morre atropelado. Seu maior prêmio é dado por Marambaia, como vingança contra a pobreza de todos, que paga o prêmio e compra um túmulo no cemitério do Paquetá, onde era enterrada a gente fina de Santos.

Somam-se a esses tipos também o Grego, um jornaleiro pacato, mas com fama de bom de briga, que acaba esfaqueado por um sujeito de nome Batatinha; a prostituta Sula e seu aprendizado para entrar na prostituição, desejada por Marambaia e Pingola, que afinal acaba com ela diante da loucura e morte de Marambaia; destaca-se também o presidiário Nego Oswaldo, admirado por sua fuga do presídio da ilha Anchieta, que narra espaçadamente para uma plateia no Estrela da Manhã, o bar que todos frequentam e onde trabalha no jogo Marambaia. – lá Nego Oswaldo ocupa o centro das atenções, para onde todos correm para escutá-lo contar sobre como era a vida e as revoltas dos presos na ilha Anchieta. 



Em meio a isso, aparecem histórias como a de outro sindicalista, Quirino, que somente descobre que ama Irene, uma prostituta, quando já é tarde demais: enfraquecido pela tuberculose, não resiste a mais uma surra da polícia e morre. Irene faz seu último strip tease sob os efeitos do veneno que tomou, desiludida com a morte do amante.

Greves, revoltas, rebeldias individuais aparecem em lampejos em meio aos relatos da vida dura dessas pessoas que habitam na zona de prostituição. Essa zona aparece na vida das prostitutas, nas descrições dos brilhantes luminosos de neon das boates com nomes em inglês, nas movimentações que precedem os shows para receber os marinheiros estrangeiros de todas as bandeiras e a gente da cidade. Porém os personagens, que vivem no entorno dela e são os assunto do livro, não entram nesses lugares.

Restam a eles os pequenos roubos, como o que aconteceu a um bazar, condenados à marginalização sem saída num país que não aceita sequer o discurso populista, decaído com Jango e calado com a ditadura nascente. Essa vida é a sua forma de resistência a essa sociedade, daí o epitáfio de Angola, que sintetiza o tom do romance: “Em toda a sua vida nunca defendeu nenhum partido, nenhuma religião, nenhum regime que não fosse o regime da liberdade”. Esse epitáfio se combina com o discurso do louco Teodorico, que sobe num caixote e, sob vaias e tiros de laranja e lixo, discursa o descrédito no humanismo sob o capitalismo e o comunismo. Era o penúltimo delírio concebido por Marambaia.

É uma liberdade anárquica, às vezes animalizada no uso de navalhas e peixeiras para se defender ou se impor nesse meio que coisifica a todos, muito bem exemplificado nos fósforos que um cafetão dos pobres, analfabeto, usa para contar as saídas das putas, fósforos que são os mesmos usados no jogo de porrinha e também nas bombas incendiárias com que Marambaia tenta, sem sucesso, como sua última medida, incendiar esse mundo...

Relatos da vida dura (*) . Apresentação para Os Vira-Latas da Madrugada,  publicada nas orelhas do livro.

Os Vira-Latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman e posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes, ilustrações e capa de Enio Squeff.. Taubaté-SP: Associação Cultural LetraSelvagem, 216 págs., 2015, R$  35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br   Site: www.letraselvagem.com.br

 

Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br