Adelto Gonçalves

A dor do mundo em Vera Lúcia de Oliveira

O músculo amargo do mundo, de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora Escrituras, 86 págs., R$ 24,80, 2014. Site: www.escrituras.com.br

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I

Poucos poetas brasileiros contemporâneos, como Vera Lúcia de Oliveira, paulista de Cândido Mota radicada na Itália há mais de duas décadas, tiveram sua produção poética tão analisada e incensada. A lista vai de José Saramago (1922-2010), Prêmio Nobel de Literatura de 1998, o único da Língua Portuguesa, a poetas e acadêmicos como Ferreira Gullar, Lêdo Ivo (1924-2012) e Carlos Nejar, passando por estudiosos como a filóloga e historiadora da cultura Luciana Stegagno Picchio (1920-2008), que foi considerada a mais importante luso-brasilianista da Europa, entre outros.

Não bastasse isso, ainda recentemente, um fino poeta como Albano Martins, professor da Universidade Fernando Pessoa, do Porto, nas páginas do quinzenário portuense As Artes entre as Letras, de 11 de março de 2015, ocupou-se deste O músculo amargo do mundo (São Paulo, editora Escrituras, 2014) para dizer que Vera Lúcia afirma, “em cada verso, em cada poema, a sua humanidade e o seu compromisso com o mundo em que vive, organizado segundo leis que não favorecem a justiça, a igualdade e fraternidade”. E acrescentou: “No mais, é a expressão curta, sincopada, ao rés da fala (da fala poética, da fala do poeta), que todavia se basta na sua reduzida dimensão”.        

No ensaio “O realismo poético de Vera Lúcia de Oliveira”, que escreveu especialmente para a apresentação deste livro, Ivan Marques, professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), ressalta que o lirismo da autora tem raízes no cotidiano, “de onde ela extrai seus pequenos enigmas”.

Depois de observar que o mundo visto pelo olhar da poeta é “cheio de misérias e desfalcado de esperanças – um mundo observado de perto, a partir de um ponto de vista generoso, mas sobretudo lúcido e pessimista” –, Marques desvenda a metáfora que justifica não só o título como o livro por inteiro, ressaltando que, em Vera Lúcia, o músculo do mundo, sua força motora, é a dor que “nutre e movimenta especialmente a existência das criaturas miseráveis, que vivem à margem”, conclusão a que também chega quem lê estes versos logo nas páginas iniciais:

 virar esquinas do avesso

            ficar como cachorro louco mordendo

            o músculo amargo do mundo

II

Marques localiza ainda as raízes da poesia de Vera Lúcia em seu gosto pelo período modernista da poesia brasileira, que teve início com a Semana de Arte Moderna de 1922. É de lembrar que pesquisa de doutorado realizada pela autora nos anos 90 na Itália abordou os livros Pau-Brasil, de Oswald de Andrade (1890-1954), Martim Cererê, de Cassiano Ricardo (1895-1974) e Cobra Norato, de Raul Bopp (1898-1984), o que justificaria, a nível formal, a preferência da poeta pela abolição de regras, pela opção por formas livres, pela ausência de letras maiúsculas, vírgulas e pontos,  pelo tom coloquial, pela linguagem das ruas estilizada.  Veja-se, por exemplo, estes versos: 

esse cão que me segue

            é minha família, minha vida

            ele tem frio mas não late nem pede

            ele sabe que o que eu tenho

            divido com ele, o que eu não tenho

            também divido com ele

            ele é meu irmão

            ele é que é o meu dono 

A par da ausência de formalismo, o que se destaca mesmo na poesia de Vera Lúcia é a sua opção franciscana pela pobreza e sua solidariedade com o marginalizado das grandes cidades brasileiras, vítimas de um modelo de patrimonialismo, que é apenas uma continuação de um sistema social que veio de Portugal à época da colônia, quando a nobreza, para se livrar da arraia-miúda que insistia em querer comer e sobreviver, mandava legiões de desvalidos para as conquistas, desertificando vilas e cidades.

Se à época colonial os pequenos burgos brasileiros viviam infestados de gente disforme, vítimas de bócio, a doença do papo, e leprosos, hoje o que se vê nas ruas e avenidas das grandes cidades é um cortejo de desfavorecidos: mendigos, desocupados, catadores de lixo, moleques malabaristas, vendedores de água batizada e mães em andrajos que exibem seus filhos para comover e convencer alguém que passa a lhe atirar ao menos a moeda de menor valor.

É a dor que sente a poeta ao ver este país em naufrágio que pulsa nestes versos, a dor de ver uma nação sem rumo em que a batalha da educação nas escolas públicas e privadas parece irremediavelmente perdida e milhares de jovens são atraídos para o consumo e tráfico de drogas ou para a prostituição, enquanto os ladravazes de recursos públicos festejam impunes pelos salões da república: 

            meu país é do lado de fora que ele mais dói

            meu país tem calçada chiqueiro bueiro onde

            gente compete com bicho e perde

            meu país tem mercado avenida rua semáforo

            onde com pouco se compra um corpo

III

Vera Lúcia de Oliveira, formada em Letras pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), campus de Assis, doutorou-se em Línguas e Literaturas Ibéricas e Iberoamericanas pela Universidade de Palermo (1997)e é professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Estudos de Perúgia, na Itália. Ensaísta e tradutora, organizou antologias de vários poetas, entre as quais se destacam aquelas que fez com poemas de Lêdo Ivo, Carlos Nejar e Nuno Júdice. Em 2005, ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras com o livro A chuva nos ruídos (São Paulo, Escrituras, 2004).

A autora escreve tanto em português como em italiano e seus poemas foram publicados em antologias no Brasil, Portugal, Itália, Espanha, França, Alemanha, Romênia e Estados Unidos. Além de produção ensaística, como poeta recebeu o Prêmio Sandro Penna (Itália, 2009), o Prêmio Popoli in Cammino (Itália, 2005), o Prêmio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006) e o Prêmio Internacional de Poesia Alinari (Florença, 2009). Em 2006, o seu livro inédito Entre as junturas dos ossos recebeu do Ministério da Educação o Prêmio Literatura para Todos e foi publicado pelo órgão governamental com tiragem de 110 mil exemplares e distribuído nas escolas e bibliotecas de todo o Brasil. 

Entre os seus vários livros, destacam-se: Geografie d´ombra (poesia, Veneza, editora Fonèma, 1989), Tempo de doer/Tempo di soffrire (poesia, Roma, editora Pellicani, 1998), La guarigione (poesia, Senigallia, editora La Fenice, 2000), Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro (ensaio, São Paulo, Editora da Unesp/Edifurb, 2002), Verrà l´anno (poesia, Fara, editora Rimini, 2005), Storie nella storia: le parabole di Guimarães Rosa (ensaio, Lecce, editora Pensa, 2005), No coração da boca (poesia, São Paulo, Escrituras, 2006), A poesia é um estado de transe (poesia, São Paulo, Portal Editora, 2010), La carne quando è sola (poesia, Florença, Società Editrice Fiorentina, 2011) e Vida de boneca (poesia infantil, São Paulo, Editora SM, 2013).

Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br