Adelto Gonçalves

Cinco novelas e algumas surpresas     

I

Com uma linguagem realista que descreve sem nenhum disfarce não só o mundo cão das favelas cariocas como as histórias de algumas das muitas vidas desfeitas pelo turbilhão produzido pela intervenção militar na vida constitucional do País em 1964, Helio Brasil contempla o leitor em Pentagrama acidental (Rio de Janeiro, Ponteio, 2014) com cinco novelas bem estruturadas e arquitetadas, não fosse ele um experiente arquiteto e urbanista, além de professor universitário com vasto currículo e experiência.

No posfácio que escreveu para este livro, o também professor Ivan Cavalcanti Proença, mestre e doutor em Literatura Brasileira, autor de obras clássicas como A ideologia do cordel, Futebol e palavra e O poeta do eu, este último sobre o poeta Augusto dos Anjos (1884-1914), diz que Helio Brasil é, hoje, um dos mais importantes ficcionistas brasileiros, embora não seja dado a procurar a divulgação de seu trabalho na mídia nem frequentar a roda-viva oficial dos intelectuais.

“Seus livros, inclusive o artesanal texto-memória, recente, sobre a infância em São Cristóvão, constituem prova de seriedade intelectual, competência e extrema lucidez na seleção de temas que compõem sua obra”, diz.

Proença aponta a novela “Corte e costura” como o carro-chefe do volume, incluindo-a entre os textos mais significativos da contemporânea ficção brasileira. De fato, poucos ficcionistas hoje no Brasil teriam tanta habilidade verbal e gênio para produzir uma narrativa tão realista como esta, sem perder o compromisso com o fazer literário, tornando os seus personagens figuras inesquecíveis para o leitor.

A novela conta a história de um casal separado pelas consequências nefastas do golpe militar, que tanta infelicidade trouxe para muitas famílias brasileiras. Loreta, 20 anos, dona de casa que fazia da atividade como costureira um meio para reforçar o orçamento doméstico, vivia no Rio de Janeiro com Erasmo, jovem professor universitário, que, de repente, envolvido nas malhas do movimento de resistência pelas armas ao regime militar (1964-1985).

Erasmo é obrigado a abandoná-la sem qualquer aviso ou explicação, à época da Copa do Mundo de Futebol em 1970, auge da repressão política, partindo para o exílio na França, onde constituiria família, depois de um tempo de clandestinidade no Brasil e no Paraguai. Sozinha, depois de inutilmente procurar o corpo do marido desaparecido, Loreta refaz a vida com um vendedor de cadernos de corte e costura, o gaúcho Greco, 20 anos mais velho. O ponto alto da novela é o reencontro daquelas vidas desfeitas no cemitério em 1998, quase três décadas depois, por ocasião do enterro de Greco, vítima de mal súbito.

II

Gustavo Barbosa, na apresentação deste livro, além de ressaltar a perspectiva realista de Helio Brasil na descrição de personagens, destaca a “densidade emocional dos protagonistas e a indicação precisa de quem são, de onde vêm e o mistério de seus destinos, quase sempre essa a motivação das histórias”. É o caso se constata na novela “O bem mais precioso”, que abre o volume, em que o autor reconstitui o dia-a-dia de uma família desestruturada que vive numa favela, descrevendo em detalhes o avanço do amante alcoólatra sobre a enteada de poucos anos de vida, até ser surpreendido pelo irmão da menina, que o despacha para o outro mundo. Eis um trecho:

“Através da cortina que protegia a cama da menina viu a silhueta de Mazinho dobrando-se sobre o corpo da criança, o braço espichado. O rapaz levou a mão à pistola. O estampido, embora não fosse um ruído estranho aos ouvidos dos moradores, chamaria a atenção dos moradores. Olhou em torno. Cravada na carne assada, a faca: lembrança e sugestão. Em gesto rápido, afastou a cortina e empunhando a arma com firmeza mergulhou-a no cachaço de Mazinho. Uma, duas, dez vezes, o sangue escurecendo o vermelho da camisa e fazendo desaparecer o enorme número branco. Um grunhido abafado pelo gargarejo mortal, jugulado pelo braço musculoso do jovem, o homem bambeou o corpo. A menina fez um leve movimento, ajeitou-se na cama e continuou o sono inocente”.

III

Esse estilo cruento, cheio de violências, erotismo e irreverência, que faz lembrar os contos de Rubem Fonseca (1925), também se constata na novela “Seis vezes seis. Noves fora: nada”, que reproduz a solidão da velhice de alguns tipos bem sucedidos na vida burguesa, não raro em meio a falcatruas, que se reúnem para participar de um bacanal no sítio do mais bem afortunado deles.

Já em “Os riscos da paixão”, o autor deixa à mostra também os seus dotes como historiador e arquiteto, reconstituindo a época do Império numa narrativa em que o protagonista é o adolescente José Augusto, que se apaixona por D. Domitila, a marquesa de Santos, exatamente a amante do imperador, D. Pedro I. Como bem observa Cavalcanti Proença, a história remete para outras “cenas de atração” clássicas na bibliografia de Machado de Assis (1839-1908), como as que se lê em contos como “Uns braços” e “Missa do galo”.

Por aqui, vê-se que o leitor que “descobrir” o ficcionista Helio Brasil, ainda que tardiamente como este resenhista, não vai se arrepender. São novelas (talvez algumas possam ser tidas como contos, ainda que extensos) que, realmente, envolvem o leitor da primeira à última linha, sem deixar de surpreendê-lo com finais insólitos. Ou seja, são novelas que estavam no “fundo da gaveta”, como diz o autor, mas que reúnem tudo o que se poderia esperar de um grande ficcionista. E que mostram que a Literatura Brasileira ainda pode oferecer boas surpresas.

IV

Helio Brasil (1931), nascido no Rio de Janeiro, é formado em 1955 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi funcionário do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), entre 1955 e 1984, tendo realizado projetos para as instalações do banco. Projetou edifícios comerciais, industriais e residenciais no Rio de Janeiro e em outros Estados. Foi professor da disciplina Projeto de Arquitetura, durante vinte anos, nas Universidade Santa Úrsula e nas universidades Federal do Rio de Janeiro e Federal Fluminense (UFF).

É autor de São Cristóvão – memória e esperança (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004); O anjo de bronze, contos (Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 1994); A última adolescência, romance (Rio de janeiro, Bom Texto, 2004); Tempos de Nassau: um príncipe em Pernambuco, ficções, com vários autores (Rio de Janeiro, Bom Texto, 2004); e O solar da fazenda do Rochedo – memórias (edição dos autores, 2010). É co-autor com Nireu Cavalcanti de O Tesouro – O Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Pébola Casa Editorial, 2015). Participou ainda de coletâneas de contos das editoras Uapê, Bom Texto e 7Letras.

 

Pentagrama acidental, novelas, de Helio Brasil, com pósfácio de Ivan Cavalcanti Proença e apresentação de Gustavo Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará/Ponteio, 200 págs., R$ 35,00, 2014. Site: www.ponteioedicoes.com.br

E-mail: ponteio@ponteioedicoes.com.br

Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br