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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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A ficção da ficção de Eça em
Campos Matos |
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Diário íntimo
de Carlos da Maia (1890-1930),
de A. Campos Matos. Lisboa: Edições
Colibri, 421 págs., 20 euros, 2014. Site: www.edi-colibri.pt E-mail:
colibri@edi-colibri.pt
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I |
Depois de quase uma vida inteira
dedicada ao estudo da obra eciana, com mais de trinta títulos publicados,
o pesquisador A. Campos Matos (1928) decidiu se lançar àquele que
considera o maior desafio de sua carreira literária, ao assumir-se também
como ficcionista, mas sem deixar de lado o seu culto a Eça de Queiroz
(1845-1900). E assim produziu este
Diário íntimo de Carlos da Maia (1890-1930), que acaba de sair à luz
pelas Edições Colibri, de Lisboa, em edição restrita de 450 exemplares,
dos quais 200 foram numerados e rubricados pelo autor.
Quem conhece a obra de Eça de
Queiroz bem sabe que Carlos da Maia é personagem do célebre romance
Os Maias (1888), protagonista do drama de incesto involuntário com
Maria Eduarda, sua irmã dois anos mais velha. Inspirado nessa vida
tumultuada, Campos Matos escreveu o que seria não a continuação de
Os Maias, mas o imaginário percurso de seu protagonista durante o
período de 40 anos (1890-1930) registrado por ele mesmo, depois do
insólito caso familiar.
Nascido em Lisboa em 1855, Carlos da
Maia teria sido assassinado em 1930, aos 75 anos de idade, a tiro de
zagalote (bala de espingarda) por um vizinho inconformado com a perda de
um terreno baldio de 350 hectares que lhe
dizia pertencer, mas que um juiz da Régua acabara de atribuir ao
patrimônio da quinta de Santa Olávia, propriedade da família Maia à beira
do rio Douro, em frente à estação de Aregos, local em que se passa boa
parte do romance de Eça de Queiroz.
Estas informações constam de um
intróito que o filho de Carlos da Maia, Carlos Afonso, teria escrito para
um hipotético terceiro volume de Os
Maias, empreitada da qual teria desistido ao descobrir a existência do
diário deixado pelo pai e preservado por sua mãe, Rosália, a filha do
caseiro de Santa Olávia com quem seu progenitor casaria depois do
conturbado caso de incesto com Maria Eduarda.
Obviamente, trata-se de um exercício
de ficção da ficção a que Campos Matos se devotou, seguindo as pegadas de
outros autores que também se inspiraram em personagens alheias. Campos
Matos no posfácio que escreveu para este livro cita, entre outros, os
casos do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), que escreveu
Meditações do Quixote (1914),
uma das principais obras de filosofia do século XX, do poeta e ensaísta
Vasco Graça Moura (1942-2014), autor de
Os Lusíadas para gente nova (2012), um diálogo com o texto de Luís
de Camões (1524-1580), e o próprio Eça de Queiroz que produziu
Correspondência de Carlos Fradique
Mendes (1900), com base no primeiro Fradique, que é uma criação
coletiva.
Sem contar a ficção inspirada em Eça
de Queiroz artisticamente mais bem sucedida até aqui que é
A bela angevina (2005), de José-Augusto França (1922), que não se
baseia em personagem eciana, mas em quatro fotografias de uma desconhecida
de Angers que foram localizadas em 1989 no espólio do escritor pela
professora Beatriz Berrini. Vista ao lado de Eça numa das fotos, a
desconhecida possivelmente teria vivido um enlace amoroso com o escritor
durante o período em que este morou na França.
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II |
É de se lembrar que a narrativa de
Eça de Queiroz em Os
Maias tem início com Pedro da Maia, filho de Afonso
da Maia, personagem educado de acordo com padrões românticos, que se casa
com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos e, por isso, também
conhecida como “a negreira”. Dessa união, nascem dois filhos: Maria
Eduarda e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com a mãe e
o menino com o pai, que se suicida, depois que a mulher foge com um
napolitano.
Descendente de uma família nobre da
Beira, educado pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia
forma-se em Medicina, mas nunca exerceria a profissão a sério. É um
desocupado que está sempre acompanhado de João da Ega, ex-estudante de
Direito em Coimbra, um tipo espirituoso e adepto do Naturalismo em
Literatura.
Após alguns encontros amorosos com a
condessa Gouvarinho, Carlos conhece, por intermédio de Dâmaso Salcede, um
tipo medíocre e balofo, a mulher de Castro Gomes, um brasileiro rico, e
apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era
casada legalmente, e vai viver com Carlos da Maia, acompanhada de uma
filha, criança ainda. É quando Joaquim Guimarães, um velho jornalista,
entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria
Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos. Este julgava que
a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo.
Ega lê os documentos e,
aterrorizado, vai mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, a
antiga madame Castro Gomes, eram irmãos. Desnorteado, Carlos volta a
encontrar-se com a irmã, numa atitude de incesto consciente, de que, mais
tarde, arrepende-se. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia
como amante do irmão, o austero Afonso da Maia falece. A situação entre os
irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade
esclarecida e seus direitos reconhecidos, volta para Paris, refaz sua vida
e lá se casa. Já Carlos da Maia viaja para a América e o Japão, em
companhia de Ega. Só dez anos mais tarde retornaria a Lisboa, fixando
depois residência também em Paris, onde alia a falta do que fazer ao
diletantismo.
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III |
Na
ficção de Campos Matos, no começo de 1890, Carlos da Maia encontra-se a
viver sozinho já havia dois anos num apartamento dos Champs Elysées,
quando decide começar a registrar acontecimentos e reflexões que lhe
“turbilhonam a mente”. É a época do ultimato inglês, uma advertência em
forma de telegrama enviado ao governo português pelas autoridades
inglesas, em que era exigida a retirada imediata das forças militares
portuguesas dos territórios entre Angola e Moçambique, que correspondem
aos atuais Zimbabwe e Malawi.
Caso a exigência não fosse aceita
por Portugal, a Inglaterra avançaria com uma intervenção militar. Diante
da humilhante capitulação, Carlos da Maia faz uma reflexão que espelha boa
parte do pensamento da elite lusa ilustrada ainda hoje em relação aos seus
antepassados: “(...) Tão miseráveis,
sem recursos na metrópole, mas sonhamos ainda com um grande império, para
nos estiolar e enfraquecer. Absurda coisa! Não temos capacidade para
progredir e trabalhar nesta nesga de terra que definha a olhos vistos, mas
pretendemos tomar conta de quase um continente!...”.
O desalento de Carlos da Maia com
a própria elite portuguesa da qual descende é visível na anotação que faz
em 1914, à época da deflagração da Primeira Guerra Mundial:
“Os nossos soldados, analfabetos
quase todos, e pessimamente preparados, vão ser trucidados por alemães bem
armados e bem treinados”, prevê, citando em seguida palavras de Eça n´As
Farpas: “(...) A Europa pensará
que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal,
não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da civilização”.
O
diário registra acontecimentos de que Carlos da Maia participa como médico
estagiário num hospital de Paris e, depois de uma viagem a Londres e uma
passagem pelo Porto, o seu refúgio na quinta de Santa Olávia, onde
continua o seu trabalho de espectador do mundo. Por todo o diário, não
faltam reflexões sobre os acontecimentos que envolvem Portugal e o mundo
nem alusões musicais ou referências à grande pintura e a religiões (em que
ridiculariza o fenômeno do aparecimento de Nossa Senhora de Fátima a três
pastorinhos analfabetos) e muito menos a autores franceses, como Honoré de
Balzac (1799-1850), Guy de Maupassant (1850-1893), Marcel Proust
(1871-1922) e Gustave Flaubert (1821-1880), e portugueses, como Antero de
Quental (1842-1891), Camilo Castelo Branco (1825-1890), António Feliciano
de Castilho (1800-1875), António Nobre (1867-1900), António Feijó
(1859-1917), Pinheiro Chagas (1842-1895), Oliveira Martins (1845-1894),
Raul Brandão (1867-1930), Aquilino Ribeiro (1885-1963), José Régio
(1901-1969), Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916), ou ainda a Machado de Assis (1839-1908) e, naturalmente, a
Eça de Queiroz, seu criador. De fato, Carlos da Maia não só se refere
várias vezes ao seu criador como conta sobre as ocasiões em que esteve bem
próximo dele sem se atrever a lhe dirigir a palavra.
A tal
ponto chega a recriação que Campos Matos faz de personagens e ambientes
ecianos que, às vezes, tem-se a nítida impressão que se lê o próprio Eça
de Queiroz. É como se Campos Matos quisesse escrever o livro (ou o
terceiro volume de Os Maias) que
Eça escreveria se a vida não lhe tivesse sido breve, ao lhe reproduzir com
perfeição o sarcasmo e a ironia, como o faz neste trecho em que Carlos da Maia
analisa a própria atividade de ficcionista:
“(...) Devo dizer a este propósito
que é necessário ter cuidado com a veracidade do que escrevem os
escritores, sobretudo os ficcionistas. Estão sempre prontos a sacrificar a
verdade dos factos se entenderem que esse sacrifício lhes traz vantagens
de forma e efeitos de estilo, ou satisfações à sua vaidade”.
É
claro que isso só foi possível porque Campos Matos, à força do seu ofício
de investigador, criou tamanha intimidade com Eça de Queiroz e sua obra
que só mesmo de sua pena poder-se-ia esperar tal resultado. Um excepcional
e feliz resultado.
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IV |
O arquiteto e historiador da
literatura portuguesa Alfredo Campos Matos, nascido na Povoa do Varzim,
como Eça de Queiroz, tem vasto currículo queiroziano, que começou com
Imagens do Portugal Queirosiano
(1976). É autor em grande parte do
Dicionário de Eça de Queiroz, publicado em 1988, que deu lugar a uma
edição aumentada em 1993 e, em 2000, ao
Suplemento ao Dicionário de Eça de
Queiroz. Aliás, do Dicionário de
Eça de Queiroz está para sair uma terceira edição pela Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, de Lisboa, que conta com numerosos colaboradores
portugueses e estrangeiros.
Em 2014, Campos Matos publicou pela
Editora Unicamp e Ateliê Editorial a edição brasileira (revista e
aumentada) de Eça de Queiroz. Uma
biografia, considerada desde que lançada em 2009 por Edições
Afrontamento, do Porto, como a mais completa e mais rica biografia do
romancista português. Ao final de 2014, publicou
Eça de Queiroz – Correspondência
(Adenda II), do qual é responsável pela introdução, organização e
anotações. Publicado por Colares Editora, de Lisboa, o livro reúne duas
cartas inéditas de Eça de Queiroz a Guerra Junqueiro (1850-1923), datada
de 1878, e ao seu amigo Eduardo Prado (1860-1901), milionário brasileiro
de quem se tornou amigo em Paris e um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras.
Publicou ainda
Eça de Queiroz-Emília de Castro,
Correspondência Epistolar (1995) e, posteriormente,
Cartas de Amor de Anna Conover e
Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, cônsul de Portugal em
Havana: 1873-1874 (1999).
É também autor de
Diálogo com Eça de Queiroz
(1999), A Casa de Tormes, Inventário
de um Patrimônio (2000), Viagem
no Portugal de Eça de Queiroz (2000),
A Igreja Românica de S. Pedro de
Rates: Guia para Visitantes (2000),
Eça de Queiroz, Marcos
Bibliográficos e Literários (1845-1900), catálogo da exposição do
Instituto Camões (2000), Ilustrações
e Ilustradores na Obra de Eça de Queiroz (2001),
O Mistério da Estrada de Ponte de
Lima: António Feijó, Eça de Queiroz (2001),
Sobre Eça de Queiroz (2002),
Sete Biografias de Eça de Queiroz
(2004), Dicionário de Citações de
Eça de Queiroz (2005), Eça de
Queirós, Postais Ilustrados (2006),
A Guerrilha Literária Eça de
Queiroz-Camilo Castelo Branco (2008),
Eça de Queiroz. Correspondência
(2008), Eça de Queiroz-Ramalho
Ortigão, Retrato da “Ramalhal Figura” (2009),
Silêncios, Sombra e Ocultações em
Eça de Queiroz (2011) e Sexo e Sensualidade em Eça de Queiroz (2012), entre outros. No
total, já publicou 36 livros, incluindo obras sobre arquitetura.
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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