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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Literatura e cinema em ‘Poeira e
escuridão’ |
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I |
Poeira e
escuridão – este é o título do livro de
contos de João Batista de Andrade (1939), jornalista e professor, que a
Associação Cultural LetraSelvagem,
de Taubaté-SP, acaba de colocar no mercado. São onze contos escritos em
linguagem cinematográfica, com narrativas que espocam como
flashes e se superpõem até
completar um quadro inteiro. E não poderia ser diferente, não fosse o
seu autor um dos cineastas mais importantes do Brasil, ainda em
atividade.
Como diz, no texto de apresentação
deste livro, Luís Avelima, poeta, crítico, jornalista e tradutor de
Gente pobre (LetraSelvagem,
2011), de Fiodor Dostoievski (1821-1881), entre outras obras, antigo
editor do jornal Voz da Unidade,
do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e ex-locutor da Rádio Central de
Moscou, estes contos constituem “onze retratos que se costuram entre o
telúrico e a dureza urbana, a revelar o dia que escorre em poesia de
amor e dor, de lembrança, cenas do agora, que logo se tornam cacos na
massa infame que nos cerca e que logo adiante se recosturam e ganham
forma”. Para ele, Andrade firma-se a cada livro e mostra neste última
obra que “a literatura é a loucura que pode salvar o mundo”.
Já o crítico Ademir Demarchi,
doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP),
poeta e editor da revista cultural
Babel, no prefácio que
escreveu para este livro, prefere analisar, detidamente, os onze contos,
sem deixar que apontar a sua relação com o cinema. E mostra para o
leitor menos atento alguns detalhes como aquele que percebeu no conto
“Ética pelas metades”: um carrinho de bebê põe à vista do leitor
(espectador) uma famosa cena do clássico filme
Encouraçado Potemkin (1925),
do russo Serguei Eisenstein (1898-1948), obra que é considerada, ao lado
de Cidadão Kane, do
norte-americano Orson Welles (1915-1985), uma das mais importantes na
história do cinema.
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João Batista de
Andrade Lautaro Aba |
II |
Um dos contos mais bem urdidos desta
coletânea – ainda que todos sejam relatos bem construídos, mesmo aqueles
de página e meia – é “Morangos silvestres”, que encerra o livro. A
narrativa é centrada em dois personagens, um mais velho, comunista
sobrevivente de um massacre feito por esbirros da ditadura contra o seu
grupo, e um jovem aspirante a revolucionário, cooptado pelo mais
experiente, mas que, fora de lugar, parece ter chegado tarde ao mundo.
O diálogo ocorre exatamente num
momento tenso em que ambos caminham pelas ruas com o objetivo de cometer
um atentado contra o presidente de uma republiqueta latino-americana,
provavelmente um antigo pelego que, criado e amadurecido no ambiente dos
sindicatos de trabalhadores, soubera como usar a linguagem populista de
esquerda para encantar a população e perpetuar-se no poder eleição após
eleição, traindo os ideais dos grupos esquerdistas que o ajudaram no
início da caminhada. Eis um trecho desse diálogo:
– Há um homem próximo de se eternizar no poder, ele
saiu de nós, de nossa história, era a promessa de nossa vida, de nossa
juventude, a esperança de que tudo voltasse a ser como antes, que a
história não morresse, que o ar fosse de novo respirável. E ele nos traiu.
– Ele é apenas um homem – murmurou Ramírez.
– Quando chegam lá, eles deixam de ser “apenas um
homem”.
É também numa republiqueta de
pastelão em que a cena política funciona sempre como farsa que se passa o
conto “O gato Guevara”, que faz lembrar
O outono do patriarca (1975), de
Gabriel García Márquez (1927-2014),
Tirano Banderas (1926), de Ramón María del Valle-Inclán (1886-1936),
e outros romances sobre a decadência de ditadores latino-americanos. Um
general paspalhão, sem nunca ter chegado ao ápice da carreira que seria a
presidência da uma república bananeira, convive a contragosto com a
abertura política que invade até mesmo a sua casa, com a presença de um
cunhado “cabeludo, de brincos na orelha, irresponsável e transviado”, e
até mesmo um gato que carrega nome de guerrilheiro, tudo em favor do bom
convívio com a fogosa esposa Leonora.
No conto “No tempo do cinema”,
Andrade deixa mais uma vez explícito o seu fascínio pela sétima arte e
presta homenagem a Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e
Louis Lumière (1864-1948), os irmãos Lumières, inventores do
cinematógrafo, considerados os pais do cinema, filhos do industrial
Antoine Lumière (1840-1911), dono da
Usine Lumière, em Lyon, na França. O conto é composto por narrativas
que igualmente se superpõem, enfocando a infância de meninas pobres, que
se desdobram umas nas outras, como matrioscas russas, até dar numa jovem
operária francesa que participa do primeiro filme dos Lumières.
Essa jovem, mais tarde, vem para o
Brasil com o marido que iria negociar “filmadoras, projetores e até mesmo
algumas pequenas latas circulares de rico conteúdo, filmes realizados
pelos próprios Lumières que tanto sucesso faziam por toda parte”. Sem,
contudo, esquecer o olhar do patrão Louis Lumière, por quem sonhava ser
seduzida, paixão tão imorredoura que a levaria a dar o seu nome ao
primeiro filho, ao primeiro neto e ao primeiro bisneto também.
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III |
João Batista de Andrade, nascido em
Ituiutaba, Minas Gerais, militante do PCB à época mais dura da repressão
promovida pela ditadura civil-militar (1964-1985), tornou-se nome
conhecido nacionalmente como cineasta, depois da realização de filmes como
Doramundo, vencedor do Festival de Gramado-RS, em 1978, inspirado em
romance do jornalista Geraldo Ferraz (1905-1979), publicado em 1956;
O homem que virou suco, Medalha
de Ouro de Melhor Filme no Festival de Moscou, em 1981;
O tronco, Prêmio de Melhor Filme pela Comissão das Comemorações dos
500 Anos do Brasil no Festival de Brasília, em 1999; e
Vlado, 30 anos depois, de 2005, que reconstitui a trajetória do
jornalista Valdimir Herzog (1937-1975), assassinado nos porões de uma
unidade do Exército.
Com mais de 40 obras em sua
filmografia, Andrade nunca deixou de manter estreita ligação com a
literatura, tendo transportado para as telas, além de
Doramundo e
O tronco, de Bernardo Élis
(1915-1997), outras obras literárias como
Veias e vinhos, de Miguel Jorge
(1933) e Vila dos confins, seu
17º longa-metragem, de 2011, baseado em romance de Mário Palmério
(1916-1996).
Em 1983, dirigiu
A próxima vítima, um de seus
melhores filmes, que causou forte impressão ao desmistificar violentamente
a ilusão da abertura democrática, ainda à época em que o regime
civil-militar já permitira o retorno dos exilados e baixara lei de anistia
para os perseguidos e seus perseguidores. Em 1987, ganhou quase todos os
prêmios do Festival de Brasília, com o polêmico
O país dos tenentes, com temática também ligada ao fim do regime
ditatorial.
Em 2010, foi o grande homenageado do
Festival Latino-Americano de Cinema, em São Paulo. Foi secretário de
Cultura do Estado de São Paulo de 2005 a 2007, quando criou a Lei da
Cultura (Proac), com editais e incentivos para a produção cultural. Em
2012, foi nomeado presidente da Fundação Memorial da América Latina, cargo
que ainda ocupa.
A par de sua carreira como cineasta,
publicou mais sete livros de ficção, incluindo quatro romances:
A terra do Deus dará (1980), romance infanto-juvenil;
Perdido no meio da rua, escrito
em 1964 e publicado 20 anos depois (Editora Global, 2ª ed., 1989);
Um olé em Deus, publicado em
1989 e republicado pela Editora Scipione em 1997;
O portal dos sonhos (Ufscar Editora, 2001);
Sozitos, a lenda da terra ronca (Editora Lazuli, 2013), romance
infanto-juvenil; Confinados:
memórias de um tempo sem saída (Editora Prumo, 2013) e
A terra será azul (Editora Lazuli, 2014).
Foi professor na Escola de
Comunicação e Artes (ECA) da USP. Em 1999, defendeu na ECA-USP a tese de
doutorado O povo fala – um cineasta na área de jornalismo da TV brasileira,
aprovada pela banca com distinção e louvor e publicada em 2002 pela
Editora Senac, de São Paulo. A jornalista Maria do Rosário Caetano
dedicou-lhe o estudo João Batista de
Andrade – alguma solidão e muitas histórias, publicado pela Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, em 2010.
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Poeira e escuridão,
contos, de João Batista de Andrade, com prefácio de Ademir Demarchi e
apresentação de Luís Avelima. Taubaté-SP: LetraSelvagem,
160, págs., R$ 30,00, 2015. Site: www.letraselvagem.com.br
E-mail:
letraselvagem@letraselvagem.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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