|
REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
|
|
|
|
|
Adelto Gonçalves |
|
A belle époque na coleção de cardápios de Bilac |
|
A pesquisadora Lúcia
Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac como seu
objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava
pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do
Segundo Reinado e nos anos iniciais da República |
|
Atribui-se a Lucien Febvre (1878-1956), fundador
da Escola dos Annales, a ideia segundo a qual a História poderia ser
contada a partir da escolha de novos objetos de estudos, o que constituiu
uma revolução na historiografia, tal foi o número de trabalhos que se
seguiram a partir da década de 1950 com recortes específicos. Deixou-se de
lado a concepção tradicional que marcaram os livros de História até então,
baseados nos feitos dos grandes nomes — reis, presidentes,
primeiros-ministros, governadores. Hoje, um livro que siga esse modelo é
visto como quinquilharia de museu, a tal ponto que um autor chegou a ser
acusado pejorativamente na universidade de candidato a membro de algum
instituto histórico.
É claro que a História vista em mínimos detalhes é
sempre mais interessante do que aquela que se baseia nos feitos dos
“grandes”. O problema é encontrar nos arquivos resquícios do que pensaram
ou disseram aqueles que eram iletrados e, portanto, não deixaram registros
de suas vivências, queixas, emoções ou anseios. Quer se queira ou não, a
História sempre será escrita a partir da visão dos letrados, daqueles que
deixaram registro do que viram e viveram, refletindo obrigatoriamente a
visão de mundo da classe dominante.
|
Mas a que vêm estas reflexões? Vêm a
propósito do livro “Para uma História da Belle Époque: A Coleção
de Cardápios de Olavo Bilac”, de Lúcia Garcia, com prefácio do
poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da
Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em
Portugal, Nigéria, Benim, Colômbia e Paraguai.
A partir da ideia de Febvre, Lúcia Garcia
escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac
(1865-1918), que faz parte do acervo da Academia Brasileira de
Letras, como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida
cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite
carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos
iniciais da República. Aliás, como observa Lúcia Garcia, Bilac,
certamente, colecionava menus dos almoços, jantares e banquetes
festivos de que participava no Brasil e no mundo.
|
|
Olavo Bilac preservava os cardápios para revisitar os
momentos vividos, em benefício da memória, como antídoto
ao esquecimento
|
|
|
É de assinalar que, como explica a autora, a palavra
cardápio é um neologismo criado pelo filólogo Antônio de Castro Lopes
(1827-1901) na década de 1890 para substituir a palavra francesa menu que,
a rigor, significa miúdo e não tem em português equivalente, pelo menos no
sentido de almoço, jantar ou ceia.
Diz a pesquisadora ainda que Bilac “preservava os
cardápios para revisitar os momentos vividos, em benefício da memória,
como antídoto ao esquecimento”. Entre os cardápios reproduzidos estão
alguns de banquetes em homenagem ao próprio poeta, homem célebre ao seu
tempo, e outros que celebravam o IV Centenário do Descobrimento do Brasil,
a visita ao Rio de Janeiro da famosa atriz italiana Tina Di Lorenzo
(1872-1930) e acontecimentos diversos.
Nos menus, acrescenta a pesquisadora, estão presentes
as confeitarias Pascoal e Colombo, entre outros estabelecimentos
comerciais conhecidos e frequentados pela classe dominante no Rio de
Janeiro no início do século 20. Como diz Lúcia Garcia, a extensa coleção
doada à ABL por Bilac, ou por seus familiares, revela a rede de
sociabilidade do escritor, quer pela indicação do anfitrião, quer pela
assinatura dos comensais. A essa época, é de ressaltar que havia uma
“febre” entre as pessoas bem-postas na vida de colecionar autógrafos e
cartões postais.
Como diz Alberto da Costa e Silva no prefácio, esta
coleção revela como novos padrões se iam popularizando no País e, como
pela lista de pratos, afrancesavam-se cada vez mais as elites. A partir
daí, Costa e Silva imagina o que se conversava à época os vizinhos de
mesa, já que ecos dessas tertúlias não ficaram, a não ser esparsamente em
crônicas, como as que Machado de Assis (1839-1908) e mesmo Bilac assinavam
nos grandes jornais.
Diz: “É provável que, num almoço, se discutisse a
abertura da Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos ou a campanha
sanitária de Oswaldo Cruz”. E acrescenta mais adiante: “Pois ainda havia
quem não tivesse saído do assombro ou se acostumado, de alma rendida, à
aspirina, à lâmpada elétrica, ao telégrafo, ao cabo submarino, do rádio,
ao telefone, ao navio a vapor com hélice e casco de ferro, ao motor de
combustão interna, ao automóvel com pneu de câmara de ar, às máquinas
voadoras, aos raios-X, ao cinematógrafo e à partilha da África e de parte
da Ásia entre as potências europeias”.
Da coleção constam ainda fotografias de um almoço — do
qual não restou o cardápio — na década de 1910 na fazenda em Louveira,
no interior do Estado de São Paulo, de Júlio Mesquita (1862-1927),
fundador e proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”, do qual Bilac
também era colaborador. De notar, como assinala a pesquisadora, é que
Bilac nas fotografias sempre fazia questão de aparecer de perfil. É essa
também uma rara foto em que aparece alguém das classes menos favorecidas,
o cozinheiro da fazenda de Mesquita, sentado meio a contragosto e sem
jeito no primeiro degrau de uma escada à frente dos demais.
Lúcia Garcia (1979) é doutora e mestre em História
Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participou de
vários projetos de pesquisa histórica documental e iconográfica nos
últimos anos, tendo colaborado como consultora na “Comissão para as
comemorações do bicentenário da chegada de D. João ao Rio de Janeiro”
(Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro).
É autora de “Euclides Da Cunha: Escritor por Acidente
e Repórter do Sertão” (São Paulo, Companhia das Letras), “A
Transferência da Família Real para o Brasil 1808 2008”, com outros autores
(Lisboa: Tribuna da História), “Rio e Lisboa: Construções de um Império”
(Lisboa: Câmara Municipal) e “Documentos Oitocentistas da Biblioteca
Nacional”, coautoria de Lilia Schwarcz (Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional). É coautora de “Impresso no Brasil: Destaques da História
Gráfica”, organizado por Rafael Cardoso (Rio de Janeiro: Verso Brasil).
|
|
Para uma História
da Belle Époque: A Coleção de Cardápios de Olavo Bilac |
|
Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
|
|