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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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A
influência russa na literatura brasileira |
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DA ESTEPE À CAATINGA: O ROMANCE RUSSO NO BRASIL (1887-1936),
de Bruno Barretto Gomide. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo (Edusp), 768 págs., 2011, R$ 120,00.
E-mail:
edusp@usp.br
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I |
Que a literatura russa influenciou boa parte da literatura produzida no
Brasil, especialmente no final do século XIX e na primeira metade do
século XX, nenhum crítico de bom senso pode colocar em dúvida. Até que
ponto chegou essa influência e como seu deu, pois, na maioria, por
desconhecimento do idioma russo, os autores tiveram acesso apenas a
traduções de segunda mão do francês, é que nunca ninguém havia
estabelecido.
Essa questão, porém, já está devidamente esclarecida e aprofundada, depois
da pesquisa de proporções ciclópicas empreendida pelo professor Bruno
Barretto Gomide em sua tese de doutoramento apresentada ao Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em
junho de 2004, que saiu em livro em 2011 pela Editora da Universidade de
São Paulo (Edusp): Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), Prêmio
Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria Teoria e Crítica
Literária.
As fontes deste livro foram extraídas de arquivos particulares de
escritores e de uma extensa pesquisa que o estudioso fez em jornais,
revistas e livros publicados entre 1887 e 1936, valendo-se também de
consulta não só em arquivos públicos e de universidades em Campinas, São
Paulo e Rio de Janeiro como nos Estados Unidos, especialmente nas
bibliotecas das universidades de Illinois, Indiana, Stanford e Califórnia.
Neste livro, a recepção da literatura russa no Brasil é estudada a partir
de dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e
estudo da vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de
recepção da literatura russa no Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas
discussões específicas fornecidas pela crítica literária e pela
historiografia da cultura brasileira, como observa o autor na introdução.
Os primeiros textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto
a questões literárias candentes no Brasil datam da segunda metade da
década de 1880. Já o final da década de 1930 marca um momento em que tais
discussões perdem sua força e deixam de ser relevantes para a crítica. O
trabalho conta ainda com um anexo que reproduz algumas fontes
significativas, privilegiando as de mais difícil acesso.
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II |
É observar que a chegada do romance russo ao Brasil foi uma consequência
marginal de um processo internacional iniciado na França, que o tornou uma
sensação europeia em meados da década de 1880. Foi quando surgiram as
traduções em escala industrial e livros de crítica que assinalavam a
recepção desses romances em língua francesa.
Gomide aponta o ensaio O
Romance Russo, de Eugène-Melchior de Vogüé (1848-1910), publicado em
1886, como o elemento basilar dessa recepção, pois era a ele que recorria
a maior parte dos ensaístas, inclusive no Brasil. Entre os romancistas
brasileiros, Lima Barreto (1881-1922) foi o que mais se deixou influenciar
pelas ideias que o romances russos traziam implícitas, especialmente a
partir do prefácio que Vogüé escreveu para
Recordações da Casa dos Mortos,
de Dostoiévski (1821-1881).
O pesquisador observa que já havia conhecimento da literatura russa no
Brasil antes mesmo da década de 1880, mas esses contatos se davam em
escala diminuta. A partir daquela data, o seu “surgimento súbito” no País,
em função do que ocorria na França, passou a atiçar a criação de uma
literatura genuinamente nacional, como observaram ao tempo José Carlos Jr.
(?-?), um crítico paraibano hoje quase esquecido e justamente
“ressuscitado” por Gomide, e Clóvis Bevilacqua (1859-1944). Mas, como
constata Gomide, essa interpretação não foi unânime. Para Tobias Barreto
(1839-1889), por exemplo, os romancistas russos eram a negação de tudo o
que a cultura francesa representava.
Para Silvio Romero (1851-1914), os russos seriam também o melhor exemplo
antípoda de Machado de Assis (1839-1908). Se o escritor fluminense
construía delicados estados psicológicos de suas personagens à maneira do
francês Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), Romero fazia o contraste
com a estética radical do choque, exemplificada por Edgar Allan Poe
(1809-1849) e Dostoiévski, observa Gomide. E acrescenta: para Romero, o
autor fluminense ficava “bem abaixo de Dostoiévski, Poe e até de Hoffmann
(1766-1822), quando este envereda, como o próprio Machado diria, pelo
distrito da patologia literária”.
Portanto, o caráter inovador da prosa russa foi imediatamente detectado
pelos críticos brasileiros, que passaram a utilizá-lo largamente como
termo de comparação em suas críticas e recensões. E até a apresentá-lo
como um modelo de emancipação
para a literatura brasileira.
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III |
Na primeira parte de seu livro, Gomide trata da divulgação dos romancistas
russos a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883 a 1886. E
apresenta exemplos do aumento vertiginoso do número de traduções e do
entusiasmo nos meios intelectuais pelo novo fenômeno literário. Mostra
ainda que, quando a revolução de 1917 assustou o mundo, já havia no Brasil
uma tradição de três décadas de discussão do romance russo em periódicos e
livros de crítica.
Portanto, associar autores como Dostoiévski, Turgueniev (1818-1883), Leon
Tolstói (1828-1910) e Alexandr Pushkin (1799-1837) ao bolchevismo só podia
partir de mentes obnubiladas, o que não é de admirar, pois, à época da
última ditadura militar (1964-1985), o livro
Juan Rulfo: Autobiografia Armada
(Buenos Aires, Corregidor, 1973), de Reina Roffé, teve a sua importação
barrada, por volta de 1975, porque o censor fez uma interpretação
beligerante da palavra “armada”, quando o título queria dizer apenas que a
autobiografia havia sido “armada” com declarações do escritor retiradas de
entrevistas publicadas em épocas diversas. Santa ignorância...
Na segunda parte de seu trabalho, Gomide estuda as décadas de 1920 e 1930,
quando era flagrante o impacto da revolução bolchevique. E mostra
claramente que, ao contrário do que se supõe, a literatura russa nunca foi
uma espécie de patrimônio da esquerda, pois intelectuais católicos, como
Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), Tasso da Silveira (1895-1968) e Jackson
Figueiredo (1891-1928), já discutiam sua influência na literatura mundial,
especialmente a partir de Dostoiévski, Máximo Górki (1868-1936) e Leon
Tolstói.
A segunda parte do livro apresenta, além de um panorama do mercado
editorial da década de 1930, textos que desconfiam abertamente das
interpretações geradas no fim do século e tentam cercar os romancistas
russos por outros ângulos. E contestam a ideia de que o niilismo de
Dostoievski e de outros escritores russos teria preparado terreno para o
avanço do comunismo e a vitória dos bolcheviques em 1917, apenas porque a
literatura russa sempre esteve associada a questões sociais. Na conclusão,
Gomide defende que é anacrônico reler os primeiros momentos da recepção da
literatura russa no Brasil de acordo com os resultados posteriores à
revolução de 1917.
Como o livro vai até 1936, fora da análise de Gomide fica o recente
renascimento do interesse do leitor brasileiro pelo romance russo que, a
rigor, deu-se depois do lançamento,
em 2001, da primeira tradução de Crime e Castigo, de Dostoiévski, feita diretamente do russo por
Paulo Bezerra, pela Editora 34, de São Paulo. Em seguida, saíram vários
livros traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra, Boris
Schnaiderman, Fátima Bianchi, Lucas Simone e outros. Em 2011, saiu também
Gente Pobre, de Dostoiévski, com tradução de Luíz Avelima, pela
editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP.
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IV |
Bruno
Gomide (1972) é doutor em Letras pela Unicamp, com estágio de doutorado na
Universidade da Califórnia, em Berkeley. Realizou cursos nas universidades
de Illinois, Indiana, Cambridge e Linguística de Moscou. Foi
pesquisador-visitante no Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou,
com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo
(Fapesp). É o organizador do grupo de trabalho de Literatura Russa da
Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).
Organizou a Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998), lançada recentemente pela
Editora 34, que reúne nomes conhecidos no Brasil como Pushkin, Gógol,
Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói, Pasternak, Bábel e Nabókov e outros menos
conhecidos, como Odóievski, Grin, Chalámov, Kharms, Platónov e Sorókin,
num total de 40. Tem publicado artigos em periódicos internacionais, como
Tolstoy Studies Journal e
Vopróssi Literaturi, e
participado dos principais congressos de eslavística.
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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