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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Demarchi, o artesão do verso antropofágico |
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I |
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Datas redondas exigem balanços como forma de se perpetuar em papel a vida
passada por entre os dedos ou, neste caso, por entre versos. Em tempos de
Internet, nada disso é possível porque sites, blogs e facebooks criados há
alguns anos costumam se desmanchar no ar ao sabor dos provedores e das
circunstâncias. Sem contar que os responsáveis por revistas eletrônicas
também envelhecem e morrem e com eles se vão essas aventuras intelectuais.
Com o papel, não. A perenidade é maior, embora não
seja eterna, ainda mais em países úmidos em que o mofo, o bolor e a traça
tudo devoram. Tivesse Jesus Cristo escolhido para apóstolos doze
analfabetos – e não homens letrados, entre eles até publicanos, como
Mateus, por exemplo, que sabia contar e anotar a coleta dos impostos –,
hoje, por certo, ninguém saberia o que teria dito no Monte das
Bem-Aventuranças para mais de cinco mil fieis, sem alto-falantes nem
gravadores, valendo-se apenas da sonoridade natural da montanha à beira do
Mar da Galileia. Basta dizer isto para se ressaltar a importância do papel
e do pergaminho em que se registraram os manuscritos em comparação com os
atuais e etéreos meios digitais.
Mas a que vêm estas reflexões de quem, um dia,
descobriu na Ilha de Rhodes que os gregos antigos sabiam como construir um
teatro de arena em que o ator podia falar e ser ouvido por toda a plateia,
igualmente sem dispor de alto-falantes? Vêm a propósito da edição do livro
Pirão de Sereia, do poeta Ademar Demarchi, que marca os 50 anos de
vida de seu autor e 30 de lida com poesia, assinalados em 2010. E que,
como denuncia o próprio título, constitui também uma homenagem à
Antropofagia, movimento artístico brasileiro da década de 1920, fundado e
teorizado pelo poeta paulista Oswald de Andrade (1890-1954), que costumava
ironizar em suas obras a submissão da elite brasileira aos países
desenvolvidos e propunha, em contrapartida, a deglutição cultural das
técnicas importadas para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em
produto de exportação.
Entendia Andrade que era preciso “devorar” o estrangeiro para adquirir
suas qualidades espirituais e produzir algo novo – isso é o que faz Ademir
Demarchi em Pirão de Sereia, seu 15º livro em que reuniu uma
produção poética de três décadas publicada em obras anteriores acrescida
de parte ainda inédita. O legado antropofágico, porém, está mais presente
nos livros Os mortos na sala de jantar (2007), Passeios na
floresta (2008), Palavras cruzadas e Preceitos da dúvida,
que fazem parte deste volume comemorativo, ainda que apareçam de maneira
eventual em outros. É de assinalar que estes dois últimos livros saem à
luz pela primeira vez. Eis um exemplo desses versos em “Antropofagia
consentida”, que estão em Os mortos na sala de jantar:
nervosa, a mídia ganiu
um alemão comeu outro
em antropofagia consentida
longe de absurdo, normal
pesquisa demonstra:
para
o consumo há à disposição
oferecidas 500 novas pessoas
dispostas a se darem
ao
deleite de serem comidas
De Os mortos na sala de jantar, o professor
Raul Antelo diz que é um livro que se une à tradição de André Breton
(1896-1966), Paul Claudel (1868-1955) e Roger Caillois (1913-1978) no
gosto pelas pedras e pelas escrituras lapidares. Já na epígrafe de seu
livro, Demarchi reproduz um epitáfio de Marcel Duchamp (1887-1968):
além disso, é sempre os outros que morrem. E acrescenta outro de sua
lavra, à guisa de dedicatória: aos cadáveres que a vida nos dá de
comer. A propósito de epitáfios, o poeta dá a sua própria definição:
epitáfios são epígrafes
de histórias que continuam
túmulo adentro
Mais adiante, acrescenta:
das velas e
do morto o odor
das vidas queimando
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II |
Nascido em Maringá, interior do Paraná, Demarchi vive há mais de 25 anos
junto ao mar, em Santos, no litoral de São Paulo, experiência que está
mais evidenciada em livros como Costa a Costa e do Sereno que
enche o Ganges (2008), já traduzido para o espanhol e publicado no
Peru em 2010, e ainda em Janelas para lugar nenhum (1993). Em
Costa a Costa, lê-se esta homenagem às cidades siamesas de Santos e
São Vicente:
no alto do morro do itararé
o vento aos olhos sussurra
com aleivosia os sabores
das carnes doces da baía
salpicada de navios e contêineres
azulada como um peixe
sanguínea como uma sereia no cio
subo para vê-la, desço para perdê-la.
Ainda que nos versos de Os mortos na sala de jantar ressoe certo
tom poético da década de 1980, é em Maria, a cidade sem rosto
(1985, edição mimeografada) que está mais clara essa percepção de um mundo
que saía dos tempos de horror da ditadura militar (1964-1985). Como nestes
versos de “Cemitério de estátuas de Moscou” em que o poeta demonstra
também o seu precoce desencanto com a utopia soviética, que, naquele
tempo, embora caminhasse célere para a desintegração, ainda seduzia a
juventude contestadora:
no cemitério de estátuas de moscou
não há silêncio
não esse que se conhece
mudas e castradas, as estátuas estão russas
erigidas desde a revolução
lá estão, humilhadas
de lenin, pálida de estupor
de brejnev, impávida no uniforme
de stalin, maneta depois de inúmeros braços
liderando um exército de outras
formando uma corja sem fim de estátuas menores
de comissários aprisionados na pedra e no tempo
agora sem partido mas todos ainda disputando espaço
com a grama
num lugar desimportante que mereceria chinfrim
o nome de medusa cemitério jardim
Já em Preceitos da dúvida, Demarchi exercita versos curtos, nada
líricos, que anseiam se tornar epitáfios ou máximas, na tradição dos
dísticos gregos e romanos, rimados ou não, procurando constituir “uma
saída para o lugar-comum em que se tornou a expressão poética
contemporânea, tributária cordata e senil de modelos asfixiantes”, como
diz o próprio autor, que aqui se mostra como um perfeito artesão do verso
antropofágico. Eis alguns exemplos:
o jornalista
é o coveiro
do inesperado
o jornal
a cova
do deteriorado
quem não morre
envilece
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III |
Ademir Demarchi (1960) é editor das revistas de
poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica e Babel
Poética, bem como do selo editorial de livros artesanais Sereia
Ca(n)tadora. Formou-se em Letras na área de Francês pela Universidade
Estadual de Maringá e cursou o mestrado em Literatura Brasileira na
Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação de Raul Antelo,
um dos maiores especialistas acadêmicos na Antropofagia. É doutor em
Letras pela Universidade de São Paulo na mesma área. Com numerosos poemas,
artigos e ensaios publicados em livros e revistas impressos e em sites da
Internet, mantém há mais de quatro anos uma coluna semanal no jornal O
Diário do Norte do Paraná, de Maringá. |
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PIRÃO DE SEREIA,
de Ademir Demarchi. Santos: Editora Realejo/Secretaria de Cultura de
Santos 268 págs., R$ 35,00, 2012. E-mail:
editora@realejolivros.com.br |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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