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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Um campo de concentração nos
trópicos |
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SELVA TRÁGICA, de Hernâni
Donato. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 288 págs., 2011,
R$ 35,00. E-mail:
letraselvagem@letraselvagem.com.br Site:
www.letraselvagem.com.br |
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I |
Se
o Brasil já soube reverenciar os seus grandes escritores, como ao tempo
de José de Alencar (1829-1877), Machado de Assis (1839-1908), Olavo
Bilac (1865-1918), Graciliano Ramos (1892-1953) e Jorge Amado
(1912-2001), hoje não o faz tanto. E não é porque não existam grandes
escritores. É por desconhecimento mesmo das novas e velhas gerações que
são bombardeadas por literatura norte-americana de baixo nível, que aqui
chega em formato de livros de auto-ajuda.
Quem é professor de Língua Portuguesa na graduação conhece
bem o drama: se pedir para que seus alunos escrevam resenha crítica de
algum livro que já tenham lido nos últimos anos, será contemplado com
apreciações sobre os chamados best sellers de autores
norte-americanos. E mais: na maioria, são resenhas que tiram da Internet
e que assumem como suas, praticando apropriação indébita. Mas o que
esperar de um País que há muito tempo não prepara seus professores do
ensino fundamental e médio, mas pretende “inundar” as escolas públicas
de lousas digitais, provavelmente porque algum figurão há de ganhar
gordas comissões nas vendas para prefeituras e órgãos públicos?
Mas nem tudo está perdido. Ainda bem que, de vez em quando,
aparece um editor de visão e bons propósitos, como Nicodemos Sena, que,
aliás, é também um fino escritor. Diretor da Associação Cultural Letra
Selvagem, de Taubaté-SP, Sena vem relançando vários livros que já
deveriam ter sido canonizados na História da Literatura Brasileira. Mas
que, sabe-se lá por que, não o foram.
É o caso de Selva Trágica, de Hernâni Donato, que,
lançado em 1960, causou grande impacto no leitor a ponto de esgotar
quatro edições. E não só. Em 1963, em função do sucesso de crítica e de
público, foi transformado em filme em preto e branco pelo diretor
Roberto Farias, marcando a estréia de Reginaldo Farias, que viria a se
tornar um dos principais atores do cinema brasileiro. O filme ganhou o
Prêmio Saci, promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, e
representou o Brasil no Festival de Veneza. Hoje, é considerado um
“clássico” do Cinema Novo brasileiro e não pode faltar no acervo de uma
cinemateca.
Hernâni Donato, 90 anos, nasceu em Botucatu, interior de São
Paulo, em uma família de imigrantes italianos. Filho de um operário,
mesmo com dificuldades, tornou-se um intelectual de sólidos
conhecimentos e, profissionalmente, desempenhou a atividade de
publicitário. Membro da Academia Paulista de Letras, é autor de mais de
70 livros, nos mais variados gêneros, indo da literatura infanto-juvenil
à biografia, da historiografia aos costumes, da pesquisa à divulgação
científica. Traduziu a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Como
romancista, publicou ainda Chão Bruto, Rio do Tempo, O Caçador de
Esmeraldas e Filhos do Destino, que obtiveram êxito editorial
nas décadas de 1950 e 1960.
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II |
De que trata Selva Trágica? É um romance-documento
como poucos na história da Literatura Brasileira. À maneira de Gustave
Flaubert (1821-1880) e Émile Zola (1840-1902), o jovem Donato empreendeu
uma minuciosa pesquisa não só em fontes impressas como in loco,
visitando a região em que situou o seu romance e entrevistou pessoas que
serviriam para compor seus personagens. Ouviu casos terríveis contados
por antigos trabalhadores das “minas” de erva-mate no Mato Grosso, na
fronteira com o Paraguai, que só não surpreendem porque no Brasil de
hoje os jornais, de vez em quando, ainda trazem notícias de que as
autoridades federais flagraram trabalho escravo em fazendas.
É do que trata, em poucas palavras, o livro de Donato. Até
1938, período do primeiro governo de Getúlio Vargas, o nosso clone
de Hitler e Mussolini, manteve-se o monopólio da Companhia Mate
Laranjeira, empresa argentina que explorava a extração do mate nos
ervais do Mato Grosso. O trabalho era desumanamente desenvolvido em
condições que fariam o Inferno, de Dante Alighieri (1265-1321),
parecer um oásis.
Ao final da década de 1950, quando Donato embrenhou-se nos
ervais em busca de material para o seu romance, ainda havia cerca de
cinco mil homens e mulheres que trabalhavam em condições subumanas, sem
descanso, durante 14 horas por dia, na colheita e transporte da erva.
Ainda assim, há historiadores que afirmam que o período Vargas
(1930-1945) foi aquele em que pela primeira vez os trabalhadores tiveram
seus direitos reconhecidos e respeitados. Talvez isso se tenha dado em
grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, porque no interior o
Brasil sempre foi um imenso campo de concentração, que nada ficaria a
dever a Auschwitz-Birkenau ou ao Gulag soviético, ainda que em tempos de
paz. |
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III |
Entre as muitas histórias que Donato recolheu e transportou para a
literatura, estão a do homem que teve de lutar de garrucha em punho e
viu seu filho morrer, porque ousou escrever sobre o que se passava na
cultura do mate; e a do peão que trazia no corpo sinais de 18 facadas,
com cortes que haviam sido costurados com agulha e barbante de costurar
saco. Mas isso ainda era pouco: diariamente, os homens tinham de
transportar o mate entre a “mina” e o acampamento, pelo meio da selva
bruta, em fardos de 150 ou 200 quilos, amarrados às costas. Qualquer
passo em falso causava a quebra da espinha dorsal do carregador. A
vítima gemia a noite inteira, até que os demais trabalhadores pediam ao
administrador que tivesse caridade. Então, os próprios companheiros
recorriam ao jogo de cartas para que ao perdedor coubesse a tarefa de
“de dar paz ao moço desgraçado”, ou seja, dar um tiro na cabeça daquele
ser agonizante (pág.36).
Os bebedores de mate – hábito ainda largamente difundido não
só no Centro-Oeste e Sul do Brasil como nos países de fala hispânica –
que viviam na cidade, provavelmente, nem imaginavam como a erva-mate
seria cultivada. Talvez tenham ficado indignados com os fatos narrados
em Selva Trágica, o que justificaria a procura que o livro
despertou no acanhado ambiente cultural paulista e carioca daquela
época.
São narrações pungentes que horrorizam pela brutalidade com
que era tratado o “uru”, o homem responsável pelo “barbaquá”, espécie de
forno de madeira em que a erva era preparada para o consumo. Esse
coitado era obrigado a trabalhar dia e noite sem parar, remexendo as
folhas da erva sob um calor infernal. Depois de algum tempo trabalhando
sob essas condições atrozes, todos os pelos de seu corpo secavam,
caindo.
O trabalhador ficava esturricado e se transformava num feixe
de ossos, talvez parecendo um salame defumado, enquanto os diretores da
Companhia Mate Laranjeira confraternizavam-se com os donos do poder no
palácio do governo em Cuiabá, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro,
na Casa Rosada, em Buenos Aires, e no Palácio de los López, em Assunção,
garantindo o privilégio do monopólio da extração da erva.
Por aqui se vê que Selva Trágica é um romance épico,
que, incompreensivelmente, estava esquecido. E olhem que não foi por
falta de reconhecimento da crítica. Temístocles Linhares em História
Econômica do Mate (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1960) já o considerara um “romance másculo, forte, bárbaro, como bárbara
era a selva, como bárbaro era o trabalho nos ervais”. Artur Neves, na
Revista Anhembi (São Paulo, 1961), já o definira como “uma história
como nunca foi escrita em nossa terra”. |
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IV |
Como observa o professor e crítico literário Fábio Lucas em
O Caráter Social da Literatura Brasileira (Rio de Janeiro,
Editora Paz e Terra, 1970), em texto que serve de prefácio para esta
edição, Selva Trágica constitui “um dos mais altos momentos da
novelística de conteúdo social no Brasil”. Lembra Fábio Lucas que os
ervateiros eram mobilizados na fronteira Brasil-Paraguai e levados por
máfias para casas de prostituição, até que, bêbados, assinavam um
contrato leonino com a companhia. Ficavam devedores para sempre,
ganhando apenas para comer. Aos que tentavam escapar do inferno, restava
a perseguição dos capangas da companhia que, quando os capturavam,
espancavam-nos até a morte. “Não pense que gosto de mandar bater. Mas
quem segura esse povo no duro do trabalho se não usar dureza?”, dizia
Curê, o administrador (pág.142).
Os capatazes da companhia eram tão sórdidos que se sentiam
no direito de abusar das mulheres dos ervateiros, enquanto estes se
embrenhavam no mato. As mulheres serviam também para pagar dívidas,
funcionando como moeda de troca entre os homens. Mas, apesar da
sordidez da vida que levavam, havia ainda aqueles que encontravam forças
para lutar contra a exploração e defendiam a extinção do monopólio da
companhia. Entre esses, estavam os changa-y, “os mais miseráveis
dos miseráveis dos trabalhadores da erva”, aqueles que tentavam
trabalhar sem o patrão-algoz.
Luisão era um desses que escapara do inferno verde e andara
por Cuiabá e Rio de Janeiro em conversas e peditórios com os políticos
favoráveis à extinção do privilégio da companhia ervateira. Dizia aos
companheiros: “A Companhia faz também essa e faz a grande política em
Cuiabá, em São Paulo, no Rio, em Buenos Aires, sei lá onde mais. Assim,
cobre os gemidos e os gritos da pobre gente dos ervais. No andar em que
vamos, nem no fim do século teremos forças para emparelhar o nosso passo
com o passo da Companhia. Lá fora é que é preciso gritar. O Governo é
que nos pode ajudar se chega a nos ouvir. Mas o Governo só ouve ribombo,
soluços não” (págs. 136/137).
Não por coincidência publicado em 1956, mesmo ano em que
saiu à luz Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa
(1908-1967), Selva Trágica é um passo adiante do romance
regionalista da década de 1930, época em que o pobre entrou
triunfalmente na Literatura Brasileira. Ambientado no mundo da
fronteira, traz ainda uma complexa linguagem narrativa, um verdadeiro
amálgama da língua portuguesa com o linguajar guarani, como observa a
professora Nelly Novaes Coelho, da Universidade de São Paulo, na
apresentação que escreveu para esta edição.
Nesse sentido, é de acrescentar que Selva Trágica tem
muitos pontos de aproximação com o trabalho do romancista, contista e
antropólogo peruano José María Arguedas (1911-1969), autor de Los
Ríos Profundos (1956), Todas las Sangres (1964) e El Zorro
de Arriba y el Zorro de Abajo (1971, póstumo), entre outros, que
igualmente fazia um trabalho de campo antes de escrever sobre a
realidade do mundo quechua no Peru. Não por acaso os livros de
ambos são permeados por inevitáveis notas de rodapé que servem para
explicar as palavras tiradas do idioma indígena.
Houve ainda quem comparasse Hernâni Donato com Erskine
Caldwell (1903-1987) e John Steinbeck (1902-1968), a geração
norte-americana da revolta, o Caldwell de Chão Trágico (Tragic
Ground, 1944), um mergulho na vida dos vencidos e desgraçados do Sul
dos Estados Unidos, e o Steinbeck de As Vinhas da Ira (The
Grapes of Wrath,1937), que conta a história de uma família pobre no
estado de Oklahoma durante a Grande Depressão de 1929, que, obviamente,
nada têm a ver com a atual geração de norte-americanos produtores de
best sellers que envenenam a nossa pouco letrada juventude. |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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