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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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A
poesia do cotidiano de Ronaldo Cagiano |
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O SOL NAS FERIDAS,
de Ronaldo Cagiano. São Paulo: Dobra Editorial, 2011, 152 págs., R$
30,00. E-mail: contato@dobraeditorial.com.br Site:
www.dobraeditorial.com.br |
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I |
O sol nas feridas
é um inventário lírico da trajetória de Ronaldo Cagiano (1961), cobrindo
um itinerário poético que começou em 1989, com a publicação de
Palavra engajada, depois de sua saída da pequena Cataguases – “para
não ficar menor que ela” –, passando por uma longa vivência em Brasília,
até a sua recente transferência para São Paulo – “a metrópole apavorada
e catatônica” – e viagens realizadas nos últimos anos a Portugal, Irã,
Espanha e Argentina.
Em “Autorretrato”, as influências sofridas pelo poeta nesse
trajeto são nítidas: desde os versos gonzagueanos – “Não tive ouro nem
gado/ muito menos fazenda ou legado,/ mas sinto-me mal e compulsório,/
nesse rebanho catatônico,/ nesse estábulo funcional/ em que me lançou o
destino” –, passando por reminiscências drummondianas – “Esse lugar em
que me (des)habito/ fronteiriço do hospício e do calabouço/ é uma
Itabira pesada demais,/ a pedra no caminho/ de josés sem agora” –, ou
guimarãesroseana – “(...) reivindico a terceira margem/ esse rio que
nunca dorme dentro de nós” –, até uma homenagem ao poeta argentino Juan
Gelman.
Na poesia de Cagiano se percebe uma tensão entre o lirismo
do autor e a realidade do advogado funcionário de uma instituição
bancária que se manifesta em imagens obsessivas, como se constata em
“Dia sem nome”, em que o poeta/burocrata reproduz o dia a dia em que
vive: “Na estação de trabalho/ os colegas cumprimentam-se/ com a mesma
frieza burocrática/ de todos os dias”. (...) Ah, como dói vê-los tão
mecânicos/ tão protocolares/ tão passivos e sem ênfase”.
É o que se vê explicitamente em “Rotina bancária”: “Cafetões
da vida bovina/ voyeurs do coito titânico e animal/ da busca de
resultados/ do aumento da produtividade”. E mais ainda em “Dia sem nome”
em que consegue extrair poesia da linguagem profissional – que até
assustaria Mikhail Bakhtin (1895-1975), se o filólogo russo percebesse
Português – que se ouve no dia a dia das reuniões em empresas privadas e
estatais, eivada de expressões inglesas que poderiam muito bem ser
substituídas por palavras do vocabulário lusófono, mas que ali estão
apenas para dar àqueles que as pronunciam um pretenso conhecimento: “Precisamos
estar focados/ Ser pró-ativos/ verificar a expertise/ startar novas
ideias/ evitar retrabalho/ eliminar os gaps e gargalos/ racionalizar os
procedimentos/ diminuir custos/ otimizar resultados/ aumentar a
produtividade/ o envolvimento do grupo é fundamental/ a coesão da equipe
é salutar para a performance/ o feedback é indispensável”. |
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II |
Como todo
grande poeta, Cagiano se volta também para o regional, para a sua
infância. Nascido no interior de Minas Gerais, na mítica Cataguases, de
Rosário Fusco (1910-1977) e os “verdes” e de Humberto Mauro (1897-1983),
não disfarça a influência recebida de poetas imensamente mineiros e
universais como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ou menos
divulgados como Donizete Galvão (1954), a quem homenageia reproduzindo
seus versos na epígrafe de “Ressonâncias”: “Nunca sai dessa Minas/ que
não termina”. Nesse poema, é de Cataguases que lembra quando diz que
“ainda ecoam/ na exilada memória/ os dobrados da Banda Municipal/ e a
Maria Fumaça irrompendo/ com sua rouquidão metálica/ no breu imenso da
noite”.
Tendo vivido boa parte de sua trajetória profissional em
Brasília, onde se formou em Direito, o poeta também carrega no peito o
cotidiano da “cidade sem esquinas” e traduz em versos a evocação
mirífica de suas vivências no Planalto brasileiro, onde em meio à
corrupção deslavada dos mais afortunados há ainda quem more em casas de
chão batido e fossas sépticas a poucos quilômetros do Palácio da
Alvorada: “seus botecos suas noites/ sua música seus automóveis/ seus
escândalos suas feridas/ seu festim de esgotos no Paranoá”.
Nos poemas da maturidade, o poeta mostra a sua face de
globetrotter, suas impressões de viagens. Em “Voo 7264”, fala da Paris
sartreana e de outros tantos intelectuais para concluir que a Cidade-Luz
pode lhe ensinar mais que todas as religiões. Em “Postal”, congela na
imaginação uma Buenos Aires de cartão-postal: “Da calçada do Café
Tortoni/ ouço um tango a espantar-me/ o tédio e a solidão: ele se
irradia auspicioso/ pela Avenida de Mayo/ indiferente à sinfonia/
repetitiva dos semáforos,/ afrontando a anarquia das buzinas/ e as
indelicadezas do trânsito”. |
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III |
Outro
tema recorrente na poesia madura de Cagiano é o de sua (má) relação com
a religião – ou a ausência desta em sua vida, substituída pelo culto à
literatura e aos seus nomes universais. É o que se vê em “Ad nauseam”:
“Quando alguém vem falar de Deus/ dou-lhe as costas/ e abro um livro.
Não creio em nada”. Ou ainda em: “Onde estava Deus/, quando Hitler
avançou/ com seus coturnos, suas bombas/ seus campos de concentração/
sobre toda a humanidade?” Essa irreligiosidade se extravasa quando
avança contra o “catolicismo pedófilo” e o “protestantismo mercenário”,
porque “essa fé não beatifica,/ senão bestifica e aliena/ porque cevada
no vazio/ na falsa panaceia/ que tropeça na falácia/ que trapaça na
audácia/ de um deus onisciente e autoritário/ mas duvidoso/ e
impotente”.
Ainda que o leitor não seja cético nem agnóstico como o
poeta, não há como deixar de se identificar com a sua agonia diante de
um mundo sem saída. Feita de desespero, a poesia de Cagiano se constrói
com os tijolos e a argamassa de um cotidiano profundamente brasileiro e
suas tantas feridas expostas não só ao sol, mas às chuvas tropicais que,
periodicamente, derrubam morros, casas e edifícios mal construídos, em
meio à indiferença de gatunos travestidos de autoridades. Essa agonia
também se manifesta mesmo quando o poeta se põe a reproduzir a realidade
de outros países, já que o faz sempre com um olhar verde-amarelo. Por
isso, pode-se dizer sem medo de errar que Cagiano está entre os melhores
poetas do Brasil deste começo de século XXI. |
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IV |
Ronaldo
Cagiano é escritor, ensaísta e crítico literário. Viveu em Brasília de
1979 até recentemente, quando se transferiu definitivamente para São
Paulo. Publica em diversos jornais e revistas do País e do exterior,
dentre os quais Hoje em Dia, de Belo Horizonte, Jornal de
Brasília, Jornal Opção, de Goiânia, Correio Braziliense
e Revista Cult, de São Paulo.
Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de
Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto.
Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto
Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda
Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasiliense
Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).
Publicou ainda Colheita amarga & outras angústias
(poesias, São Paulo, 1990), Exílio (poesia, São Paulo, 1990),
Palavracesa (poesia, Brasília, 1994), O prazer da leitura, em
parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Brasília, 1997), Prismas
– literatura e outros temas (crítica literária, Brasília, 1997),
Canção dentro da noite (poesia, Brasília, 1999), Espelho, espelho
meu, em parceria com Joilson Portocalvo (infanto-juvenil, Brasília,
2000), Dezembro indigesto (contos, Brasília, 2001), Concerto
para arranha-céus (contos, LGE Editora, Brasília, 2005), e
Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio de
Janeiro, 2006). |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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