Quem também subverteu a
tradicional grandiloqüência da poesia lusa foi Manuel Alegre (1936),
que se destacou na luta estudantil contra o regime forte de António de
Oliveira Salazar (1889-1970) e ainda hoje é voz que se levanta na
Assembleia da República contras as iniqüidades cometidas pelos
governantes, o homem “do contra” , que se pode sentir em seu poema
“Carta a Sophia, ou O quinto poema do português errante”:
Querida Sophia:
como os índios do seu poema
também eu
procurei o país sem mal.
Em dez anos de
exílio o imaginei
como os índios
utópicos também eu queria
um outro
Portugal em Portugal.
Mas quando
regressei eu não o vi
como eles me
perdi e nunca achei
o país sem mal.
Talvez a
própria vida seja isto
passar montanha
e mar sem se dar conta
de que o único
sentido é procurar.
Como os índios
do seu poema eu não desisto
sou um
português errante a caminhar
em busca do
país que não se encontra.
Diz Fernando Pinto do Amaral
que, a partir da década de 1970, gestou-se na poesia portuguesa a busca
de uma lírica mais próxima do cotidiano, na tentativa de aproximar-se
mais do leitor. Dessa geração, o nome mais consagrado talvez seja o de
Nuno Júdice (1949), o mais traduzido dos poetas portugueses de hoje.
Cultor do verso livre, seu estilo aproxima-se em demasia do brasileiro
João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Quem duvida que leia o poema
“Sinfonia para uma noite e alguns cães” e depois o compare com aquele em
que João Cabral de Melo Neto fala do esforço dos galos para tecerem a
manhã:
De noite, um
cão começa a ladrar; e,
atrás dele,
todos os cães da noite
se põem a
ladrar. Depois, o primeiro
cão cala-se.
Pouco a pouco, os outros
também se
calam, até que o silêncio
se instala,
como antes de o primeiro
cão ter
ladrado. De noite, não
é possível
saber por que é que um cão ladra,
se o não
estamos a ver. Talvez porque
alguém tenha
passado por trás de um
muro; talvez
por causa de um gato (essas
sombras que se
esgueiram pelas portas).
Não é preciso
encontrar razões concretas
para justificar
a noite de todos os
cães: mas é
verdade que um cão, quando
ladra, e acorda
os outros cães, acorda
a própria
noite, os seus fantasmas, o que
não se pode
ver, isto é, o centro da
noite, o negro
motor do mundo.
III
Entre as vozes femininas mais
importantes da poesia portuguesa dos últimos anos, está o de Rosa Alice
Branco (1950), que se iguala ao de Ana Maria Hatherly (1929), ambas
contempladas nesta antologia ao lado de Luísa Neto Jorge (1939-1989),
Fiama Hasse País Brandão (1938) e Sophia de Mello Bryner Andresen, todas
de gerações anteriores e poetas das mais finas. Como exemplo do vigor de
sua poesia, veja-se este trecho de “Atrás dos dias”, um hino ao amor
materno:
(...) Fazes os
deveres, ensino
os números a
obedecerem-te e a amares
as letras umas
ao lado das outras, solidárias
como uma
pequena vírgula para que o silêncio
receba a tua
voz. Voo junto às tuas asas,
lubrifico-as e
fico a ver como se suavizam
os traços do
teu rosto. Agora vais partir.
Irei um pouco
atrás com a cor da tarde
para não ser
vista. Por mais que vás
estarei de
mansinho atrás das asas. Ser mãe
é ir assim. É
assim que vou à fonte.
Como Fernando Pinto do Amaral
reconhece em seu prefácio, muitos nomes representativos da poesia lusa
podem ter ficado de fora, mas este é um risco implícito de toda
antologia. Seja como for, este livro constitui um panorama lúcido da
vitalidade atual da literatura portuguesa, que o leitor russo tem
oportunidade de conhecer pela versão dos tradutores do Centro Lusófono
Camões.