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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Uma descida ao inferno da
loucura
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DIÁRIO DE
UM MÉDICO LOUCO,
de Edson Amâncio. Taubaté: Editora LetraSelvagem, 152 págs., 2012, R$
30,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site:
letraselvagem.com.br |
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I |
Se como diz a filosofia popular,
de médico e louco todos têm um pouco, a um médico louco não há o que
acrescentar. Foi a esse personagem insólito que o médico e neurocientista
Edson Amâncio recorreu para empreender a sua terceira incursão no romance
com Diário de um Médico Louco
(Taubaté, LetraSelvagem, 2012). Com um tanto de autobiográfico – que fica
claro quando se sabe que o autor realizou nos anos 80 uma viagem a São
Petersburgo e Moscou, ainda à época do comunismo –, este relato é um
diálogo que Amâncio faz não com a literatura médica a que teve acesso como
profissional da área de Saúde, mas com autores que marcaram a sua vida de
ficcionista, especialmente Fiodor Dostoievski (1821-1881), a quem estudou
em profundidade, até porque atraído pelas ligações que pode haver entre
genialidade e esquizofrenia ou até mesmo com o desequilíbrio mental.
Não por acaso Amâncio recupera neste livro a
São Petersburgo que conheceu – ao tempo, chamada de Leningrado –, com o
seu Hermitage, o famoso museu, a Fortaleza de São Pedro e São Paulo – onde
Dostoievski permaneceu antes de ser encaminhado para o exílio na Sibéria –
e, principalmente, o Museu Literário-Memorial dedicado ao autor russo que
fica no mesmo apartamento da rua Kuznechny 5/2, onde ele morou, aberto em
novembro de 1971, por ocasião do 150º aniversário do nascimento do
escritor.
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II |
O relato começa com um clichê da literatura. No caso, é um médico escritor
que nada tem de louco que tem acesso a um texto de outrem, que seria outro
médico às voltas com distúrbios mentais, um tal Dr.B*. Pelo que se lê da
apresentação escrita por esse médico sensato, o tal Dr. B* seria um médico
um tanto inconsequente, dado a prazeres etílicos, gastão, acossado por
credores e capaz de tomar atitudes tresloucadas.
Por acaso, nos anos 70 e 80, no
círculo de médicos contemporâneos do autor na cidade de Santos, havia um
médico que pouco fugia desse figurino: um anestesista considerado de mão
cheia, mas que, ao final das tardes de domingo, invariavelmente, saía da
praia carregado em triunfo, depois de dissipações capazes de fazer corar
Baco.
Resultado de uma mente conturbada, este
irregular relato não tem um fio condutor, como reconhece o médico sensato
na apresentação, a quem o colega desvairado passou a tarefa de encontrar
meios de torná-lo público depois de sua morte. Se não se trata de uma
memória de além-túmulo, à semelhança ao Brás Cubas de Machado de Assis
(1839-1908), o manuscrito teria sido localizado num baú por familiares do
médico tresloucado e traria um apelo do autor ao médico sensato seu amigo
para que o publicasse de alguma forma.
Depois de contar suas primeiras decepções com
a medicina, ainda ao tempo de acadêmico na cidade de Santos, o médico
relata uma série de acontecimentos insólitos no melhor estilo machadiano
em que procura mostrar que os loucos estão na sociedade enquanto os de
mente sã estariam nos asilos e manicômios – ou seja, um mundo de sinais
invertidos. Em meio ao relato, o médico louco surpreende o leitor com os
acontecimentos da viagem que fizera a Rússia, contando em detalhes
pequenos incidentes como o hábito que os hotéis moscovitas preservam até
hoje de permitir que, de madrugada, vozes femininas langorosas liguem para
o quarto do hóspede oferecendo serviços íntimos, esteja o cliente
acompanhado ou não da esposa.
Mais que isso, ler este relato é uma
oportunidade de conhecer um pouco de Dostoievski, sobre cuja obra o autor
mesmo – não o médico louco – é especialista. Assim, desfilam aos olhos do
leitor pormenores do outro museu dedicado a Dostoievski, que fica ao Norte
de Moscou, montado na casa onde o romancista passou a sua infância, perto
do hospital em que seu pai trabalhava.
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III |
O mundo
vivido pelo médico louco de Amâncio é o mundo do pesadelo e do bode
expiatório, de cativeiro, dor e confusão, como diria o crítico canadense
Northrop Frye (1912-1992). Ou ainda: o mundo do trabalho pervertido ou
desolado, de ruínas e de catacumbas, instrumentos de tortura e monumentos
à insensatez, que, por sinal, são encontrados no mundo ficcional de
Dostoievski. Seja como for, depois da descida ao inferno dostoievskiano, o
protagonista do relato retorna à cidade de Santos como a um mundo que
morre, tal qual o salmão idoso retorna ao local de sua procriação, para se
continuar aqui a citar Frye.
Como observa o poeta e crítico Ademir
Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
(USP) e editor da Revista Babel,
autor do texto de apresentação, o livro tenta transmitir uma “verdade”, um
relato de algo que existiu, mas que, para o leitor, o tempo todo vai se
colocando, de fato, como seguidos falseamentos. “A dúvida, assim, perpassa
a leitura, afinal em nada se pode compactuar com o narrador, pois as
viagens que relata, uma delas à Rússia de Dostoievski, podem ser
totalmente falsas, uma vez que fantasias, delírios de um louco que não
saiu do entorno de seu quarto, para mencionar Maistre”, diz.
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IV |
Nascido em Sacramento-MG em 1948, Edson Amâncio é médico neurologista
estabelecido em Santos há mais de
30 anos. Graduado, mestre e doutor em Medicina, integra o corpo clínico do
Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Sua
estréia literária deu-se com os contos de
Em pleno delito (1986), vindo a
seguir Cruz das almas (1988),
romance, Pergunte ao mineiro
(1995), crônicas, e Minha cara
impune (1997), romance.
Em 2006, publicou
O homem que fazia chover e outras
histórias inventadas pela mente, obra que chamou a atenção da crítica
e do público por discorrer sobre as ligações ainda obscuras entre
distúrbios psíquicos e genialidade. Nesse livro, o autor comenta casos
clínicos bizarros de pacientes comuns e de mentes consideradas geniais
como John Nash, Mozart, Machado de Assis, Van Gogh, Flaubert, Virgínia
Wolf e Bill Gates.
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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