Não se pode dizer que a reedição de Clara dos Anjos, de Lima
Barreto (1881-1922), que narra as desventuras de uma adolescente pobre e
mulata, filha de um carteiro, seduzida por um malandro branco, apesar
das cautelas familiares, seja uma boa oportunidade para se reavaliar o
conceito emitido por antigos críticos segundo o qual este romance que
não estaria à altura da melhor produção de seu autor. Não está mesmo. Se
não constitui um romance de todo falhado, a verdade é que, se comparado
com os de Machado de Assis (1839-1908), cujas origens sociais são
idênticas às de Lima Barreto, este livro deixa a desejar em alguns
aspectos, inclusive, em certa pobreza vocabular, ainda que seja
fundamental conhecê-lo para se entender a grandeza de toda a obra do
autor.
Publicado postumamente em folhetim entre 1923 e 1924 e em
livro em 1948, Clara dos Anjos, provavelmente, ainda passaria
várias vezes pela lima horaciana de Lima Barreto, não tivesse o autor
uma vida tão breve e interrompida aos 41 anos de idade por um colapso
cardíaco depois de impiedosamente minada pelo alcoolismo. Fosse como
fosse, o certo é que a trajetória de uma mulata jovem moradora nos
subúrbios do Rio de Janeiro do começo do século XX foi uma ideia que
perseguiu Lima Barreto desde cedo, exatamente desde 1904, quando começou
a tentar colocar em pé o esqueleto desse romance. Levou quase vinte anos
nessa luta e, quando morreu, ainda estaria às voltas com o romance.
De fato, a obra traz algumas descrições que, mesmo hoje,
quando o Rio de Janeiro está totalmente desfigurado em relação ao que
era há um século, graças às picaretas de uma falsa modernidade que não
respeita nada e só leva em conta os lucros das construtoras e
incorporadoras que seguem sempre montadas à ignorância cavalar dos
governantes, seriam perfeitamente dispensáveis, pois tiram um pouco o
ritmo da trama. Uma trama cujo desfecho está anunciado desde as
primeiras páginas: a de que a jovem mulata haveria de sucumbir à lábia
do malandro carioca suburbano, de nome Cassi Jones, entregando-se a ele
para, logo em seguida, ser rejeitada. E condenada a criar um filho sem
pai.
Já o sedutor Cassi é pintado com tintas pouco carregadas.
Contra ele, vê-se apenas que é um incorrigível galanteador de donzelas
pobres, mas, ao contrário de outras personagens, não é dado ao vício da
bebida. De pele sardenta e cabelos claros, pouco afeito ao trabalho,
Cassi serviria hoje mais para compor um personagem comum na cena
política brasileira: o malandrão de poucos estudos que, graças à lábia,
sabe como convencer amigos, conhecidos e até multidões para, assim,
galgar espaço na vida sem muito esforço. São tipos comuns hoje no
sindicalismo e nos partidos políticos.
II
Apesar de tudo o que se escreveu aqui, é claro que Clara
dos Anjos constitui um texto-chave para se entender a obra do
criador de Triste fim de Policarpo Quarema, autor de cabeceira e
inspirador de outro escritor que procurou retratar a vida dos
proletários e marginais que habitam as periferias das grandes cidades
brasileiras, João Antonio (1937-1996). Além disso, esta nova edição pela
Companhia das Letras traz notas explicativas a cargo de Lilia Moritz
Schwarcz e Pedro Galdino, que se tornam fundamentais para a compreensão
de alguns trechos e para a localização de determinados logradouros que
no Rio de Janeiro desfigurado de hoje já não existem.
Sem contar que os editores tiveram o bom senso de reproduzir
a introdução escrita por Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), publicada
originalmente na edição de Clara dos Anjos de 1948 pela editora
Mérito, e o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que saiu
na edição de 1956 preparada pela editora Brasiliense. E ainda encomendar
uma apresentação à crítica literária Beatriz Resende, professora titular
da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra de Lima
Barreto, que não só elucida muitas passagens do romance e aspectos da
escrita do autor como traça um panorama do que foi a rejeição sofrida
pelo romancista/jornalista a uma época em que o Brasil vivia um regime
de apartheid disfarçado.
Apartheid, aliás, que pôde ser superado por alguns
poucos afrodescendentes que não só tiveram engenho para adquirir fortuna
e prestígio social como por aqueles que souberam ascender socialmente
por meio da aquisição de cultura e conhecimento. Entre esses, podemos
citar não só Machado de Assis, que procurou seguir caminho inverso de
Lima Barreto, saindo do morro do Livramento para viver em bairros de
classe média e abastada, depois de conquistada uma boa posição na
burocracia estatal, como ainda por pelo menos dois presidentes da
República, Campos Sales (1841-1913) e Nilo Peçanha (1867-1924), ambos
com visíveis traços fenótipos de descendência africana. Todos,
obviamente, graças à riqueza familiar e ao prestígio social, tornaram-se
“homens invisíveis”, para se citar aqui Invisible Man (1952),
romance do norte-americano Ralph Ellison (1914-1994).
É de lembrar que, no Brasil, o dinheiro sempre teve o poder
de “embranquecer” pessoas que, quando bem postas na vida, sempre
tratavam de “esquecer” as origens. Ainda na década de 1980 – não faz
tanto tempo assim... –, alguns senadores e deputados fugiam de qualquer
reportagem que pretendesse fazer alguma referência a suas origens
raciais. Bem situados no poder, o que menos queriam lembrar era que
carregavam sangue africano ou indígena nas veias.
III
Não foi o caso de Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido
no Rio de Janeiro, filho do tipógrafo João Henriques e da professora
Amália Augusta, ambos mulatos. Seu padrinho era o visconde de Ouro
Preto, senador do Império. A mãe, escrava liberta, morreu precocemente,
quando ele tinha seis anos. As marcas desse período da história
brasileira, que inclui a abolição da escravatura em 1888, sempre
ocuparam o centro da obra literária de Lima Barreto, que procurou
denunciar o preconceito racial e a difícil inserção de negros e mulatos
na sociedade brasileira.
Lima Barreto sempre preferiu o subúrbio, o “refúgio dos
infelizes”, território que passara a abrigar “os que perderam o emprego,
as fortunas, os que faliram nos negócios”. Mas, ao contrário do pobre
que só entraria triunfalmente no romance brasileiro na década de 1930
cheio de solidariedade com o próximo – inspirado pelas idéias
socialistas e comunistas –, os pobres de Lima Barreto são “feios, sujos
e malvados”, para lembrar aqui um filme de Ettore Scola.
Nada solidário, quem é um pouco mais branco já olha o mais
escuro com desdém. A família cujo patriarca – geralmente, funcionário
público – ganha um pouco mais já encontra motivos para menosprezar
aquela que vive em maiores dificuldades. A família de Cassi, por
exemplo, fazia questão de se mostrar superior às demais no subúrbio
porque teria tido um ascendente importante. Isso era comum no Brasil:
não havia família de descendentes de portugueses que, ao enriquecer, não
tratasse de recorrer à arte da heráldica. Mais tarde, quando um dos
rebentos ia a Portugal em busca de terras e brasões, geralmente,
descobria que pais, avós ou bisavós nunca passaram de aldeões que se
haviam atirado ao mar para escapar da pobreza.
Diz Sérgio Buarque de Holanda que Lima Barreto nunca
conseguiu reunir forças para vencer, “ou sutilezas para esconder, à
maneira de Machado, o estigma que o humilhava”. Pelo contrário. Em seus
contos, romances e artigos de jornal ou revista, há vários exemplos de
críticas ao comportamento larvar de alguns mestiços diante de brancos.
Diante disso, não foi à toa que Lima Barreto também
encontrou obstáculos quando tentou ascender na república literária,
ainda que a casa principal que abrigava a intelectualidade da época
tivesse sido fundada exatamente por Machado de Assis. Intelectual
versado em Humanidades, que por pouco não se formara engenheiro – a
loucura que acometeria o seu pai o obrigaria a ganhar o sustento para a
família –, Lima Barreto procurou por mais de uma vez alcançar o
reconhecimento de seu talento por aquela sociedade ainda escravocrata no
pensamento, ao candidatar-se sem êxito a uma vaga na Academia Brasileira
de Letras.
Ainda no prefácio de 1956, Sérgio Buarque de Holanda recorda
uma observação de Astrojildo Pereira (1890-1965) segundo a qual Lima
Barreto pertenceria à categoria dos “romancistas que mais se confessam”,
isto é, daqueles que menos se escondem e menos se dissimulam. É o que se
constata também nos registros de seu Diário íntimo, iniciado em
1900, que reúne impressões sobre a vida urbana do Rio de Janeiro.
IV
Lima Barreto começou sua colaboração mais regular na
imprensa em 1905, quando escreveu reportagens publicadas no Correio
da Manhã, sobre a demolição do Morro do Castelo, no centro do Rio,
consideradas um dos marcos inaugurais do jornalismo literário
brasileiro. Dele são ainda os romances Recordações do escrivão Isaías
Caminha e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.
O primeiro saiu em folhetim na revista Floreal, em
1907, e em livro em 1909 e o segundo seria publicado apenas em 1919. No
primeiro romance, o jornal Correio da Manhã e seu diretor de
redação são retratados de maneira impiedosa, ao que parece como uma
espécie de vingança por seu autor ter sido maltratado. Provavelmente,
Lima Barreto teria recebido como pagamento um salário tão miserável que
não daria sequer para pagar uma dose diária de parati. Teve, então, seu
nome proscrito na grande imprensa carioca.
O escritor publicou ainda crônicas, contos e peças satíricas
em veículos como o Diabo, Revista da Época, Fon-Fon,
Careta, Brás Cubas, O Malho e Correio da Noite.
Colaborou também com o ABC, periódico de orientação marxista e
revolucionária. Em 1911, escreveu e publicou Triste fim de Policarpo
Quaresma em folhetim do Jornal do Commercio. Levando-se em
conta a precariedade dos jornais e revistas da época, é de imaginar que
escrevesse apenas pelo prazer da polêmica ou pelo fascínio da letra
impressa. Afinal, se nos dias de hoje a grande imprensa costuma não
pagar nada aos seus articulistas-colaboradores, só um tolo poderia
imaginar que há cem anos teria sido diferente.
Publicou ainda Numa e ninfa (1915) e Histórias e
sonhos (1920). Postumamente saíram Os bruzundangas e as
crônicas de Bagatelas e mafuás.