Adelto Gonçalves

Lima Barreto e o refúgio dos infelizes     

CLARA DOS ANJOS, de Lima Barreto, com apresentação de Beatriz Resende, introdução de Lúcia Miguel Pereira, prefácio de Sérgio Buarque de Holanda e notas de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Galdino. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2012, 304 págs., R$ 26,00. Site: www.companhiadasletras.com.br

 I         

            Não se pode dizer que a reedição de Clara dos Anjos, de Lima Barreto (1881-1922), que narra as desventuras de uma adolescente pobre e mulata, filha de um carteiro, seduzida por um malandro branco, apesar das cautelas familiares, seja uma boa oportunidade para se reavaliar o conceito emitido por antigos críticos segundo o qual este romance que não estaria à altura da melhor produção de seu autor. Não está mesmo. Se não constitui um romance de todo falhado, a verdade é que, se comparado com os de Machado de Assis (1839-1908), cujas origens sociais são idênticas às de Lima Barreto, este livro deixa a desejar em alguns aspectos, inclusive, em certa pobreza vocabular, ainda que seja fundamental conhecê-lo para se entender a grandeza de toda a obra do autor.

            Publicado postumamente em folhetim entre 1923 e 1924 e em livro em 1948, Clara dos Anjos, provavelmente, ainda passaria várias vezes pela lima horaciana de Lima Barreto, não tivesse o autor uma vida tão breve e interrompida aos 41 anos de idade por um colapso cardíaco depois de impiedosamente minada pelo alcoolismo. Fosse como fosse, o certo é que a trajetória de uma mulata jovem moradora nos subúrbios do Rio de Janeiro do começo do século XX foi uma ideia que perseguiu Lima Barreto desde cedo, exatamente desde 1904, quando começou a tentar colocar em pé o esqueleto desse romance. Levou quase vinte anos nessa luta e, quando morreu, ainda estaria às voltas com o romance.

            De fato, a obra traz algumas descrições que, mesmo hoje, quando o Rio de Janeiro está totalmente desfigurado em relação ao que era há um século, graças às picaretas de uma falsa modernidade que não respeita nada e só leva em conta os lucros das construtoras e incorporadoras que seguem sempre montadas à ignorância cavalar dos governantes, seriam perfeitamente dispensáveis, pois tiram um pouco o ritmo da trama. Uma trama cujo desfecho está anunciado desde as primeiras páginas: a de que a jovem mulata haveria de sucumbir à lábia do malandro carioca suburbano, de nome Cassi Jones, entregando-se a ele para, logo em seguida, ser rejeitada. E condenada a criar um filho sem pai.           

            Já o sedutor Cassi é pintado com tintas pouco carregadas. Contra ele, vê-se apenas que é um incorrigível galanteador de donzelas pobres, mas, ao contrário de outras personagens, não é dado ao vício da bebida. De pele sardenta e cabelos claros, pouco afeito ao trabalho, Cassi serviria hoje mais para compor um personagem comum na cena política brasileira: o malandrão de poucos estudos que, graças à lábia, sabe como convencer amigos, conhecidos e até multidões para, assim, galgar espaço na vida sem muito esforço. São tipos comuns hoje no sindicalismo e nos partidos políticos.

                                                           II

            Apesar de tudo o que se escreveu aqui, é claro que Clara dos Anjos constitui um texto-chave para se entender a obra do criador de Triste fim de Policarpo Quarema, autor de cabeceira e inspirador de outro escritor que procurou retratar a vida dos proletários e marginais que habitam as periferias das grandes cidades brasileiras, João Antonio (1937-1996). Além disso, esta nova edição pela Companhia das Letras traz notas explicativas a cargo de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Galdino, que se tornam fundamentais para a compreensão de alguns trechos e para a localização de determinados logradouros que no Rio de Janeiro desfigurado de hoje já não existem.          

            Sem contar que os editores tiveram o bom senso de reproduzir a introdução escrita por Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), publicada originalmente na edição de Clara dos Anjos de 1948 pela editora Mérito, e o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que saiu na edição de 1956 preparada pela editora Brasiliense. E ainda encomendar uma apresentação à crítica literária Beatriz Resende, professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista na obra de Lima Barreto, que não só elucida muitas passagens do romance e aspectos da escrita do autor como traça um panorama do que foi a rejeição sofrida pelo romancista/jornalista a uma época em que o Brasil vivia um regime de apartheid disfarçado.

            Apartheid, aliás, que pôde ser superado por alguns poucos afrodescendentes que não só tiveram engenho para adquirir fortuna e prestígio social como por aqueles que souberam ascender socialmente por meio da aquisição de cultura e conhecimento. Entre esses, podemos citar não só Machado de Assis, que procurou seguir caminho inverso de Lima Barreto, saindo do morro do Livramento para viver em bairros de classe média e abastada, depois de conquistada uma boa posição na burocracia estatal, como ainda por pelo menos dois presidentes da República, Campos Sales (1841-1913) e Nilo Peçanha (1867-1924), ambos com visíveis traços fenótipos de descendência africana. Todos, obviamente, graças à riqueza familiar e ao prestígio social, tornaram-se “homens invisíveis”, para se citar aqui Invisible Man (1952), romance do norte-americano Ralph Ellison (1914-1994).

            É de lembrar que, no Brasil, o dinheiro sempre teve o poder de “embranquecer” pessoas que, quando bem postas na vida, sempre tratavam de “esquecer” as origens. Ainda na década de 1980 – não faz tanto tempo assim... –, alguns senadores e deputados fugiam de qualquer reportagem que pretendesse fazer alguma referência a suas origens raciais. Bem situados no poder, o que menos queriam lembrar era que carregavam sangue africano ou indígena nas veias.

                                                           III

            Não foi o caso de Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido no Rio de Janeiro, filho do tipógrafo João Henriques e da professora Amália Augusta, ambos mulatos. Seu padrinho era o visconde de Ouro Preto, senador do Império. A mãe, escrava liberta, morreu precocemente, quando ele tinha seis anos. As marcas desse período da história brasileira, que inclui a abolição da escravatura em 1888, sempre ocuparam o centro da obra literária de Lima Barreto, que procurou denunciar o preconceito racial e a difícil inserção de negros e mulatos na sociedade brasileira.

            Lima Barreto sempre preferiu o subúrbio, o “refúgio dos infelizes”, território que passara a abrigar “os que perderam o emprego, as fortunas, os que faliram nos negócios”. Mas, ao contrário do pobre que só entraria triunfalmente no romance brasileiro na década de 1930 cheio de solidariedade com o próximo – inspirado pelas idéias socialistas e comunistas –, os pobres de Lima Barreto são “feios, sujos e malvados”, para lembrar aqui um filme de Ettore Scola.

            Nada solidário, quem é um pouco mais branco já olha o mais escuro com desdém. A família cujo patriarca – geralmente, funcionário público – ganha um pouco mais já encontra motivos para menosprezar aquela que vive em maiores dificuldades. A família de Cassi, por exemplo, fazia questão de se mostrar superior às demais no subúrbio porque teria tido um ascendente importante. Isso era comum no Brasil: não havia família de descendentes de portugueses que, ao enriquecer, não tratasse de recorrer à arte da heráldica. Mais tarde, quando um dos rebentos ia a Portugal em busca de terras e brasões, geralmente, descobria que pais, avós ou bisavós nunca passaram de aldeões que se haviam atirado ao mar para escapar da pobreza.

            Diz Sérgio Buarque de Holanda que Lima Barreto nunca conseguiu reunir forças para vencer, “ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o humilhava”. Pelo contrário. Em seus contos, romances e artigos de jornal ou revista, há vários exemplos de críticas ao comportamento larvar de alguns mestiços diante de brancos.

            Diante disso, não foi à toa que Lima Barreto também encontrou obstáculos quando tentou ascender na república literária, ainda que a casa principal que abrigava a intelectualidade da época tivesse sido fundada exatamente por Machado de Assis. Intelectual versado em Humanidades, que por pouco não se formara engenheiro – a loucura que acometeria o seu pai o obrigaria a ganhar o sustento para a família –, Lima Barreto procurou por mais de uma vez alcançar o reconhecimento de seu talento por aquela sociedade ainda escravocrata no pensamento, ao candidatar-se sem êxito a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.

            Ainda no prefácio de 1956, Sérgio Buarque de Holanda recorda uma observação de Astrojildo Pereira (1890-1965) segundo a qual Lima Barreto pertenceria à categoria dos “romancistas que mais se confessam”, isto é, daqueles que menos se escondem e menos se dissimulam. É o que se constata também nos registros de seu Diário íntimo, iniciado em 1900, que reúne impressões sobre a vida urbana do Rio de Janeiro.

                                                           IV

            Lima Barreto começou sua colaboração mais regular na imprensa em 1905, quando escreveu reportagens publicadas no Correio da Manhã, sobre a demolição do Morro do Castelo, no centro do Rio, consideradas um dos marcos inaugurais do jornalismo literário brasileiro. Dele são ainda os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

            O primeiro saiu em folhetim na revista Floreal, em 1907, e em livro em 1909 e o segundo seria publicado apenas em 1919. No primeiro romance, o jornal Correio da Manhã e seu diretor de redação são retratados de maneira impiedosa, ao que parece como uma espécie de vingança por seu autor ter sido maltratado. Provavelmente, Lima Barreto teria recebido como pagamento um salário tão miserável que não daria sequer para pagar uma dose diária de parati. Teve, então, seu nome proscrito na grande imprensa carioca.

            O escritor publicou ainda crônicas, contos e peças satíricas em veículos como o Diabo, Revista da Época, Fon-Fon, Careta, Brás Cubas, O Malho e Correio da Noite. Colaborou também com o ABC, periódico de orientação marxista e revolucionária. Em 1911, escreveu e publicou Triste fim de Policarpo Quaresma em folhetim do Jornal do Commercio. Levando-se em conta a precariedade dos jornais e revistas da época, é de imaginar que escrevesse apenas pelo prazer da polêmica ou pelo fascínio da letra impressa. Afinal, se nos dias de hoje a grande imprensa costuma não pagar nada aos seus articulistas-colaboradores, só um tolo poderia imaginar que há cem anos teria sido diferente.

            Publicou ainda Numa e ninfa (1915) e Histórias e sonhos (1920). Postumamente saíram Os bruzundangas e as crônicas de Bagatelas e mafuás.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br