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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Guimarães Rosa revisitado |
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I |
Ainda que não tenha sido comemorado com
a efusão que merecia, o centenário de nascimento de João Guimarães Rosa
(1908-1967), em 2008, ano que marcou também o centenário do falecimento de
Machado de Assis (1839-1908), ao menos serviu para a publicação de
importantes estudos críticos-literários sobre a obra do autor. E o melhor
exemplo disso é o livro A poética
migrante de Guimarães Rosa (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008), de
Marli Fantini (organizadora), doutora em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de
Guimarães Rosa: fronteiras,
margens, passagens (São Paulo, Senac/Ateliê Editorial, 2004), que
obteve o Prêmio Jabuti de 2005.
Não se pode dizer que a obra rosiana não tenha
sido estudada em profundidade, até porque há estimativa que supõe a
existência de mais de 1.500 trabalhos sobre o romance
Grande sertão: veredas. Até
porque, como diz Marli Fantini na apresentação, baseada nas observações de
Italo Calvino (1923-1985), trata-se de uma obra considerada clássica, que
por isso mesmo está destinada a provocar “incessantemente uma nuvem de
discursos sobre si”.
Mas Guimarães Rosa não é só
Grande sertão: veredas – e, se
o fosse, já seria muito. Pelo contrário, na obra do escritor mineiro há
uma série de textos que também estão condenados a cada geração a receber
novas e distintas formas de recepção.
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II |
Um
estudo que se destaca nesta reunião de 20 ensaios e artigos, dividida em
nove partes, sobre a temática rosiana é “Alegoria e política no sertão
rosiano”, de Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto, professores da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autores de “Política e violência
no Grande sertão de Guimarães
Rosa”, ensaio publicado na revista
Estudos Sociedade e Agricultura
(Rio de Janeiro, Mauad/UFRJ, v.
13, nº 1, pp.75-93, abril de 2005).
Segundo o estudo de Maria Célia e Segatto,
Guimarães Rosa teria um projeto literário, quiçá político-ideológico, como
pressuposto na elaboração de Grande
sertão: veredas, que permite que a obra seja lida não só como
recriação do passado, ou seja, a vida no Brasil profundo nas décadas de
1920 a 1930, como iluminador do presente, já que o mandonismo daquela
época ainda hoje está presente em várias regiões brasileiras marcadas pela
grande propriedade latifundiária, embora hoje o protótipo do latifundiário
tenha sido substituído por grandes empresas agrícolas, pelo
patriarcalismo, pelo clientelismo, pela violência, pela ausência de Estado
e justiça, o que se verifica inclusive no Estado de São Paulo, pretenso
exemplo de modernidade.
Nesse
sentido, os autores contestam estudiosos que, atribuindo a Guimarães Rosa
uma qualidade de ensaísta que ele nunca buscou, definiram
Grande sertão: veredas como um
retrato da vida rural naquela época, observando que o autor, por sua
inventividade, aponta tendências que viriam a ganhar cristalização mais
nítida na realidade do País pós-1930.
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III |
Outro texto de grande valia para os estudos rosianos – e de outro grande
especialista na área – é “Patriarcalismo e dionisismo no santuário do
Buriti Bom”, de Luiz Roncari, professor da Universidade de São Paulo (USP)
e autor de O Brasil de Rosa: mito e
história no universo rosiano: o amor e o poder (São Paulo,
Unesp/Fapesp, 2004). Como observa Marli Fantini, o trabalho de Roncari
procura as chaves para o entrelaçamento da história com o mito. O ensaio –
cujo título forma um oxímoro – é uma condensação de extenso trabalho de
Roncari sobre a novela “Buriti”, que faz parte do livro
Corpo de baile, de Guimarães
Rosa.
Em O
Brasil de Rosa, o autor já havia procurado mostrar como Guimarães Rosa
usara modelos que Oliveira Vianna (1883-1951) utilizara para representar a
vida política brasileira na segunda metade do século XIX e também na
Primeira República (1889-1930). Assim, Guimarães Rosa teria entranhado em
personagens como Zé Bebelo, um Rui Barbosa (1849-1923), em Hermógenes e
Ricardão, um Hermes da Fonseca (1855-1923) e um Pinheiro Machado
(1851-1915), respectivamente, e em Joca Ramiro, o Barão do Rio Branco
(1845-1912).
Para Roncari, a novela “Buriti” também teria
sido construída a partir de modelos vivos. Assim, toda a primeira parte da
novela é composta praticamente pelas lembranças de Miguel, que
compartilham as informações e versões que Guimarães Rosa recebera de nhô
Gualberto Gaspar, um fazendeiro, sobre o Buritim Bom e pessoas do lugar
com quais ele pôde conviver.
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IV |
Como curiosidade histórica pode-se apontar a nona parte do livro que traz
o ensaio “Memória da leitura e rememoração da viagem: cartas de João
Guimarães Rosa para Aracy de Carvalho Guimarães Rosa”, elaborado por Elza
Miné e Neuma Cavalcante a partir da correspondência (inédita) trocada pelo
autor no período de 1938 a 1960 com aquela que seria sua segunda esposa.
Esse arquivo que compreende 107 cartas, 44
cartões-postais, bilhetes e telegramas foi passado pela família de Aracy
de Carvalho (1908-2011) às pesquisadoras, que estão para publicar uma
biografia dessa poliglota que prestou trabalho ao Ministério das Relações
Exteriores e teve o seu nome
inscrito no memorial Yad Vashem (Museu do Holocausto), em Jerusalém, por
ter ajudado muitos judeus a entrarem ilegalmente no Brasil ao tempo do
governo Getúlio Vargas, livrando-os da prisão e da morte sob as botas do
nazismo. A essa época, ela era chefe da seção de passaportes do consulado
brasileiro em Hamburgo. Guimarães Rosa, como cônsul adjunto, sabia das
manobras arriscadas que Aracy fazia para ajudar os judeus e nunca se opôs.
Pelo contrário.
Se para o leitor comum esse tipo de
correspondência pode parecer curiosidade histórica, para os especialistas,
por certo, é uma oportunidade rara, pois revela, mais que a obra completa
do autor, a sua individualidade, seus gostos e paixões. De passagem,
fica-se sabendo que Ara, como o marido a chamava, acompanhou muito de
perto tanto a escritura de Grande
sertão: veredas como de
Sagarana, inclusive, com sugestões e correções.
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A POÉTICA MIGRANTE DE GUIMARÃES ROSA,
de Marli Fantini (organizadora). Belo Horizonte: Editora UFMG,
448 págs., 2008, R$ 45,00. E-mail:editora@ufmg.br Site:
www.editora.ufmg.br |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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