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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Dostoievski e os pobres de São Petersburgo |
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GENTE POBRE,
de Fiodor Dostoievski, tradução de Luís Avelima. Taubaté-SP: Letra
Selvagem, 215 págs., 2001, R$30,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem
.com.br Site: www.letraselvagem.com.br |
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I |
SÃO PETERSBURGO -- Ao contrário do que ocorre com quem tenta
reconstruir, ao menos na imaginação, o Rio de Janeiro oitocentista de
Machado de Assis (1839-1908), do qual quase nada resta, quem vai em
busca da São Petersburgo de Fiodor Dostoievski (1821-1881) acaba por
encontrar muitos prédios e logradouros que lá estão desde os tempos em
que o escritor russo perambulava por lá com seu chapéu negro de feltro
nos dias de inverno. Quem chegou a São Petersburgo neste verão de 2011,
com um pouco de sorte, pôde participar do Dia de Dostoievski, a dia 2 de
julho, que foi comemorado pela segunda vez.
Essa festa, que tem tudo para
se tornar uma tradição no calendário oficial da cidade, inclui uma
caminhada pelas ruas e locais mais significativos da vida e da obra do
escritor. O programa, organizado pela Comissão de Cultura do Governo de
São Petersburgo, é muito amplo, contando com a participação de seis
museus e dez outras instituições e grupos de teatros. O seu fecho é no
Museu Literário-Memorial F. M. Dostoievski, que fica no cruzamento da
rua Koppuznetchny com a rua Dostoevskaia, antiga Iamskaïa, não muito
distante da igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir, onde o
escritor morou, sempre de aluguel, primeiro, por um curto período, na
década de 1840, e, depois, com a família, de outubro de 1878 até o dia
de sua morte, a 28 de janeiro de 1881.
Foi naquele apartamento que
Dostoievski, quando ainda solteiro, escreveu Gente Pobre (Biédnie
Liúdi), que acaba de ganhar nova edição em português, em tradução de
Luís Avelima, pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, dirigida pelo
escritor Nicodemos Sena. É de lembrar que, publicado em 1846, o romance
epistolar Gente Pobre, gênero que teve seu auge no século XVIII,
mas que já declinava à época, foi recebido de maneira entusiástica por
Vissarion Belinsky, renomado crítico literário russo, que previu com
acerto que o seu autor, então com 25 anos de idade, seria um dos
gigantes da literatura russa, comparável a Gogol (1809-1852) e Pushkin
(1799-1837). |
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II |
A trama de Gente Pobre
é construída ao desenrolar da correspondência entre o escrevente Makar
Dievuchkin, funcionário público de meia-idade, e a jovem Varvara
Aleksieievna e constituída pelo assédio que a pobre moça sofre por parte
de um admirador rico e dissoluto. Ao longo das cartas, os personagens
desfilam por ruas de bairros que seriam fétidos e degradados à época,
mas que, hoje, constituem uma das muitas atrações de uma São Petersburgo
que é uma cidade-museu a céu aberto.
Os prédios ainda são os
daquele tempo, mas a maioria passou por reformas que procuraram
preservar a construção original. De modo que ao leitor de hoje de
Dostoievski fica um pouco difícil imaginar a pobreza russa daqueles
dias, uma sociedade estratificada, dividida rigorosamente entre ricos e
miseráveis, que moravam em quartos de prédios transformados em cortiços,
tal qual os do Rio de Janeiro de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo
(1857-1913). Talvez a pobreza sãopetersburguesa não fosse tão andrajosa
como a carioca, pois os pobres de Dostoievski não só são alfabetizados
como cultores de livros que compartilham entre si. E mais: costumam
identificar-se com personagens de Gogol e Pushkin. Sem contar que ainda
davam escapadas ao teatro.
Além disso, aqueles palácios e
prédios suntuosos de São Petersburgo que ainda hoje nos maravilham já
estavam ali, desde que o czar Pedro o Grande (1672-1725) decidira
construir, às margens do rio Neva, em 1703, a cidade que seria a capital
da Rússia e que ainda hoje é a capital cultural do país. Mas,
aparentemente, bem ao lado daquelas maravilhas arquitetônicas da avenida
Nevski, com seus teatros, museus, salas de concertos, cinemas,
bibliotecas e restaurantes, que só uma sociedade extremamente rica e
culta poderia levantar, ficavam as moradias dos pobres, dos humilhados e
ofendidos.
Assim, a Sexta Linha, uma das
ruas paralelas da ilha Vasilievski (Vassiliévski Óstrov), onde vivia
Varvara e as pessoas de suas relações em prédios de cinco aposentos,
hoje é uma das ruas mais elegantes da cidade. Perto dali está o centro
comercial Gostíni Dívor, uma das primeiras lojas de departamentos do
mundo, onde Varvara sabia que poderia encontrar alfarrabistas que
vendiam livros pouco usados pela metade do preço. Tudo isso é possível
saber também pelas providenciais notas de rodapé que o tradutor Luís
Avelima colocou, sem que seja necessário conhecer São Petersburgo ao
vivo. |
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III |
É verdade que Dostoievski escreveria, em sua fase madura, obras mais
importantes – hoje canonizadas pela crítica mundial –, como
Recordações da Casa dos Mortos (1862), Memórias do Subsolo
(1864), Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869), Os
Demônios (1871) e Os Irmãos Karamazov (1879), mas neste seu
livro de estréia ele já mostra a técnica que o crítico russo Mikhail
Baktin (1895-1975) chamaria de “romance polifônico”, que veio para
destruir “as formas estabelecidas do romance europeu, em sua maioria
monológica” (quer dizer, tradicional). Por meio das cartas que seus
personagens trocam, o escritor expõe as relações servis de uma sociedade
imobilizada em que a ascensão social é, praticamente, vedada aos menos
favorecidos, condenados à miséria.
Esse sentimento de impotência
e de falta de perspectivas é o que leva Makar, depois de alguns
malogrados esforços para evitar o casamento de Varvara com o pretendente
rico, a aceitar o seu matrimônio por conveniência com o estúpido Bíkov
como uma fatalidade, levando em conta as condições econômicas tanto dele
como dela.
Na última carta que escreve
para a sua Várienka, como também a chamava, ele ainda apela para que
fique, para que volte atrás, mas, no fundo, sabe que aquela é uma
oportunidade única que ela tem de se tornar proprietária rural, fugir
daquela vida num cortiço, ainda que o futuro lhe reserve uma vida
insossa, pois “o senhor Bíkov estará sempre na caça às lebres”.
Naquele mundo dostoievskiano,
não há lugar para bons sentimentos: por isso, Bíkov, igualmente de
meia-idade, sabe que Makar não é páreo para ele, homem bem posto na vida
que só tem um objetivo: casar para deixar herdeiros e evitar que sua
herança fique para um sobrinho estulto. Como sabia dos sentimentos de
Makar por Varvara – que interpreta como “favores” –, diz-se disposto a
pagar até quinhentos rublos por tudo que ele fizera por ela, desde que
abra mão de seu interesse pela jovem.
Quando Varvara lhe diz que o
que Makar fizera por ela não se pagava com dinheiro, Bíkov responde que
aquilo era um absurdo, que a jovem via a vida através dos livros, “que
os romances levavam as jovens a inculcar ideias extravagantes, que em
geral os livros apenas corrompem os costumes e a moral”. E que, quando a
jovem chegasse à idade dele, saberia enfim julgar as pessoas.
Por fim, dá-lhe um prazo para
responder à proposta, pois, caso contrário, seria obrigado a casar-se
com a filha de certo comerciante de Moscou. Afinal, jurara que não
deixaria seus bens para aquele sobrinho tão inútil. Proposta feita e
aceita: Varvara, cansada de viver num quartinho imundo, doente, magra,
sabe que Makar, apesar de todos os seus bons sentimentos, não poderá
salvá-la da miséria.
Como observa o tradutor Luís
Avelima na apresentação que fez para esta edição de Pobre Gente,
é o sentimento de humilhação o mote de Makar, um derrotado na vida,
vítima da necessidade de encontrar dinheiro para sobreviver e escapar da
pressão dos agiotas. E que sabe que só miséria teria a oferecer para
Varvara. É um conformista, que se contentou com seu cargo subalterno no
funcionalismo, que sempre aceitou a humilhação que lhe impõem os colegas
de repartição e que se resigna a morar numa espelunca porque “a condição
de cada homem como o seu destino são traçados pelo Todo-Poderoso”. E que
para escapar da loucura e do alcoolismo só tem um remédio: escrever,
escrever e escrever, para continuar respirando.
Personagem de um escritor que,
em 60 anos de vida, escreveu tanto e tão excepcionais romances, além de
artigos para jornais e revistas, não há como entender Makar senão como
uma espécie de alter ego de Dostoievski. Para quem começa a
descobrir o gênio de Dostoievski agora, com certeza, Pobre Gente
é o melhor início e a porta que se abre para um universo ficcional
único, que retrata com fidelidade a humanidade em toda a sua miséria e
degradação. |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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