|
Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
|
|
|
|
|
Adelto Gonçalves |
|
Na boa tradição dos poetas ensaístas |
|
MEMÓRIAS DE UM LEITOR DE POESIA & OUTROS
ENSAIOS, de Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Academia Brasileira
de Letras/Topbooks, 273 págs., R$ 39,00, 2010. E-mail: topbooks@topbooks.com.br |
|
I |
Para quem quiser se iniciar na arte da crítica, um
bom caminho é ler Memórias de um leitor de poesia & outros ensaios,
antologia do poeta Antonio Carlos Secchin que reúne textos de variada
origem, inclusive entrevistas, um depoimento, o seu discurso de posse na
Academia Brasileira de Letras em 2004, uma aula inaugural do ano letivo
de 2004 na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), e uma comunicação no Congresso de Literatura Brasileira na
Universidade do Porto em 2005, entre outros.
Na boa tradição de poetas ensaístas, que vem de Baudelaire (1821-1867),
que exigia que o crítico fosse também poeta, T. S. Eliot (1888-1965),
Jorge Luís Borges (1899-1986) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987),
que se tornou bastante conhecido como poeta e cronista, mas pouco
referido como ensaísta ou contista, entre outros, Secchin sabe dosar a
erudição livresca com senso analítico para tratar os mais variados temas
da Literatura Brasileira, desde o Pré-Romantismo ao Modernismo, passando
ainda pelas tendências contemporâneas.
Como exemplo, basta lembrar a observação que faz no ensaio que dá título
ao livro, a propósito da impossibilidade de se apostar na “objetividade”
da análise, já que a interpretação de uma obra varia de acordo com a
época e as circunstâncias em que é objeto de estudo. Secchin observa,
com percuciência, que, durante seis décadas, Capitu, personagem de Dom
Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908), pôde trair Bentinho em paz,
pois a suspeita – não de adultério, mas de inocência – só foi
explicitamente formulada, em 1960, pela professora e ensaísta
norte-americana Helen Caldwell, precursora do movimento feminista nos
Estados Unidos. “Impossível, portanto, atribuir um sentido sem levar em
conta as condições históricas que viabilizam a sua formulação”, diz
Secchin.
De fato, em Brazilian Othelo of Machado de Assis (1960), Helen Caldwell,
à época em que se consolidavam nos Estados Unidos os primeiros escritos
de linhagem feminista, inverteu os papéis, colocando Bentinho no banco
dos réus. Para ela, Bentinho poderia ser observado também como um
neurótico que via em detalhes mínimos “provas irrefutáveis” da suposta
traição de Capitu. Como àquela época nem se sonhava com a possibilidade
de exame de DNA, esse é um enigma sem solução, pois assim também foi
imaginado por seu criador, Machado de Assis, o que, aliás, constitui a
grandeza da obra.
Mas, até 1960, nenhum crítico brasileiro ou estrangeiro havia colocado
em xeque o que Bentinho alegava em sua defesa nem o tinha por um
desajustado que via além do que a realidade mostrava. Se para Bentinho o
seu filho Ezequiel tinha feições e trejeitos que lembravam o seu melhor
e finado amigo Escobar, nada justificaria que Capitu não o tivesse
traído. Assim também pensava a sociedade patriarcal em que o Brasil
vivia mergulhado até então. Tanto que foi necessário uma feminista
norte-americana lançar o seu olhar de fora para ver além do que estava
escrito. Que o romance de Machado de Assis tenha permitido essa viragem
de interpretação é só mais um exemplo da transcendência inata que toda
obra de arte guarda intrinsecamente. |
|
II |
A propósito da observação de Secchin, é de lembrar
que, nos dias de hoje, discute-se se Monteiro Lobato (1882-1948) pode
continuar a ter um de seus livros indicado pelo Ministério da Educação
para professores e alunos do ensino fundamental. Ora, os tempos são
outros e não há dúvida que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro
Lobato, tem observações de teor racista, que devem ser lidas no contexto
em que foram escritas. Mas nem por isso justificadas.
Ao contrário de Machado de Assis, Monteiro Lobato não sobreviveu ao
embate com o tempo. É um escritor que tem a sua importância histórica e
merece continuar a ser estudado por um ou outro especialista ou
historiador, mas já não é um autor que deve ser lido obrigatoriamente
por crianças e adolescentes. Boa parte de sua mensagem não condiz com o
país miscigenado em que vivemos, ainda que sua obra venha a ser
distribuída às escolas públicas com uma nota explicativa.
Não se está aqui a defender nenhuma forma de censura, mas hoje não já
não se aceita pacificamente algumas expressões de racismo explícito que
permeiam obras de Monteiro Lobato que seriam destinadas ao público
infanto-juvenil. E que são reflexos da sociedade preconceituosa que era
o Brasil na primeira metade do século XX. Não se pode deixar de lembrar
que a afirmação do afro-descendente no Brasil deu-se, simbolicamente, a
partir de 1958, quando a participação de jogadores negros e miscigenados
na seleção brasileira de futebol foi decisiva para a conquista da Copa
do Mundo na Suécia.
Até então, no Brasil, vivia-se um apartheid disfarçado, não-oficial – e
aqueles que ascendiam socialmente e traziam sinais de sua ascendência
africana ou indígena tratavam de disfarçá-las. Quem fez a cobertura
política no Congresso, em Brasília, nos anos 70 e 80, lembra muito bem o
pânico em que entravam certos deputados ou senadores quando algum
repórter, às vezes inadvertidamente até, se lhes referia a alguma
herança genética africana que exibiam. Não lhes parecia de bom tom
lembrar aquilo, pois se assumiam inteiramente como homens brancos. E não
faz tanto tempo assim.
Não se esqueçam que Campos Sales (1841-1913) e Nilo Peçanha (1867-1924)
foram presidentes da República cujas raízes africanas acabaram
totalmente borradas pelos historiadores. E, hoje, só sabemos desse fato
porque um ou outro cronista ou desafeto político escreveu sobre isso em
jornais da época.
Até bem pouco tempo atrás, os brasileiros fazíamos enorme esforço para
nos mostrar brancos e europeus, sempre procurando negar a África que
carregávamos irremediavelmente em nós. Mas, hoje, com a conscientização
cada vez mais forte de que somos uma sociedade miscigenada, não há
sentido distribuir aquele tipo de livro às escolas públicas, pois só
estaríamos ajudando a insuflar o preconceito racial e social. Isso não
significa que Monteiro Lobato não possa ter seus livros reeditados
sempre que um editor o queira. Mas daí o Ministério da Educação
distribuir alguns de seus livros que tenham expressões de teor racista a
crianças e adolescentes vai uma grande distância.
Afinal, ninguém pode ser impedido de ler O manifesto comunista, de
Friedrich Engels (1820-1895), O capital, de Karl Marx (1818-1883), Mein
Kampf, de Adolf Hitler (1889-1945), ou Os protocolos dos sábios de Sião,
propaganda anti-semita apócrifa na tradução de Gustavo Barroso
(1888-1959), mas não se pode admitir que um governo democrático possa
distribuí-los impunemente aos estudantes de escolas públicas. São
referências históricas. |
|
III |
Portanto, a leitura de Secchin nos ajuda a entender
até um caso recente como esse que se refere a Monteiro Lobato. Como diz
o editor José Mario Pereira na apresentação que fez para Memórias de um
leitor de poesia..., Secchin é “um intérprete do fenômeno literário que
não se deixa enlear pela camisa-de-força de escolas e métodos de
interpretação, capaz de temperar com argúcia e sensibilidade raras o que
mais lhe convém no campo da teoria”. E mais: “pertence à estirpe de
críticos que se empenham em remover a pátina do tempo e, sobretudo, a
baba dos áulicos e o veneno dos desafetos de ocasião para restaurar o
que de bom e de útil leitores, críticos e autores atuais podem encontrar
direto nas obras”, como observa José Nêumanne Pinto, em resenha que fez
deste livro.
É exatamente o que Secchin faz no ensaio “Vinícius: os caminhos de uma
estréia” em que analisa a fase inicial da carreira do poeta que, ao
enveredar na sua fase madura pela música popular brasileira, passou a
ser visto com certas reservas pela crítica literária. E conclui que as
escolhas do jovem Vinícius de Moraes (1913-1980), “superada a voz
dogmática de seus poemas do livro de estréia, o (e)levariam à condição
de maior poeta lírico da poesia brasileira do século XX”.
Só que, como reconhece Secchin, essa história ainda está por ser contada
e comprovada no cotejo com aqueles poetas que lhe foram contemporâneos.
A princípio, porém, não há como negar que foram raros os poetas líricos
do século XX que chegaram ao nível de Vinícius de Moraes, hoje mais
lembrado pelos versos que escreveu para músicas criadas por compositores
do show business. |
|
IV |
Além de acadêmico, Secchin é professor titular da
Faculdade de Letras da UFRJ, doutor em letras pela mesma instituição e
bibliófilo de renome. Publicou, entre outros, João Cabral: a poesia do
menos (São Paulo, Duas Cidades, 1985), Poesia e desordem (Rio de
Janeiro, Topbooks, 1996), Todos os ventos (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2010), Escritos sobre poesia & alguma ficção (Rio de Janeiro,
Eduerj, 2003) e 50 poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro, Galo
Branco, 2006). Foi o organizador de Poesia completa, de Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001), Poesia completa e prosa de João
Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2008) e de Poesia
completa, teatro e prosa de Ferreira Gullar (Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 2008).
Mas, como se disse ao início desta recensão, Secchin é, antes de tudo,
um poeta que sabe definir como poucos o seu ofício, ou seja, um crítico
e um ensaísta de mão cheia. “A poesia é o lugar do imponderável, onde,
portanto, até o ponderável pode acontecer. Mas nada disso vale, se o
delírio não se submeter ao imperativo da forma”, diz. Já o poeta, para
ele, é “uma ilha cercada de poesia alheia por todos os lados: insulado
em si, no seu comportamento radical de criar uma palavra tanto quanto
possível própria, mas abastecida pelo manancial que flui dos mais
diversos mares discursivos”. Só estas palavras já bastam para se
recomendar a leitura destas Memórias de um leitor de poesia... |
|
Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
|
|