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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
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Adelto Gonçalves |
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A gênese do pícaro moderno |
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LEITURAS DE
LITERATURA ESPANHOLA (DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XVII),
de Mario M. González. São Paulo: Letraviva, 2010, 480 págs., R$ 59.
E-mail: letraviva@letraviva.com.br |
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I |
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Quem quiser entender a literatura espanhola de hoje, marcada por Enrique
Vila-Matas, Javier Marías e Eduardo Mendoza, precisa primeiro conhecer a
literatura espanhola dos séculos XVI e XVII, não só aquela praticada por
Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote,
mas por poetas maneiristas como Luis de Góngora y Argote (1561-1627),
que abriram caminho para as experimentações que redundaram no romance
espanhol moderno. Mas esse caminho nunca será completo se o leitor não (re)descobrir
Lazarillo de Tormes (1554), romance de autor
anônimo, que, de fato, lançou as bases desse gênero.
Antes,
porém, de se aventurar a ler esses autores, o estudante fará bom caminho
– que, como diria Antonio Machado (1875-1939), faz-se ao andar – se
começar por Leituras de Literatura Espanhola (da Idade Média ao
século XVII), do professor Mario Miguel González (São Paulo,
Letraviva, 2010), que reúne 21 textos que analisam como se comportaram
esses antecessores da vanguarda literária hispânica, abarcando desde a
poesia lírica medieval, a prosa medieval, o Amadis de
Gaula e as novelas de cavalaria, a poesia de frei Juan de la
Cruz (1542-1591), Lope de Vega (1562-1635) e o teatro nacional espanhol,
Tirso de Molina (1571?-1648) e a criação de Don Juan, o
barroco espanhol, até o romance picaresco que não se esgota no
Lazarillo de Tormes, mas prossegue em
Guzmán de Alfarache, de Mateo Aleman (1547-1615?), e
El Buscón, de Francisco de Quevedo (1580-1645).
Sem
entender basicamente o ciclo do romance picaresco, não se poderá
entender nunca o romance espanhol de hoje, que, embora os críticos
espanhóis prefiram não admitir isto, estava, por volta dos anos 60 do
século passado, se não morto, ao menos numa fase de transição. Foi
quando chegaram a Barcelona os escritores latino-americanos que haviam
sido escorraçados de seus países pelos militares que à época funcionavam
como títeres dos governos que se sucediam em Washington.
A esse tempo, havia um vácuo entre as
gerações de escritores: até porque a maioria, em razão da Guerra Civil
(1936-1939), teve de seguir para o exílio. E, assim, a literatura
espanhola perdeu continuidade. Latino-americanos como Gabriel García
Márquez, Mario Vargas Llosa, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), José
Donoso (1924-1996) e Julio Cortázar (1914-1984) – que morava em Paris,
mas viajava com freqüência para Barcelona -- vieram a ocupar esse vácuo,
mostrando-se melhores do que os escritores espanhóis daquela época.
Exibiam um castelhano mais vivo, enquanto o idioma dos autóctones
parecia moribundo. Houve, então, uma reação, pois os espanhóis,
achando-se os donos da língua, não podiam admitir aquilo pacificamente. |
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II |
Para fazer
essa “ponte” entre o antigo e o moderno, esses escritores espanhóis
“descobriram” um personagem que caía à medida: o pícaro, que estabelecia
essa ligação com a modernidade, pois, de fato, o
Lazarillo de Tormes, gênese desse tipo de romance, é o primeiro
a transgredir certas regras, como a de colocar o pobre como personagem
principal de uma aventura, indo ainda mais além do Dom
Quixote, de Cervantes, considerado o primeiro romance
verdadeiramente transgressor.
É verdade que Dom
Quixote, se ridiculariza as novelas de cavalaria, mostrando-as
como um gênero que chegara a um estágio de exaustão e degradação, tal a
repetição da fórmula que as fundamentava, o Lazarillo
de Tormes seria um cavaleiro tão desprestigiado que já havia até
perdido o seu cavalo e todo o idealismo, integrando-se no dia a dia das
cidades espanholas que mal saíam do feudalismo. Por esse lado, o pícaro,
esse cavaleiro que perdera seu cavalo, para sobreviver, aceitaria passar
por uma série de circunstâncias pouco dignas, como até mesmo a de posar
como marido da amante de seu amo.
Com um pouco de influência da literatura
inglesa, da literatura francesa e do romance policial norte-americano, a
chamada “novela negra”, a moderna literatura espanhola incorporou um
tanto da atitude ácrata que marca a maioria dos personagens desse gênero
literário, ou seja, um personagem que está sempre fora da sociedade,
assim como Candide, de Voltaire (1694-1778),
ou Estragon, de Esperando Godot, de Samuel
Beckett (1906-1989). Esse é o pícaro, um “vírus” que percorre um
organismo – no caso, a sociedade – sem a ele pertencer, um marginalizado
a quem ninguém dá ouvidos, mas que conhece a verdade porque está de fora
e a vê – até porque quem vê de fora vê melhor.
Os pícaros são homens que se movem numa
sociedade perfeitamente organizada e que não são absolutamente nada, não
representam nada, não estão vinculados a nenhuma facção política nem têm
ideologia ou ideais, movem-se apenas por seus mais mesquinhos
interesses. Na sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII, perfeitamente
organizada, com a igreja, o exército, a nobreza, os comerciantes, os
banqueiros e a escumalha, todos em seus devidos lugares, esse
“micróbio”, o pícaro, às vezes é rico, às vezes é pobre, às vezes é o
lacaio de um ricaço, que tem entrada em todas as casas, mas não tem
identidade própria. Astuto, sabe como se mover, como um perro
callejero (um cão vira-latas), sabe onde buscar comida e
sobrevivência.
Nas sociedades autoritárias de hoje, que
funcionam à perfeição até que se desmoronam – vejam o recente fim do
regime de Mubarak no Egito –, o pícaro pode ser até um jornalista que,
ainda que mal remunerado, tem entrada na casa do senador, do barão da
indústria, do banqueiro. Ou comparece ao escritório ou à mansão do
governante, do parlamentar, do grande narcotraficante – que, nos dias de
hoje, podem ser a mesma pessoa –, acompanhado pelo dono ou pelo diretor
do grande jornal, como Lazarillo fazia quando acompanhava seu amo ao
visitar algum mandão da época.
Nos dias que correm, esse pícaro pode
constituir também o vírus da liberdade, pois
debilita os regimes de força – que são sempre regimes corruptos –
por sua ação demolidora através da Internet, das redes sociais.
Não esqueçamos que um regime de força também pode ter congresso aberto e
promover eleições periodicamente. A diferença é que a oposição,
geralmente, é controlada na base da corrupção e as eleições manipuladas
pelo grande capital que a tudo e a todos corrompe. |
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III |
Para conhecer esse personagem do século XVI que ainda pode ser
flagrado na sociedade do século XXI, a leitura do ensaio “Lazarillo de
Tormes”, de Mario Miguel González, é fundamental, pois mostra que os
romances picarescos têm sempre um forte sentido de sátira social. “No
caso dos romances picarescos espanhóis clássicos, a sátira aponta para
os mecanismos de ascensão social válidos numa sociedade que rejeitava
por princípio os valores básicos da burguesia e na qual o parecer
prevalecia nitidamente sobre o ser”, diz o professor.
Lembra
González que a sociedade, para Lázaro de Tormes, se divide em dois
grupos: “los que heredaron nobles estados” e “los que, siéndoles (la
Fortuna) contraria, com fuerza y maña remando salieron a buen puerto”. A
princípio, supõe-se que Lazarillo quer condenar e desmascarar os nobres,
ou seja, os ricos, em sua ociosidade, para exaltar a mentalidade
burguesa, que daria valor àquele que ascenderia socialmente por seu
próprio esforço e engenho. Mas, ao fim do romance, o incauto leitor
haverá de descobrir que, para Lazarillo, “remar” não significa trabalhar
nem especular astutamente – como aqueles modernos construtores que usam
qualquer pretexto – até mesmo o petróleo que a Petrobras nem sabe se
conseguirá extrair da camada pré-sal – para valorizar exageradamente
seus imóveis.
Para
Lázaro, remar significa “arrimarse a los buenos”, ou seja, aliar-se aos
que estão por cima, como fizera sua própria mãe e como ele próprio faria
depois. Em outras palavras: segundo Lázaro, para subir na vida, é
preciso ter astúcia, uma boa lábia, para enganar a todos constantemente
o tempo todo. E, assim, ascender na escala social, adquirir recursos,
seja lá como for, para aparentar um “homem de bem”, colocar uma espada à
cinta. Por isso, munido destas informações, o leitor que chegou até aqui
que olhe agora para os lados. Com certeza, irá identificar em alguém
próximo um pícaro moderno. |
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IV |
Professor
de Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo (USP) desde 1968,
Mario Miguel González nasceu em Alta Gracia, Córdoba, na Argentina, mas
é brasileiro naturalizado. É autor de El conflicto
dramático en Bodas de Sangre, tese de doutorado defendida na USP
em 1973 e publicada em livro em 1989 pela Edusp, O
romance picaresco (São Paulo, Ática, 1988) e A
saga do anti-herói, sua tese de livre-docência publicada pela
Nova Alexandria em 1994 em que estuda a influência do romance picaresco
espanhol em obras de autores brasileiros, especialmente Ariano Suassuna.
Foi responsável também pela edição de Lazarillo de
Tormes (edição de Medina del Campo), em tradução de Heloísa
Costa Milton e Antonio R. Esteves (São Paulo, Editora 34, 2005).
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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