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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Fernando Pessoa, empregado de escritório |
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ECONOMIA & COMMERCIO: IMPRESA, MONOPOLIO,
LIBERTÁ, de Fernando Pessoa. Introdução, tradução e notas de Brunello De
Cusatis, com posfácio de Alfredo Margarido. Perugia: Edizioni
dell´Urogallo, 286 págs., 2011, 18 euros. Site: www.urogallo.eu |
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I |
Em janeiro de 1926, aos 38 anos de idade, com alguma
experiência no campo econômico e comercial, o poeta Fernando Pessoa
(1888-1935) entendeu que tinha conhecimentos suficientes para editar uma
publicação mensal ligada a esses dois setores, a Revista de Comércio e
Contabilidade, que fundou em Lisboa em parceria com seu cunhado
Francisco Caetano Dias. Mas, olhando sem parti pris, o currículo que o
poeta carregava era a de empreendedor desastrado e de empregado de
escritório, um guarda-livros, tal como o seu heterônimo Bernardo Soares,
que, se experiência tinha, seria só para ensinar a arte do trabalho
contábil. Na verdade, Pessoa ganhava a vida mais como tradutor de inglês
para o português, o que lhe permitia desempenhar a atividade para várias
casas comerciais, aproveitando-se da larga dependência de Portugal em
relação a Inglaterra.
Como empreendedor, de fato, nunca teve êxito: a própria publicação
dedicada ao comércio e à contabilidade teria vida efêmera, apenas seis
números, assim como a editora e tipografia Íbis, que, instalada em 1907
no bairro da Glória, mal chegou a funcionar. Em 1921, fundou a Editora
Olisipo, de ruinosa carreira comercial. Nela publicou os seus English
poems I e II e English poems III, e A invenção do dia claro, de Almada
Negreiros (1893-1970). Em 1923, a Olisipo lançou o folheto Sodoma
divinizada, de Raul Leal (1886-1964), que foi alvo de um ataque
moralizador da Liga dos Estudantes de Lisboa e apreendido por ordem do
governo, junto com as Canções, de António Botto (1897-1959).
Pela Olisipo, Pessoa pretendia lançar uma série de livros importantes –
a maioria traduzida (ou com tradução prevista) por ele mesmo, talvez
para evitar maiores custos. Na acanhada Lisboa de sua época, com meia
dúzia de livrarias e editoras, esse também não seria um ramo muito
promissor para quem não dispunha de maiores recursos para
empreendimentos mais ousados num mercado restrito. E já ocupado por
algumas casas tradicionais, que se acotovelavam no Chiado e na Baixa.
Levando em conta, porém, a boa formação que Pessoa recebera na África do
Sul, de 1896 a 1905, seria de esperar que tivesse tido uma carreira
profissional de maior sucesso – a vida que podia ter sido, e que não
foi, como diria o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) –, e não a obscura
vida de empregado de escritório, o que lhe permitiu apenas viver em
quartinhos em casas de familiares ou alugados na rua da Glória, no largo
do Carmo, nas ruas Passos Manuel, Pascoal de Melo, D. Estefania e
Almirante Barroso, entre outros locais, até que se transferiu de vez
para a casa da família na rua Coelho da Rocha, 16, onde viveu os últimos
15 anos de sua vida e hoje está a fundação que leva o seu nome.
Para aqueles que hoje medem a importância de um homem pelo saldo de sua
conta bancária, decididamente, Fernando Pessoa não teria sido alguém que
pudesse dar lições de empreendedorismo ou organização comercial. Nem
mesmo ânimo – ou, quem sabe, maiores recursos financeiros – teve para
estudar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quando
retornou de sua temporada africana, como pretendia. Talvez tivesse tido
uma boa carreira como professor, se houvesse primeiro superado a
timidez, o que nunca fez.
Ao passar os anos de sua formação em Durban, na África do Sul, à época
colônia britânica, em companhia da mãe e do padrasto, o jovem Pessoa
teve a oportunidade de estudar na Convent School, uma escola privada
(liceu) e, depois, na Commercial Schoool, de 1902 a 1903, e na Durban
High School, sob a orientação de Mr. W.H. Nicholas, homem de
personalidade notável que, possivelmente, serviu de modelo para o seu
heterônimo Ricardo Reis.
Na Durban High School, fez um curso de contabilidade e comércio, depois
de ter sido um aluno brilhante no liceu nas disciplinas de Humanidades,
como se pode constatar no livro Fernando Pessoa na África do Sul: a
formação inglesa de Fernando Pessoa, de Alexandre E. Severino (Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1983). Se a sua educação havia sido
essencialmente humanista até àquela altura, o que o teria levado à
mudança tão brusca? Provavelmente, porque sua família entendia que um
curso comercial lhe daria conhecimentos mais práticos para ganhar a
vida. Até porque na colônia britânica não havia, àquela altura, escolas
superiores, o que se deu só a partir de 1918. Se quisesse (e pudesse),
teria de fazer o curso superior em Londres. |
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II |
Fosse como fosse, foi em seu arsenal de conhecimentos
comerciais que Fernando Pessoa se baseou quando decidiu escrever textos
para a Revista de Comércio e Contabilidade. São textos um tanto ingênuos,
do ponto de vista comercial, que incluem uma visão do mundo da
publicidade, mas que trazem a marca inconfundível do literato que os
produziu. Tanto que levou o ficcionista, poeta e jornalista português
António Mega Ferreira, ex-editor do Jornal de Letras, a recolhê-los em
Fernando Pessoa. O comércio e a publicidade (Lisboa, Cinevoz/Lusomedia,
1986).
São estes textos que agora ganham versão em italiano em Fernando Pessoa:
Economia & commercio: impresa, monopólio, libertà (Perugia, Edizioni
dell´Urogallo, 2011), traduzidos pelo professor Brunello De Cusatis, da
Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Perugia, autor de uma
esclarecedora introdução. O volume inclui ainda o iluminado
ensaio-posfácio “O evolucionismo comercial de Fernando Pessoa”, do
poeta, tradutor e ensaísta Alfredo Margarido (1928-2010), recentemente
falecido, a cuja memória o livro é dedicado.
Tudo o que se disse linhas acima se pode constatar neste trecho: “Um
comerciante, qualquer que seja, não é mais do que um servidor do
público, ou de um público; e recebe uma paga, a que chama o seu “lucro”,
pela prestação desse serviço. Ora toda gente que serve deve, parece-nos,
buscar a agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a quem se
serve (...); partindo não do princípio de que os outros pensam como nós,
ou devem pensar como nós (...), mas do princípio de que, se queremos
servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar
como eles” (FERREIRA, 1986, p. 46).
Pode-se a partir deste texto concluir que Pessoa pensava um pouco longe
para o seu tempo. Afinal, naqueles anos em que a publicidade ainda
começava a se impor, poucos fabricantes levavam em conta pesquisa de
mercado antes de lançar qualquer produto. Funcionavam como senhores
todo-poderosos que seguiam só a própria intuição e gosto – o público que
tratasse de consumir o que ofereciam. Até porque a concorrência era
mínima. E Pessoa já advogava que se devia consultar o gosto do
consumidor antes de colocar qualquer novidade no mercado. Era um
pensamento revolucionário. |
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III |
Foi a partir de 1925 que Pessoa passou a trabalhar
também na área de publicidade e propaganda, ao conhecer Manuel Martins
da Hora, que seria o fundador da Empresa Nacional de Publicidade, a
primeira agência de publicidade de Portugal. Mas a experiência não foi
bem sucedida, como lembra De Cusatis na introdução. Foi por volta de
1926-1927 que o poeta imaginou um slogan para a Coca-Cola, que então
estava sendo lançada em Portugal, representada pela firma Moitinho
d´Almeida Lda., empresa para a qual o poeta prestou serviços como
profissional autônomo.
O slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Há um jogo
de palavras que se pode chamar de inventivo ou genial, mas, por trás,
havia certa sugestão que hoje nem mesmo um publicitário muito ousado
seria capaz de formular, ainda mais pensando nas conveniências de seu
cliente. Em outras palavras: o que se queria dizer com aquilo é que,
primeiro, a bebida teria um gosto um tanto estranho para a época, mas
que, depois, com a continuidade, poderia oferecer certo êxtase,
obviamente em função de sua toxicidade.
O resultado foi óbvio: não durou muito para que a autoridade sanitária
de Lisboa proibisse a distribuição do produto e determinasse o seu
sequestro. Convenhamos: do ponto de vista comercial, foi um desastre. A
tal ponto aquilo ficou marcado que a Coca-Cola só haveria de voltar ao
mercado português quase meio século depois, ao final da ditadura
fascista (1928-1974), cujo grande ícone foi o professor António de
Oliveira Salazar (1889-1970). Olhando com olhos comerciais, o slogan só
poderia ter saído da cabeça de um inconseqüente. Só mesmo um nefelibata
seria capaz de imaginar que aquilo não poderia trazer conseqüências
funestas para seu cliente, ainda mais na sociedade portuguesa de então
em que as forças do fascismo começavam a cobrir a nação com suas asas
funéreas. Isso não significa dizer que o slogan não tenha qualidades.
Pelo contrário. Preenche todos os requisitos modernos que se exigem de
um bom slogan publicitário. Tanto que, recentemente, em Portugal, por
ocasião do lançamento do Frize, uma água limão-cola, o slogan foi
recriado para: “Primeiro prova-se; depois aprova-se”, como observou
Andréia Galhardo, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Fernando Pessoa (UFP), do Porto, no artigo “Sobre as
práticas e reflexões publicitárias de Fernando Pessoa” (https://bdigital.ufp.pt/dspace/bitstream/.../19-27FCHS2006-2.pdf
-) |
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IV |
É claro que, ao que se saiba, até hoje, ninguém
escreveu isto com todas as letras, até porque Pessoa foi canonizado e
entronizado no altar dos pais da pátria portuguesa, ainda que, em vida,
nunca ninguém lhe tenha dado muita importância. Até para publicar seus
versos sempre encontrou dificuldades, o que o levou a acumular seus
escritos numa arca, que foi o inestimável espólio que legou à Literatura
Portuguesa.
Mas, seja como for, Pessoa não pode ser tomado como gênio das finanças
ou da publicidade -- até porque, nestes dois campos de negócios, a
genialidade está diretamente ligada à capacidade de fazer os clientes
obterem lucros e, obviamente, também lucrar muito com eles. Nem por isso
se pode deixar de reconhecer em Pessoa, depois da leitura destes textos
didáticos, um funcionário de boa formação comercial e econômica, mas daí
a imaginá-lo um mago das finanças ou do mercado é ir além da conta.
Não se pode deixar de assinalar também que Pessoa sempre foi um
antidemocrata pagão, antiliberal e anticatólico, mais propenso a aceitar
as ideias da maçonaria, o que fez no artigo “As Associações Secretas:
análise serena e minuciosa a um projeto de lei apresentado ao
Parlamento", publicado em 1935 no Diário de Lisboa, e de certo
esoterismo, características que De Cusatis ressaltou com sagacidade em
Esoterismo, mitogenia e realismo político em Fernando Pessoa. Uma visão
de conjunto (Porto, Edições Caixotim, 2005).
Era um homem um tanto contraditório, uma alma angustiada, o que,
provavelmente, o levou à dependência alcoólica. Mas era, sobretudo, um
excepcional poeta. Educado em escolas que seguiam as mais puras
tradições britânicas, se tivesse ido para Londres, em 1905, em vez de
Lisboa, como era de sua pretensão, para tornar-se um poeta inglês, é de
imaginar que teria tido melhor sorte na vida, mas aqui de novo
adentramos o perigoso terreno do imponderável: a vida que podia ter
sido, e que não foi... |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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