I
Made in Angola:
arte contemporânea, artistas e debates, livro de ensaios do historiador
e crítico de arte Adriano Mixinge, publicado em português por Edições
Harmattan, de Paris, sob o patrocínio da Fundação Príncipe Claus da
Holanda, reúne 35 ensaios sobre a arte africana e a condição angolana,
num volume de 306 páginas, com capa desenhada pela artista Rosa Cubillo
sobre uma fotografia de Middan Nandignan Campal.
Nascido em Luanda
em 1968, Adriano Mixinge, licenciado em História da Arte pela
Universidade de Havana e doutor em História da Arte pela Universidade
Complutense de Madrid, trabalha como conselheiro cultural na Embaixada
de Angola em Paris. É igualmente membro da Associação Internacional dos
Críticos de Arte (Aica), do Conselho Científico do Ministério da Cultura
e colaborador da delegação de Angola junto à Unesco, além de autor do
romance Tanda (Luanda: Edições de Caxinde, 2006), em que mistura
poesia, crítica literária e de artes plásticas, cartas e outras formas
de discurso, seguindo uma tendência da prosa africana de língua
portuguesa de hoje, que é a diluição das fronteiras entre os gêneros
narrativos.
Como crítico de
artes plásticas, Mixinge é ainda autor de Metáforas angolanas: um
panorama das artes plásticas (1990-2001), livreto de 81 páginas
publicado em 2001 pela Embaixada da República de Angola na França para
apresentar uma exposição que o próprio autor organizou em Paris,
reunindo a produção de pintores, escultores e gravadores.
Em Made in
Angola, Mixinge oferece importante contribuição à História e à crítica
da arte moderna e contemporânea que se vem fazendo em Angola, mostrando
como ela se insere no contexto africano e internacional. Além disso,
trata-se de obra de divulgação de uma produção artística moderna ainda
pouco estudada e de artistas plásticos que, muitas vezes, são mais (re)conhecidos
no restrito círculo europeu das artes do que no Brasil, pois reúne
alguns textos que o autor escreveu originalmente para catálogos de
exposições e outros publicados em revistas ou jornais ou ainda para
serem apresentados em seminários.
Em todos, o que
marca esses textos é a postura independente com que Mixinge denuncia e
discute, sem tergiversar, problemas que preocupam não só os criadores
angolanos como os seus cidadãos e aqueles que acompanham a evolução dos
acontecimentos no mundo africano de língua portuguesa.
II
Embora o autor
não faça referência, não se pode deixar de estabelecer pontes entre o
título Made in Angola com o clássico Made in África, de Luís da Câmara
Cascudo (1898-1986), em que o historiador, folclorista e antropólogo
brasileiro, depois de observações que fez durante viagem realizada em
1965, anotou hábitos, crenças e reminiscências históricas do continente
africano para comprovar as raízes negras da cultura brasileira.
Se Made in África
já foi definido pela historiadora Camila Lembo Ribeiro como o livro da
descoberta (pelo brasileiro) da África negra portuguesa, Made in Angola
é uma obra que permite a descoberta da arte angolana pelos demais povos
lusófonos. Para isso, portanto, é preciso que alguma editora brasileira
venha a se interessar por sua publicação.
Afinal, se em
Made in África Cascudo estuda e aprofunda pontos de ligação entre o
Brasil, em especial o Nordeste, e o continente africano, especialmente a
sua parte ocidental, em Made in Angola Mixinge o que faz é mostrar, a
partir das ideias de transculturação do antropólogo cubano Fernando
Ortiz (1881-1969), que a experiência cultural angolana é resultado de um
substrato cultural majoritariamente de origem bantu, um minoritário não
bantu e de uma herança judeu-cristã portuguesa, que, por força da
imigração forçada de levas de trabalhadores escravos, repetiu-se no
Brasil em larga escala.
Diz Mixinge que,
no contexto da arte contemporânea angolana, essas experiências culturais
podem estar representadas, por exemplo, nas obras de Miguel Petchosky,
mestiço angolano de mãe cokwê e de pai russo, vivendo em Amsterdã;
Franck Lundangi, bakongo que mora nos arredores de Paris, com uma obra
plástica que evoca as iconografias da época medieval européia; Antonio
Ole, que, vivendo em Luanda, oferece uma obra de estética pós-moderna,
que dialoga com as diversas tradições bantu angolanas; João Muabaka (Mayembe),
que vem diretamente do artesanato e da estatuária tradicional angolana;
“e também parte da obra de Nástio Mosquito, que consiste numa série de
vídeos, em que ele faz reflexões acerca da identidade individual e das
reminiscências do exotismo”.
Mas, a rigor,
essas influências podem ser sentidas nos demais artistas que foram
objeto da análise do crítico, como Viteix, Augusto Ferreira, Jorge Gumbe,
Frederico Ningi, Eleutério Sanches, Afonso Massongui, Gonga, Van Kidá,
Fernando Alvim, Telmo Vaz Pereira. Kissanga, Domingos Barcas, Álvaro
Macieira, Henrique Abranches, Costa Andrade e Edgardo Xavier, entre
outros. Todos estão unidos pela angolanidade, conceito que reflete uma
identidade cultural que se faz também de outras heranças, em razão da
diáspora à que boa parte da população do país teve de se entregar por
causa do drama da guerra civil (1976-1991).
III
Mixinge, porém,
não é só historiador e crítico de artes plásticas, mas estudioso da nova
literatura angolana pós-1974, ano que marca o fim da luta do povo
angolano pela sua independência depois de mais de cinco séculos de
domínio colonial e a formação de um governo de coligação nacional que
pouco durou.
A exemplo do que
o crítico uruguaio Ángel Rama (1926-1983) fez em Transculturación
narrativa en América Latina (México: Siglo Veintiuno Editores, 1982),
igualmente a partir das observações de Fernando Ortiz, Mixinge lembra
que a nova narrativa angolana – e o exemplo serve para as demais nações
africanas -- é herdeira tanto do patrimônio das línguas e culturas
africanas locais, como a bantu, como do imaginário ocidental que, por
séculos, entrecruzaram-se. Como Luís Kandjimbo, grande ensaísta e
crítico literário angolano, com uma formação humanística aberta à
interdisciplinaridade, Mixinge revela-se também um grande investigador
da história literária angolana.
IV
Romancista,
Mixinge mostra-se igualmente memorialista dos bons, como deixa entrever
no ensaio “Arte e guerra”, ao recordar um dia de finais de 1974 em que,
morador na Rua 22 do Rangel, bairro pobre situado na periferia de
Luanda, deixou de ir ao Colégio Nossa Senhora da Paz porque soldados dos
diversos movimentos de libertação nacional (MPLA, Unita e FNLA) entraram
na cidade e houve combates por todas as partes. E viu da varanda de sua
casa D.C., uma criança do bairro, ser escolhido para ajudar a içar a
bandeira da então nova República. Mais de três décadas depois, Mixinge,
filho de “assimilados” – ou seja, africanos que viviam sob a órbita dos
colonizadores --, lembra que, hoje, D.C. vive desiludido, na
marginalidade e afastado de qualquer tipo de retórica ou simbologia da
liberdade, incluindo a do socialismo e da democracia, e que a única
liberdade a que aspira é a dos estupefacientes. Ou seja, a sociedade fez
pouco (ou nada) por D.C. e por “um exército de anônimos (que) vive ainda
em condições similares ou piores”.
Esse episódio fez
recordar a este articulista outros dois ocorridos há quase meio século,
quando, ainda colegial de uma escola mantida por um sindicato dos
operários portuários de Santos, foi escolhido para cumprimentar um
visitante, o então presidente João Goulart (1918-1976), e a lembrança
que lhe ficou foi o de um aperto dado por mão excessivamente suarenta,
mas calorosa. E de quando viu da janela de sua morada a tomada daquele
mesmo sindicato dos portuários por tropas do exército no dia 1º de abril
de 1964.
Havia àquela
época a ingênua crença de que os trabalhadores poderiam ascender ao
poder numa pretensa república sindicalista – que, certamente, não teria
sido pior nem melhor do que aquela em que vivemos hoje --, mas que
serviu, naquele contexto de guerra fria, como pretexto para que
liberdades fossem sufocadas e muitas iniqüidades cometidas, apesar do
esforço atual de alguns antigos colaboracionistas em apagar a memória,
ao procurar qualificar de branda a ditadura militar (1964-1985) que
adveio.
Estes retalhos da
memória são aqui reconstituídos porque, de algum modo, servem para
mostrar que a luta da memória contra o esquecimento, de que dizia Milan
Kundera (1929), passa pela instrução. E que, como disse Naguib Mahfuz
(1911-2006), citado por Mixinge, “a morte começa pela memória, e a morte
da memória é a pior de todas”.
Foi pela
instrução que este articulista deixou um bairro tão degradado como o
Rangel para chegar até aqui e escrever estas linhas, assim como Mixinge
deixou a periferia de Luanda para resgatar a história da literatura e
das artes plásticas de seu povo. Afinal, sem a instrução não haveria
sequer quem escrevesse os Evangelhos e o cristianismo não teria chegado
aos nossos dias. |