Adelto Gonçalves

Um Habsburg  no meio do mato     

MATO VIRGEM, de Ferdinand Maximilian Von Habsburg. Tradução, introdução e notas de Moema Parente Augel.  Ilhéus-Bahia: Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), 364 págs., 2010. E-mail: editus@uesc.br editorial@sextanteeditora.pt

                                                           I

            “Palavreado sobre a Liberdade e a Constituição gargarejam goela afora./ Construístes uma barraca para vosso aplaudido Senado./ Mas tudo é loucura e joguete das castas mais privilegiadas./ Pois onde se compram escravos, acrediteis, Liberdade é só caçoada”.

            Estes versos, acredite o desavisado leitor, não são de nenhum ativista do século XIX, algum Bakunin (1814-1876) ou Ravachol (1859-1892) perdido nos trópicos, indignado com a instituição da escravidão ou a insensibilidade das classes privilegiadas. Mas de um infelicitado nobre alemão, Ferdinand Maximilian von Habsburg (1832-1867), o Maximiliano I, imperador do México, que acabou sua breve vida diante de um pelotão de fuzilamento por ordens de Benito Juárez, depois de três anos de reinado, período em que inutilmente tentou convencer os mexicanos de que uma cabeça coroada europeia valia mais que um presidente republicano.

            Talvez não valesse, até porque Maximiliano tinha lá seus defeitos e uma visão eurocêntrica que nunca haveria de se adequar aos trópicos, mas não há como deixar de reconhecer que era uma cabeça aos menos privilegiada que sabia reconhecer até os defeitos de sua própria classe social. Mesmo porque, mais de século e meio depois, não há como deixar de ver em seus versos uma descrição perfeita do Brasil do século XIX e – por que não? – do século XXI.

            Talvez o distraído leitor venha a lembrar que já não há em solo brasileiro reis nem realeza – ainda que um ou outro descendente dos Braganças ainda circule de vez em quando nas páginas da revista Caras – e muito menos escravidão – embora, de quando em vez, os jornais anunciem que fiscais federais invadiram fazendas do sertão em que funcionários eram mantidos sob o regime de cativeiro e de trabalho forçado. Há muitos Brasis.

            Mas o que são os excluídos das periferias das grandes cidades ou do campo sem acesso a serviços públicos de saúde decentes ou ao regime da aposentadoria porque também nunca puderam contribuir para a previdência social, senão escravos ou párias que nem senhores têm que os alimente? Num país em que não há hospitais em número suficiente nem infraestrutura de transporte digna desse nome organiza-se uma copa do mundo de futebol e gastam-se recursos públicos em estádios e outras geringonças que, depois, não servirão para muita coisa, apenas porque obras públicas resultam sempre em “comissões”, “consultorias” e outros eufemismos que inventam para definir a maldita taxa da corrupção. Tudo em meio a palavras altissonantes que são gargarejadas goela afora, pois, afinal, tudo é loucura e joguete das castas mais privilegiadas.

                                                           II

            Primo de D. Pedro II, Maximiliano, irmão do rei Francisco José (Franz Joseph), que muito cedo se tornou imperador da Áustria, orientou-se para a carreira naval e, aos 24 anos de idade, foi promovido a comandante da frota de guerra e, em seguida, comandante-em-chefe da marinha austríaca, já como contra-almirante. Como representante da casa imperial e também por moto próprio, tratou de conhecer muitos países, como Grécia, Turquia, diferentes regiões da Itália, Espanha. Portugal, inclusive a Ilha da Madeira, Albânia, Egito e, finalmente, o Brasil. De cada uma dessas viagens, deixou registro de suas impressões, que foram publicadas à época em livros editados pela imprensa oficial austríaca em reduzidas edições.

            Durante a viagem a Portugal em 1832 conheceu a esposa de D. Pedro I, a ex-imperatriz Amélia de Leuchtenberg. E chegou a ficar noivo de sua filha, Maria Amélia de Bragança, que haveria de morrer aos 22 anos, vítima de tuberculose, a mesma moléstia que abateu seu pai. Em 1858, casou-se com Charlotte, filha do primeiro rei belga, Leopoldo I. Vivia em Trieste, cidade hoje italiana, mas à época sob o domínio austríaco, longe da corte, no castelo Miramar, construído entre 1856 e 1860 para ser sua residência, hoje museu histórico e jóia rara que quem visita a região não deve deixar de conhecer.

            Ao Brasil, Maximiliano fez a sua última e mais importante viagem, provavelmente em função de seu parentesco com a família real brasileira e também por uma curiosidade natural pelo Novo Mundo. Ficaria de 11 de janeiro a 15 de fevereiro de 1860, visitando a Bahia e o Espírito Santo, além de permanecer alguns dias no Rio de Janeiro e em Petrópolis, onde visitou as princesas reais. Encontrou-se com D. Pedro II no Espírito Santo, antes de retornar a Europa, depois de passar dois dias em Recife. Depois de cancelar visita ao Pará, em razão de febres malignas, foi direto para a Bahia, onde passou por Salvador, tendo excursionado ao Recôncavo, antes de seguir para o sul da província, até Ilhéus, onde cumpriu o sonho de conhecer o “mato virgem”, a floresta que ainda não havia sido devastada pelo homem.

            Desse cruzeiro, resultaram três volumes, os últimos de uma série de sete, escritos e publicados em vida pelo autor. O volume Passagem pela Linha conta a saída do porto de Trieste, a chegada à Ilha da Madeira e ao Cabo Verde, até entrar em águas brasileiras. O outro volume, Bahia 1860, foi traduzido para o português e publicado em 1981 pela Editora Tempo Brasileiro, do Rio de Janeiro, mas já se encontra esgotado há muito. O terceiro volume referente a essa viagem e sétimo da série, Mato Virgem, teve sua última edição em 1867, no mesmo ano da morte do autor. E, até agora, era inédito no Brasil.

            É esse volume que sai em edição bem cuidada pela Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, de Ilhéus, com tradução, introdução e notas da professora Moema Parente Augel, mestra em Ciências Humanas pela Universidade Federal da Bahia e doutora em Literaturas Africanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, radicada há muito tempo na Alemanha, mais especificamente em Bielefeld, onde atua na esfera do ensino, depois de ter vivido na Guiné-Bissau de 1992 a 1998. A professora teve o primeiro contato com a obra do arquiduque Maximiliano em 1980 e, desde então, sempre acalentou o desejo de divulgá-la.

                                                           III

            Moema recorda que Mato Virgem é um dos poucos documentos sobre a região meridional da Bahia no século XIX. E ressalta que as anotações de Maximiliano sobre o emigrante alemão Heinrich Berbert e, sobretudo, sobre a personalidade do barão Ferdinand von Steiger-Münssingen e suas atividades como grande fazendeiro constituem a mais saborosa de todas as obras escritas sobre a região.

            Interessado em pesquisas científicas e etnográficas, na tradição das grandes expedições do século XIX, o arquiduque pôde oferecer em primeira mão um panorama da situação política e social do Brasil que seria desconhecido até de seu primo, o imperador brasileiro. Ao seu lado, estiveram também um botânico e um pintor que também produziram obras sobre essa parte do Brasil.

            Moema destaca, na esclarecedora introdução que escreveu para este livro, que Mato  Virgem, assim como Bahia 1860, traz a marca de uma escrita romântica por excelência, embora o arquiduque não deixe escapar a oportunidade de, por meio da ironia, condenar a ineficiência do governo brasileiro, o mau desempenho do clero, a inércia dos colonos alemães lá instalados e, especialmente, os maus tratos infligidos aos escravos. Nem por isso Maximiliano deixa de colocar no papel seu preconceito aristocrático, assumindo os padrões de sua classe social, chegando ao ponto de discutir se os negros são ou não pessoas humanas. Ou assinalar o que entendia como feiúra das escravas africanas, ao se referir às “bocarras” das negras, ou aos “horríveis” mulatos ou ainda aos selvagens “puro sangue”, expressões que hoje chocam por seu preconceito explícito.

            Ainda que o seu olhar deslumbrado de viajante com a natureza sul-americana seja contagiante, o arquiduque não disfarça a sua visão etnocêntrica nem suas pretensões neocolonialistas nem as intenções comerciais e econômicas do governo austríaco em relação a uma jovem nação que ainda lutava para ultrapassar o estatuto de ex-colônia de um país que não figurava entre as potências europeias. Especialmente saborosa é a incursão do arquiduque à mata virgem e sua confraternização com os indígenas que, arredios a princípio, não só deram de comer aos visitantes como ainda se dispuseram a levá-los de volta a Ilhéus remando em suas canoas, pelo rio Cachoeira, passando por quedas d´água e cataratas. Já do Rio de Janeiro, a descrição que o arquiduque faz de sua baía não é das mais entusiasmadas, tendo considerado a visão do golfo de Nápoles mais pitoresca e atraente.

                                                           IV

            A tradução de Moema foi feita com base na edição original de 1864, um volume de 216 páginas escrito num estilo caligráfico de difícil leitura para o leitor contemporâneo na assim chamada escrita gótica. E devidamente cotejada com as duas edições existentes de Mato Virgem: a de 1864, mandada imprimir pelo próprio arquiduque, e a edição póstuma de 1867. Além disso, a tradutora acrescentou esclarecedoras notas de rodapé, especialmente sobre a flora e a fauna brasileiras e as nações indígenas que habitavam a região, tornando este livro de um valor inestimável que deveria figurar em todas as bibliotecas universitárias e públicas do Brasil.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br