Adelto Gonçalves

Para recordar Agostinho da Silva

CAOS E RAZÃO: ESCRITOS DE PEDAGOGIA E CULTURA, de Paulo Archer. Tomar, O Contador de Histórias, 159 págs., 2004.

Figura ímpar da cultura portuguesa que uniu pela inteligência Portugal e Brasil, o filósofo, pedagogo e poeta Agostinho da Silva (1906-1994) é o tema principal do livro Caos e razão: escritos de pedagogia e cultura, que reúne artigos, intervenções e conferências de Paulo Archer, professor de História da Cultura Clássica, de História Contemporânea e de Cultura Portuguesa no Instituto Politécnico de Tomar.

Observa o autor, com razão, que de Agostinho da Silva o que ficou não foi o burocrata, que criou universidades no Brasil, nem o infalível tecnólogo ou mediólogo, mas o professor que criou humanidade, e que não sendo um comunicador nato, foi aquele que orientou a procura e estimulou a curiosidade de cada aluno ou discípulo. Que melhor exemplo para os professores de hoje?

Como lembra o autor, Agostinho da Silva sempre centrou toda a sua atenção na criança – não remetida prudentemente para o seu mundo, mas vivendo no nosso mundo, presente e futuro. Também a esta luz, para o pensador, o professor é um veículo da humanidade. “Certamente que a humanidade não começa nem acaba nele, mas é o elo que desenvolve um esforço pelo reconhecimento dos direitos humanos, como escreve (Agostinho) em plena II Guerra Mundial, porque o professor, sobretudo o sábio, caminha em direção ao paradigma da fraternidade, ou melhor, ele deverá exercer o verdadeiro munus de um sacerdócio cívico”, diz Archer, repetindo palavras agostinianas, sem deixar de lembrar que quem assim escrevia encontrava-se, no entanto, em pleno deserto (e com as luzes fechadas).

Mais adiante, o autor recorda uma entrevista em que Agostinho da Silva diz que, à época em que estava na revista Seara Nova, “com a gente mais culta que havia em Portugal naquela altura”, ninguém lhe falou de um certo Fernando Pessoa: “Nem o Sérgio, nem o Câmara Reis, nem o Aquilino, ninguém falava dele. Aliás, quase não se sabia que ele existia, não foi nunca chamado para nenhuma coisa nem metido num partido, como é tão vulgar hoje fazerem”.

Archer, porém, travando um saudável diálogo póstumo com Agostinho, lembra que não era bem assim, pois hoje conhecem-se referências a Pessoa de alguns dos mais notáveis intelectuais portugueses da primeira metade do século. “Cortesão e Pascoaes conheceram-no na Águia, e há tráfico epistolar que o comprova”, lembra.

O ensaísta observa que um dos textos fundamentais que assinalam a irrupção da nova sensibilidade face à poética e à figura pessoanas e que anatemizava a posição daqueles que abjuraram Pessoa como poeta burguês, “poeta de classe” ou “não-poeta” – sobretudo os neo-realistas, defensores das teses da III Internacional e dos cânones estreitos do realismo socialista – deve-se a um ainda jovem Eduardo Lourenço que nas páginas de O Primeiro de Janeiro, do Porto, em novembro de 1952, denunciou, com violência, “os representantes dessa crítica simplista e grosseira” que “com notável poder de continuidade que os caracteriza, começaram por achá-lo demasiado inteligente e acabaram por catalogá-lo como poeta de classe”.

Archer diz que de Pessoa reclama Agostinho da Silva o pensamento paradoxal, a exasperação do contraditório, a negação do hegemônico pensamento único, o manifesto de uma sobrevivência cultural e rebelião individualista como processo de conquista de um mundo cooperante e fraterno; “mas não a consentida autocontemplação egotista, o deserto do tédio, ou a reversão do paradigma camoniano que ganha e se transfigura, no Martinho da Arcada, num descontentamento contente pelo desamor”.

Em outras palavras: para um lutador, como Agostinho da Silva, acostumado a brigar por suas idéias, o poeta Pessoa seria o homem da mansarda, aquele que, como seu heterônimo Bernardo Soares, contenta-se com o espetáculo do mundo, sem nele intervir, ainda que seja possível na história de vida do poeta extrair um ou outro episódio de intervenção política. Nem por isso Agostinho da Silva deixou de ser um dos primeiros redescobridores de Fernando Pessoa.

Dez anos se passaram desde a morte de Agostinho da Silva, mas ele segue sendo um dos primeiros artífices da cultura luso-brasileira, um sábio como poucos, ainda que não seja tão reverenciado em Portugal e no Brasil como deveria, o que é uma injustiça. Por isso, o livro do professor Archer, embora não seja inteiramente dedicado à obra agostiniana, presta uma justa homenagem a uma imaginação inquieta, livre e insubmissa, que tem feito muita falta nas duas margens do Atlântico.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br