Figura ímpar da cultura portuguesa
que uniu pela inteligência Portugal e Brasil, o filósofo, pedagogo e
poeta Agostinho da Silva (1906-1994) é o tema principal do livro Caos e
razão: escritos de pedagogia e cultura, que reúne artigos, intervenções
e conferências de Paulo Archer, professor de História da Cultura
Clássica, de História Contemporânea e de Cultura Portuguesa no Instituto
Politécnico de Tomar.
Observa o autor, com razão, que de
Agostinho da Silva o que ficou não foi o burocrata, que criou
universidades no Brasil, nem o infalível tecnólogo ou mediólogo, mas o
professor que criou humanidade, e que não sendo um comunicador nato, foi
aquele que orientou a procura e estimulou a curiosidade de cada aluno ou
discípulo. Que melhor exemplo para os professores de hoje?
Como lembra o autor, Agostinho da
Silva sempre centrou toda a sua atenção na criança – não remetida
prudentemente para o seu mundo, mas vivendo no nosso mundo, presente e
futuro. Também a esta luz, para o pensador, o professor é um veículo da
humanidade. “Certamente que a humanidade não começa nem acaba nele, mas
é o elo que desenvolve um esforço pelo reconhecimento dos direitos
humanos, como escreve (Agostinho) em plena II Guerra Mundial, porque o
professor, sobretudo o sábio, caminha em direção ao paradigma da
fraternidade, ou melhor, ele deverá exercer o verdadeiro munus de um
sacerdócio cívico”, diz Archer, repetindo palavras agostinianas, sem
deixar de lembrar que quem assim escrevia encontrava-se, no entanto, em
pleno deserto (e com as luzes fechadas).
Mais adiante, o autor recorda uma
entrevista em que Agostinho da Silva diz que, à época em que estava na
revista Seara Nova, “com a gente mais culta que havia em Portugal
naquela altura”, ninguém lhe falou de um certo Fernando Pessoa: “Nem o
Sérgio, nem o Câmara Reis, nem o Aquilino, ninguém falava dele. Aliás,
quase não se sabia que ele existia, não foi nunca chamado para nenhuma
coisa nem metido num partido, como é tão vulgar hoje fazerem”.
Archer, porém, travando um
saudável diálogo póstumo com Agostinho, lembra que não era bem assim,
pois hoje conhecem-se referências a Pessoa de alguns dos mais notáveis
intelectuais portugueses da primeira metade do século. “Cortesão e
Pascoaes conheceram-no na Águia, e há tráfico epistolar que o comprova”,
lembra.
O ensaísta observa que um dos
textos fundamentais que assinalam a irrupção da nova sensibilidade face
à poética e à figura pessoanas e que anatemizava a posição daqueles que
abjuraram Pessoa como poeta burguês, “poeta de classe” ou “não-poeta” –
sobretudo os neo-realistas, defensores das teses da III Internacional e
dos cânones estreitos do realismo socialista – deve-se a um ainda jovem
Eduardo Lourenço que nas páginas de O Primeiro de Janeiro, do Porto, em
novembro de 1952, denunciou, com violência, “os representantes dessa
crítica simplista e grosseira” que “com notável poder de continuidade
que os caracteriza, começaram por achá-lo demasiado inteligente e
acabaram por catalogá-lo como poeta de classe”.
Archer diz que de Pessoa reclama
Agostinho da Silva o pensamento paradoxal, a exasperação do
contraditório, a negação do hegemônico pensamento único, o manifesto de
uma sobrevivência cultural e rebelião individualista como processo de
conquista de um mundo cooperante e fraterno; “mas não a consentida
autocontemplação egotista, o deserto do tédio, ou a reversão do
paradigma camoniano que ganha e se transfigura, no Martinho da Arcada,
num descontentamento contente pelo desamor”.
Em outras palavras: para um
lutador, como Agostinho da Silva, acostumado a brigar por suas idéias, o
poeta Pessoa seria o homem da mansarda, aquele que, como seu heterônimo
Bernardo Soares, contenta-se com o espetáculo do mundo, sem nele
intervir, ainda que seja possível na história de vida do poeta extrair
um ou outro episódio de intervenção política. Nem por isso Agostinho da
Silva deixou de ser um dos primeiros redescobridores de Fernando Pessoa.
Dez anos se passaram desde a morte
de Agostinho da Silva, mas ele segue sendo um dos primeiros artífices da
cultura luso-brasileira, um sábio como poucos, ainda que não seja tão
reverenciado em Portugal e no Brasil como deveria, o que é uma
injustiça. Por isso, o livro do professor Archer, embora não seja
inteiramente dedicado à obra agostiniana, presta uma justa homenagem a
uma imaginação inquieta, livre e insubmissa, que tem feito muita falta
nas duas margens do Atlântico. |