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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
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Adelto Gonçalves |
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São Paulo colonial em reconstrução |
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HISTÓRIA DE SÃO PAULO COLONIAL, de. São Paulo:
Editora Unesp, 346 págs., 2009, R$ 48. E-mail:
feu@editora.unesp.br
Site: www.editoraunesp.com.br |
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I |
Que a história da capitania de São Paulo tem
sido pouco estudada até aqui não se discute, ainda que não seja menos
atraente do que a de outras capitanias como Minas Gerais, Bahia e Rio de
Janeiro. Mas o que não se pode admitir é que informações básicas
equivocadas sobre essa história sejam repetidas em estudos acadêmicos
porque livros impressos de publicação recente ainda trazem dados
errados, em razão de pesquisas superficiais.
É o caso da relação dos governadores e
capitães-generais que ocuparam o poder da capitania de São Paulo na
época colonial, que consta do livro Documentos manuscritos avulsos da
capitania de São Paulo. Catálogo I - 1644-1830 (São Paulo: Imprensa
Oficial/Fapesp/Edusc, 2000), coordenado pelo professor José Jobson de
Andrade Arruda, da Universidade de São Paulo.
Entre
os vários erros da lista de capitães-generais e governadores da
capitania de São Paulo, à pág.283, lá aparece D.Antônio de Távora, o
conde de Sarzedas, como governador de 1732 a 1748, quando ele deixou o
governo em 1737. Ora, o governador morreu a 20/8/1737 em Tocantins, na
capitania de Goiás, acometido por “sezões (febres) do sertão”, como
consta de documento do Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa
(Conselho Ultramarino, caixa 12, doc. 1162, 29/8/1737).
Depois
do conde de Sarzedas, foram governadores Antônio Pires de Ávila
(interino) – 1737-1738; Manuel Rodrigues de Carvalho (interino) –
1738-1739; e D.Luís de Mascarenhas, conde d´Alva – 1739-1748, mas nada
disso consta da lista. De 1748 a 1765, a capitania de São Paulo perdeu
autonomia e ficou adjudicada à capitania do Rio de Janeiro.
Na lista citada, José Raimundo Chichorro da Gama Lobo
aparece como governador de 1786 a 1788, mas não consta a observação de
que ocupava o cargo interinamente. Já Antônio José da Franca e Horta
aparece como governador de 1802 a 1811, o que é correto, mas não consta
que, em meio ao seu mandato, houve um governo interino à época da
instalação da Corte ao Rio de Janeiro. Esse governo interino foi formado
por D.Mateus de Abreu Pereira, bispo, Miguel Antônio de Azevedo Veiga e
José Maria do Couto e durou de julho a outubro de 1808.
Também não consta na lista apresentada em Documentos
manuscritos avulsos da capitania de São Paulo – obra hoje
obrigatoriamente citada por estudiosos que se ocupam com a história
paulista -- que, depois do governo de Luís Teles da Silva Caminha e
Meneses, o marquês de Alegrete (1811-1813), houve novo governo interino
formado por D.Mateus de Abreu Pereira, Nuno Eugênio de Locio e Scilbs e
Miguel José de Oliveira Pinto entre 1813 e 1814.
Da lista consta ainda que D.Francisco de
Assis Mascarenhas Castelo Branco Lencastre, o conde de Palma, governou
de 1813 a 1815, quando seu governo foi até 1817. Depois do conde de
Palma, houve um novo governo interino formado por D.Mateus de Abreu
Pereira (bispo), Nuno Eugênio de Locio e Scilbs (ouvidor) e Miguel José
de Oliveira Pinto (intendente da Marinha de Santos), que durou de 1817 a
1819, o que também não consta da lista daquele livro.
Apesar desses erros, é de notar que um
exemplar de Documentos manuscritos avulsos da capitania de São Paulo, à
falta de um livro mais atualizado, consta da estante principal da sala
de leitura do Arquivo Público do Estado de São Paulo, sempre à
disposição dos pesquisadores. Até porque, com exceção da lista citada, a
catalogação oferecida pelo livro é bastante útil aos investigadores da
história paulista. |
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II |
Corrigir erros fundamentais como esses
não foi o objetivo de História de São Paulo Colonial (São Paulo, Editora
Unesp, 2009), de Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), Carlos de Almeida
Prado Bacellar, Eliana Réa Goldschmidt e Lúcia M. Bastos P. Neves, até
porque esse tipo de preocupação parece que não mais faz parte do
cotidiano dos historiadores contemporâneos.
Na maioria, os historiadores de hoje
estão mais preocupados em recortar temas específicos, como o da
escravidão indígena, as expedições à região Centro-Oeste, as formas de
casamento e as experiências femininas, todos dispostos a seguir os
ditames da chamada escola dos Annales, designação que vem do periódico
acadêmico francês Revue des Annales, que se destacou por incorporar
métodos das Ciências Sociais à História, sob a inspiração dos
historiadores Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956),
passando por Fernand Braudel (1902-1985).
Nada contra essa postura, que é, de fato,
a mais indicada nos dias de hoje. Mas o que não se pode fazer é acusar
de adepto de uma leitura positiva da História todo aquele historiador
que se preocupa com o rigor da informação e que ainda prefere seguir uma
seqüência cronológica e tradicional, narrando acontecimentos ou
descrevendo feitos de grandes personagens – em geral os administradores
da capitania. Como se a história factual das capitanias do Estado do
Brasil já estivesse toda rigorosamente levantada, sem equívocos de
nenhuma espécie. Pois bem, se a história da capitania de São Paulo tem
sido tratada com tanta leviandade de pesquisa, o que se pode esperar da
história das demais capitanias do tempo do Brasil colônia?
É de notar ainda que, para se fazer
aquele tipo de abordagem histórica recomendado pela escola dos Annales,
é preciso que se esteja também ancorado no rigor historiográfico quanto
a datas e nomes daqueles que ocuparam postos de mando. E, se um desses
livros fundamentais sobre a história básica da capitania traz equívocos,
são grandes as possibilidades de que a informação errada seja repassada
ad infinitum.
Não é este o caso de História de São
Paulo Colonial, ressalte-se, mais uma vez. Trata-se de uma obra
fundamental que abrange desde os primórdios da história paulista, quando
ainda se chamava capitania de São Vicente, até chegar ao complexo
processo que culminou com a independência do Brasil. Fiéis à escola dos
Annales, seus autores procuraram rejeitar o resumo simplista dos
registros historiográficos, tratando de fazer uma escolha criteriosa dos
temas.
Desse modo, o livro apresenta em seus
quatro capítulos o período donatarial (1532-1709), as novas fronteiras e
a influência que foi estabelecida com a descoberta do ouro (1710-1756),
e a recuperação da autonomia paulista em relação ao Rio de Janeiro
(1765), até chegar ao movimento constitucional, exatamente os períodos
que marcam a consolidação de uma das regiões mais importantes da
História do Brasil.
Assim, sob diversos ângulos, os
pesquisadores percorrem os conflitos entre a população e os
eclesiásticos, a posse da terra e de escravos, o começo da militarização
da capitania, os processos da Inquisição, a deserção de soldados, a
prática da justiça e aspectos econômicos, políticos, educacionais e
culturais. A pesquisa abrange ainda questões como o casamento entre
brancos e negros, além de refletir sobre a participação da já então
província de São Paulo no processo que marcou a separação política do
Brasil de Portugal. |
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III |
Em “São Vicente, capitania donatarial
(1532-1709)”, a professora Maria Beatriz procura levantar questões como
o poder do capitão-mor, representante do donatário, e a presença da
Coroa na área de Justiça e sua intervenção desde o início na área
financeira com a Provedoria da Fazenda. E ressalta que não deixa de ser
curioso que a data da fundação da cidade de São Paulo, por força e poder
da Companhia de Jesus, seja 1554 e não, como em todas as vilas da
colônia, a data formal da instalação do pelourinho e do início das
atividades da Câmara, o que só ocorreu em 1560 por ordem do governador
Mem de Sá ao extinguir a vila de Santo André por instâncias dos
jesuítas.
“Ora, o que caracteriza a fundação de uma
vila, quer em Portugal, quer no Brasil”, defende a historiadora, “é a
existência do poder municipal, simbolizado pelo pelourinho e pela
Câmara, e não um colégio de padres, por muitos índios que tivessem à sua
volta”. Assim, acrescenta, “não há dúvida de que se têm contado
erradamente os anos da existência da cidade de São Paulo e que só em
2010 se deveriam comemorar os 450 anos”.
Quem ainda se arrisca em falar em “elite
branca” em São Paulo deveria ler o que a historiadora aponta, quando
observa que a migração atlântica foi fundamentalmente masculina no
século XVI. “Os brancos tinham filhos com as índias, e os mamelucos e
mamelucas nascidos dessas ligações gozavam inicialmente de um estatuto
social igual ao dos brancos, sobretudo as mulheres”, diz. Já os
africanos eram muito raros na capitania de São Vicente àquela época – os
que existiam eram designados como “tapanunhos”. Só com a descoberta do
ouro é que um alvará régio de 1701 permitiu que 200 negros de Angola
viessem para a capitania.
No capítulo 2, “O ouro e as novas
fronteiras (1710-1765)”, Maria Beatriz, Carlos Bacelar e Eliana
Goldschmidt procuram deslindar as mudanças administrativas quando a
capitania donatorial passou para a Coroa, além de analisar a jurisdição
do Santo Ofício e, especialmente, a questão do prestígio social e da
prática da justiça.
À pág.155, os historiadores dizem que, em
1738, o Conselho Ultramarino discutiu uma carta do governador da praça
de Santos queixando-se do ouvidor-geral João Rodrigues Campelo. Isto
porque, à época, quando o conde de Sarzedas ausentou-se para as minas de
Goiás, teria sido o governador da praça de Santos quem ficara
encarregado do governo da capitania. Foi ele quem deu ordem ao
mestre-de-campo Antônio Pires de Ávila, em São Paulo, para que o ouvidor
anulasse a eleição que havia feito dos oficiais da Câmara, na qual
excluíra as famílias Pires e Camargo, que, por alvarás régios, deveriam
gozar de preferência na governança. Em resultado dessa ordem, o ouvidor
prendeu o mestre-de-campo “e o remeteu em ferros para a Bahia, onde
morreu na prisão”.
Mas esta história não é bem assim. Não é
certo que tenha sido o governador da praça de Santos, João dos Santos
Ala, quem assumiu interinamente o governo da capitania de São Paulo.
Quando partiu para Goiás, por ordem de D.João V, o conde de Sarzedas
deixou o governo nas mãos do mestre-de-campo Ávila, que, pouco depois,
ao entrar em atrito com o ouvidor-geral de São Paulo, João Rodrigues
Campelo, teve a sua prisão determinada pelo magistrado (AHU, SP, caixa
2, doc.46, 2/6/1738). Um dos motivos dessa desavença teria sido o fato
de Campelo estar utilizando índios da aldeia de Barueri, administrada
pelo Convento do Carmo, em jornadas de trabalho para si e seus amigos,
com o que o mestre-de-campo não concordava.
Com a prisão do mestre-de-campo pelo ouvidor, assumiu
o governo também interinamente o tenente-general Manuel Rodrigues de
Carvalho, que ficou na regência da cidade de São Paulo e das vilas de
Serra acima (AHU, Conselho Ultramarino, SP, caixa 13, doc.1301,
post.14/5/1740) e nessas funções estava quando, a 12 de fevereiro de
1739, chegou D.Luís de Mascarenhas, o novo governador e capitão-general
nomeado, com mandato para três anos (AHU,Conselho Ultramarino, SP, caixa
13, doc. 1232, 4/8/1738).
O que ocorreu é que, sem um governador e
capitão-general efetivo, a capitania de São Paulo ficou praticamente
acéfala, dividida entre o Litoral e a região acima da Serra do Mar. Isso
provocou a eclosão de rixas e disputas entre altos funcionários régios,
o que levou o mestre-de-campo e governador da praça de Santos, João dos
Santos Ala, a escrever ao Conselho Ultramarino, dando conta das
desavenças entre Ávila e Campelo. À época, o governador da praça de
Santos era subordinado ao governador e capitão-general da capitania do
Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade.
Em razão das questiúnculas, Freire de Andrade viajou
a São Paulo para ver de perto os fatos e os negócios da capitania.
Responsável pela praça de Santos (AHU, CU, São Paulo, caixa 13, doc.
1259, 21/3/1739), Freire de Andrade aproveitou a viagem para acompanhar
as obras da Fortaleza de Vera Cruz de Itapema e assumir interinamente o
governo da capitania, reafirmando o governador da praça de Santos como
seu representante direto. Só que nem Ávila nem Carvalho, na cidade de
São Paulo e vilas de Serra acima, aceitaram pacificamente essa
subordinação. |
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IV |
O capítulo 3, “Do morgado de Mateus à
Independência”, escrito pelos três historiadores, aborda temas
relacionados à educação, cultura, ilustração, conflitos entre população
e eclesiásticos, sem deixar de discutir a militarização da capitania e a
conseqüente deserção de soldados. Dando uma continuidade específica ao
que António Manuel Hespanha já estudou em As vésperas do Leviathan
(instituições e poder político – Portugal -- século XVII (Coimbra,
Almeida, 1994), os historiadores observam que, ao contrário do que se
dava em outras regiões do império português, a criação dos cargos de
juízes de fora na capitania de São Paulo só ocorreria a partir de 1810,
embora ao longo dos anos tivessem ficado explícitos os grandes
inconvenientes que resultavam da existência de juízes ordinários que,
sendo naturais da terra e sem conhecimentos de Direito, cometiam toda a
sorte de arbitrariedades, deixando muitos delitos sem o devido castigo.
Muitos desses juízes ordinários mal sabiam ler.
No capítulo 4, “São Paulo e a
Independência”, é de notar uma referência ainda pouco conhecida na
História: a de que o episódio do 7 de setembro de 1822 pouca – ou
nenhuma repercussão – teve à época, tendo passado praticamente
desapercebido, a não ser por um breve comentário do jornal fluminense O
Espelho, de 20 de setembro. “No final do ano, o decreto de 21 de
dezembro ainda definia o 12 de outubro, a aclamação do imperador e sua
coroação, em 1º de dezembro, como os dias de gala, e ignorava o 7 de
setembro”, dizem os historiadores.
Na verdade, a separação efetiva do Brasil
de Portugal deu-se a 3 de junho de 1822, com a convocação da Assembléia
Brasílica. Foi nesse dia que os brasileiros disseram aos portugueses que
não mais se interessavam pela continuidade da união. Só que, contada
assim, a independência não seria passada para população como obra de um
Bragança. Para evitar isso, em janeiro de 1823, o governo provisório de
São Paulo solicitou ao ministro José Bonifácio de Andrada e Silva
(1763-1838) licença para a ereção de um monumento às margens do rio
Ipiranga.
Tudo não teria passado de uma jogada
política de José Bonifácio com o objetivo de fazer de um gesto sem
maiores pretensões um fato de grande repercussão. Dessa maneira, o
Brasil saberia que a sua separação de Portugal dependera exclusivamente
da vontade do Bragança. Ao mesmo tempo, seria varrida para debaixo do
tapete toda a luta dos demais em favor da independência. É assim que os
poderosos do dia escrevem a História.
V
A organizadora deste livro, Maria Beatriz
Nizza da Silva (1938), lisboeta, é graduada em História e Filosofia na
Universidade de Lisboa. Em 1963, radicou-se no Brasil, lecionando no
Departamento de Filosofia e no Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pela
qual se doutorou em 1967. Aposentou-se em 1990 como professora de Teoria
e Metodologia da História, passando a ser convidada por universidades
portuguesas para assumir a cátedra de História do Brasil.
Uma das maiores autoridades na área,
Maria Beatriz é autora de vários livros, entre os quais se destacam
Cultura no Brasil Colônia (1998), Sistema de casamento no Brasil
colonial (1984), História da família no Brasil colonial (1994), A
cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do
Brasil (1999), Donas e plebéias na sociedade colonial (2002) e Ser nobre
na Colônia (Editora Unesp, 2005).
Carlos de Almeida Prado Bacelar, doutor
em História Social pela USP, é professor do Departamento de História da
USP e coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Eliana Réa
Goldschmidt é pesquisadora do Centro de Estudos de Demografia Histórica
da América Latina (Cedhal) e autora de Casamentos mistos, liberdade e
escravidão em São Paulo colonial e Convivendo com o pecado na sociedade
colonial paulista 1719-1822. Já Lúcia M.Bastos P.Neves, doutora em
História Social pela USP, é professora titular de História Moderna da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Participa do Pronex/CNPq/Faperj:
“Nação e cidadania no Império: novos horizontes”. |
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e
Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br |
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