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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
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Adelto Gonçalves |
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Novas perspectivas de leitura |
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LEITOR REAL E TEORIA DA
RECEPÇÃO: TRAVESSIAS CONTEMPORÃNEAS, de Robson Coelho Tinoco. Vinhedo-SP:
Editora Horizonte, 184 págs., 2010, R$ 34,00. E-mail: contato@editorahorizonte.com.br
Site: www.editorahorizonte.com.br |
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I |
Textos literários
provocam reações diferentes em diferentes leitores e, por essa
possibilidade de “diferença”, para a teoria da recepção, esses textos
sempre são dinâmicos, gerando um movimento complexo que se desdobra no
tempo. Essa frase de Pedro Lyra, retirada por Robson Coelho Tinoco de
Literatura e Ideologia (Petrópolis, Vozes, 1995), explica bem não só o
que é a chamada estética da recepção como define na medida certa aquilo
que se pode chamar de mistério da linguagem, ou seja, a capacidade que
têm certos textos de atravessar os anos e os séculos, sempre apreciados
por gerações de leitores.
Em 2006, quando este pesquisador foi convidado a escrever o
prefácio para um livro de Contos, de Machado de Assis (1839-1908), que
seria publicado em edição russo-portuguesa pela Universidade Estatal
Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, com o apoio da Embaixada do
Brasil em Moscou, o que lhe veio à mente foi que os brasileiros nunca
deixaram de ler Dostoievski (1821-1881), muitas vezes, em traduções de
segunda mão, do francês para o português.
E mais importante: sempre o entenderam, pois imaginavam o
que teria sido a São Petersburgo oitocentista e as personagens que nela
se movimentavam. Sendo assim, não haveria por que temer a recepção de
Machado de Assis na Rússia porque, afinal, o leitor russo, de alguma
maneira, haveria de imaginar o que teria sido o Rio de Janeiro
oitocentista e entender muito bem as personagens machadianas que nela se
movimentaram.
É que o romance como o conto sempre existe em três planos,
como certa vez, num final de tarde de janeiro de 1990, no Café Samoa, em
Barcelona, expôs a este pesquisador o escritor catalão Eduardo Mendoza:
como o autor o imagina antes de escrevê-lo; depois, quando está escrito;
e, por fim, quando o leitor abre o livro. Ao acabar de ler o romance (ou
o conto), o leitor termina também de reescrevê-lo à sua maneira porque,
afinal, imagina coisas que não conhece nem nunca poderá conhecê-las
porque perdidas no tempo, tal como a São Petersburgo dostoievskiana ou o
Rio de Janeiro machadiano.
Esses episódios (re)imaginados, de acordo com a capacidade
de cada leitor, que são o produto final do processo criativo iniciado
pelo escritor, constituem o mistério da linguagem, um estranho fenômeno
há muito estudado, mas nunca suficientemente desvendado, apesar de todo
o esforço da chamada teoria da recepção ou “estética da recepção”, a
mais jovem e mais importante manifestação da hermenêutica, oriunda da
Alemanha. |
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II |
A que vêm estas reflexões e lembranças? Vêm a propósito do livro Leitor
real e teoria da recepção: travessias contemporâneas (Vinhedo-SP,
Editora Horizonte, 2010), de Robson Coelho Tinoco, em que o autor, num
primeiro momento, reúne estudiosos renomados na esfera da estética da
recepção para, em seguida, apresentar análises críticas de obras de
Machado de Assis, Aluísio Azevedo (1857-1913), Guimarães Rosa
(1908-1967), Gustave Flaubert (1821-1880), Charles Baudelaire
(1821-1867) e Murilo Mendes (1901-1975). E o faz com muito fôlego e
criticidade ao analisar obras literárias cujos enredos nem sempre saltam
facilmente aos olhos do leitor, como observa Ezequiel Theodoro da Silva
na apresentação.
Num dos ensaios da primeira parte do livro, “A semiologia da
teoria da recepção no destino (atual) do texto moderno”, Tinoco observa
que a leitura (de um texto jornalístico, de um romance, de um poema
etc.), que não é uma atividade meramente cumulativa, não se dá por meio
de movimento linear progressivo.
“Lê-se simultaneamente imaginando e inferindo, recordando e
prevendo, tentando, conscientemente ou não, apreender todos os níveis
textuais de informação – poética, gramatical, lexical, semântica”, diz,
lembrando que na análise de Wolfgang Iser, integrante da Escola de
Constança e, ao lado de Hans Robert Jauss (1921-1997), o maior expoente
da estética da recepção, lêem-se também as “estratégias textuais” a
partir dos “repertórios” das experiências de vida e cultura de cada
leitor. “Assim”, explica Tinoco, “é natural que nossas inferências
iniciais, acerca do que vai sendo lido, gerem um conjunto de referências
para a interpretação e compreensão do que vem a seguir, que bem pode
demonstrar, como incorretos, as inferências e entendimentos originais”.
Na conclusão desse ensaio, Tinoco vai mais além, ao observar
que a teoria da recepção estabelece a troca (recepção) de informações
(entre autor e leitor), “concluindo um sentido duplo de análise – o da
obra manifestando ao mundo externo sua mensagem literária e o das
experiências de mundo e vida, próprias de cada pessoa (leitor), compondo
os grupos sociais de uma determinada sociedade”. |
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III |
Especialista na obra de Murilo Mendes e autor de Murilo Mendes: poesia
de liberdade em pânico (Brasília, Editora da Universidade de
Brasília-UnB, 2007), Tinoco incluiu neste livro o ensaio “Murilo Mendes:
a recepção aplicada a um estudo poético. A construção de uma poética
inovadora”, que constitui um resumo crítico da análise desenvolvida em
seu livro.
Nesse ensaio, lembra que o modernismo romântico de Murilo
Mendes libera uma carga efetiva de emoção-em-criação abrigada nesses
dois polos em que a poesia se instala: escritor e leitor. “Nesse
sentido, as emoções representadas por sua visão literária não são, em
relação a esses dois pólos, iguais às experimentadas na vida cotidiana,
marcada por necessidades imediatistas. São emoções diluídas em um tipo
de tranqüila recordação que são liberadas pela leitura/recepção atenta
em análises produtivas. Na verdade, são percepções sentimentais de
emoções”, observa. |
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IV |
À luz da estética da recepção, Tinoco faz ainda uma excepcional análise
do conto “O Espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana”, de
Machado de Assis, no ensaio “Leitura e recepção dos heterônimos
(possíveis) em Machado de Assis: a modernidade nos personagens
machadianos”, em que defende a idéia de que existem “muitos Machados”,
mortos-vivos e eternos, assumindo sua forma e espaço nas ruas, nas
alcovas, nas repartições, nos templos, nas festas, nos manicômios, como
observou Luís Viana Filho em A vida de Machado de Assis (Porto, Lello &
Irmão, 1984).
Como se sabe, em “O Espelho”, encontramos uma síntese
perfeita da visão de mundo machadiana, conto em que o alferes Jacobina
expõe a um grupo de cavalheiros a sua concepção sobre a natureza da
alma, defendendo que a alma interior seria formada por emoções e
sentimentos mais íntimos que não ousamos dizer a ninguém, enquanto a
alma exterior representaria o modo como interiorizamos a imagem que os
outros fazem de nós.
A partir daí, Tinoco analisa Machado de Assis em três de
suas manifestações, ainda que haja outras que podem ser consideradas e
redescobertas, como diz: o homem, o autor e o narrador. Essas três
manifestações, no entender do ensaísta, podem ser vistas também como
“heterônimos” do senhor Joaquim Maria Machado de Assis, assim como
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são de Fernando Pessoa
(1888-1935). Mas, ao contrário de Pessoa, que conferiu local, data de
nascimento e vida própria aos seus heterônimos, os de Machado de Assis
“tiveram vida dependente um do ouro, com a particularidade de
representar, cada um deles, um outro olhar para lugares diferentes de
onde os outros olhavam”.
Na verdade, Quincas Borba, Brás Cubas e dom Casmurro podem
ser vistos mais como “semi-heterônimos”, assim como o Bernardo Soares,
do Livro do Desassossego, é considerado um “semi-heterônimo” pessoano,
tal como o definiu Jorge de Sena em Fernando Pessoa & Cia.Heterónima:
estudos coligidos 1940-1978 (Lisboa, Edições 70, 1984). Ou seja: um
personagem que assume todas as características, principalmente a
idiossincrasias, de seu criador.
Seja como for, para concordar com as conclusões de Tinoco –
ou abrir polêmica com elas –, o leitor-receptor terá de ler (e reler)
este livro com atenção. Sairá dessa leitura – ou “travessia” – bem
diferente, engrandecido e apto a entender como a estética da recepção
pode oferecer visões interpretativas que abrem novas perspectivas de
leitura. É essa a função de todo bom crítico. Como Tinoco mostra muito
bem neste livro. |
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V |
Robson Coelho Tinoco, nascido em Guaratinguetá-SP, em 1960, é mestre em
Língua Portuguesa (PUC-SP) e doutor em Literatura Brasileira pela UnB,
onde é professor desde 1996 no Departamento de Teoria Literária. Em
2009, iniciou seu pós-doutoramento em Língua Portuguesa, pesquisando
práticas e metodologias de leitura literária no ensino médio de ão Paulo
e do Distrito Federal. |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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