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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
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Adelto Gonçalves |
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Lêdo Ivo, poeta e ensaísta |
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O AJUDANTE DE
MENTIROSO: ENSAIOS, de Lêdo Ivo. Rio de
Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Editora Universitária Candido
Mendes (Educam), 349 págs., 2009. E-mail: cmendes@candidomendes.edu.br |
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I |
Grandes poetas, geralmente, resultam em
grandes ensaístas. Talvez pela necessidade que têm de sistematizar em
ideias aquilo que, muitas vezes, é atribuído apenas à inspiração, embora
se saiba que os chamados poetastros só conseguem escrever versos de pés
quebrados. Afinal, não dá para imaginar um poeta inspirado que não
conheça a fundo o seu ofício, isto é, que não seja um grande teórico, o
que significa horas de leitura e conhecimento.
Só de uma enfiada pode-se lembrar aqui de
alguns poetas que cumpriram com rigor esse duplo papel: T.S.Eliot
(1888-1965), Charles Baudelaire (1821-1867) e Octavio Paz (1914-1998),
entre os de outras línguas; Fernando Pessoa (1888-1935) e José Régio
(1901-1969), entre os portugueses; e Mário de Andrade (1893-1945),
Oswald de Andrade (1890-1954), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e
Paulo Leminski (1944-1989), entre os brasileiros.
Entre os brasileiros vivos, há pelos
menos três que são tributários dessa estirpe e cumprem esse papel
anfíbio: Alberto da Costa e Silva, Ivan Junqueira e Lêdo Ivo, todos
membros da Academia Brasileira de Letras. Haveria outros, ainda que não
acadêmicos que não fogem dessa linhagem, como Mário Chamie, Cláudio
Willer, Moacir Amâncio e Álvaro Alves de Faria – só para ficar com
paulistas –, mas é de Lêdo Ivo que se quer aqui falar a propósito de seu
O Ajudante de Mentiroso, reunião de 24 textos ensaísticos curtos
produzidos em épocas distintas e a respeito de temas diversos, incluindo
participações em solenidades acadêmicas e fóruns universitários.
Em Lêvo Ivo, como em Junqueira, é nítida
a influência do ensaísmo anglo-saxônico, especialmente de Eliot, para
quem o ofício não exigia uma postura rígida nem solene, mas um estilo
coloquial, exatamente aquilo que o ensaísta alagoano constata em José
Lins do Rego (1901-1957) que, se não foi poeta, mas romancista, ao
reunir impressões de um passeio a Europa na década de 1950, escrevia “à
maneira de um Montaigne (1533-1592) ou um Stendhal (1783-1842) – como se
a viagem fosse uma conversação”.
Como muito bem observou Eugénio Lisboa em
recensão deste livro publicada no Jornal de Letras, de Lisboa, de
23/3/2010, a referência ao francês Montaigne não é fortuita nem invalida
a observação inicial que consta do parágrafo acima. Pelo contrário.
“Esta alusão ao mestre francês não deixa de ter significado incisivo,
porquanto foi ele o pai do ensaio de Bacon (1561-1626) e de todo o
grande ensaísmo anglo-saxônico, caracterizado por uma conversa altamente
civilizada, mas informal”, diz Lisboa.
É o que, em outras palavras, afirma Lêdo
Ivo ao observar, em relação a José Lins do Rego, que “a grande lição do
ensaio ocidental é o da literatura em língua inglesa, com os seus
ensaístas informais, que escrevem sobre ruas tortas, cemitérios,
cidades, viagens, cenas cotidianas, sonhos. E esse tipo de ensaio
praticado pelos ingleses, se por um lado se distancia inapelavelmente do
eruditismo predatório que grassa entre nós, por outro se aproxima da
nossa crônica de jornal”.
Para Lêdo Ivo, um bom ensaísta é um
cronista culto, que sabe escrever. “E uma apostila não é um ensaio”,
acrescenta, de modo peremptório. De fato, ao contrário do que imaginam
certos ensaístas saídos de cursos de doutorado de nossas principais
instituições, escrever bem não é escolher palavras desusadas nem
construir parágrafos herméticos e quilométricos que levam o leitor a
interromper a leitura para voltar ao princípio da frase que já esqueceu
por tédio ou fastio e reencontrar o fio do pensamento. |
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II |
Se a observação serve para definir o ensaísmo de José Lins do Rego, cai
à medida também para explicar o que Lêdo Ivo entende por ensaio. Pois é
com essa “prosa lépida e nervosa” que identifica no romancista paraibano
que ele, no ensaio “Os modernismos do século XX”, investe contra certa
postura de professores da Universidade de São Paulo (USP) de outros
tempos que, por regionalismo ou sabe-se lá por que, transformaram a
Semana de Arte Moderna de 1922 no acontecimento mais importante da vida
cultural brasileira no século passado. E que professores mais moços,
talvez por desídia ou excessiva reverência a nomes consagrados, preferem
não revisar.
Segundo Lêdo Ivo, há mais de meio século,
a USP, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Pontifícia
Universidade Católica (PUC), de São Paulo, e outros órgãos pedagógicos,
culturais, editoriais e jornalísticos procedem a uma verdadeira lavagem
cultural em dezenas ou centenas de milhares de jovens estudantes.
“Professores e pesquisadores, guiados e monitorados por mestres
influentes erigidos à cômoda condição de monstros sagrados (ou monstros
leigos, inaposentáveis), recebem e propalam sempre a mesma lição: a da
dimensão providencial da Semana de Arte Moderna de 1922 e do papel
seminal que teria exercido o Modernismo paulista na elaboração da vida
cultural do Brasil no século XX”, diz, ressaltando que “inumeráveis
teses de mestrado – e que são, na realidade, dóceis ou bisonhos
atestados de amestramento – repetem exaustivamente o tema, já convertido
numa cláusula pétrea da literatura nacional”. |
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III |
É com razão que Lêdo Ivo se levanta contra
essa “verdade” consagrada em compêndios universitários idealizada por
quem imagina que os acontecimentos seguem uma seqüência natural, pois,
de fato, nada há que sustente que o romance do Nordeste da década de
1930 tem de estar obrigatoriamente atrelado ao Modernismo paulista ou
que Geração de 45 seja tributária do movimento de 1922.
Essa é apenas uma de tantas outras
“idéias” que se converteram em “cláusulas pétreas” na História
brasileira das quais poucos se dispõem a discordar. Outra é que a
conjuração mineira de 1789 constituiu uma etapa de um processo
independentista que culminaria com a Independência de 1822.
Mais uma é chamar de Revolução de 30
(assim mesmo com maiúscula) um golpe militar dos mais salafrários como
todo golpe, que não passou de uma rearrumação de elites carcomidas no
poder. Até porque não há nada que garanta que o Brasil seria melhor ou
pior se a República Velha (1889-1930) tivesse sobrevivido mais quinze
anos. Pelo menos aquelas elites tinham certo verniz cultural que haviam
trazido de Paris. E o País? Ora, o País, certamente, seria tão atrasado
quanto o é hoje, com suas legiões de miseráveis e seus alarmantes níveis
de violência social.
Aliás, se aqueles que tomaram o poder em
1930 tivessem alguma preocupação cultural teriam aproveitado a década
para criar em algum lugar de suas regiões uma universidade do nível da
USP e, se não o fizeram, é porque o que queriam mesmo era igualmente
usufruir o direito de sugar as tetas do erário da Nação, a exemplo do
que fizeram até então os cafeicultores paulistas e seus associados
durante a República Velha, como observou Lima Barreto (1881-1922) em
vários textos reunidos em Toda Crônica, volumes I e II (Rio de Janeiro:
Editora Agir, 2004). E, no entanto, foram os representantes das elites
derrotadas em 1930 e 1932 e o interventor federal da ditadura em São
Paulo que criaram a USP em 1934.
Se tivesse surgido uma universidade do
porte da USP no Nordeste àquela época, com certeza, o romance nordestino
da década de 1930 é que teria sido ungido a acontecimento mais
importante da literatura brasileira no século XX. Até porque o
reconhecimento cultural sempre andou atrelado à importância econômica da
região daqueles que produzem os fatos. Ou será que, se James Joyce
(1882-1941) fosse brasileiro e escrevesse em português, o romance
Ulisses (1922) seria reconhecido como um divisor de águas na literatura
mundial? |
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IV |
Para Lêdo Ivo, o Modernismo de 1922 não passou, “em muitos de seus
aspectos, de uma rumorosa e festiva repetição, um gracioso plágio, uma
astuta clonagem do primeiro e seminal Modernismo deflagrado em 1836,
como comprovam os manifestos assemelhados, a postura
selvático/internacionalizada de alguns de seus corifeus, e o empenho de
abrasileiramento e coloquialização da nossa língua”. E quem há de dizer
o contrário? Até a idéia da antropofagia foi clonada dos Essais de
Montaigne, lembra.
Nem por isso se pode negar os méritos de
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia (1892-1988),
Ribeiro Couto (1898-1963), Raul Bopp (1898-1984) e outros, embora o
maior de todos os modernistas -- até porque precursor do movimento --
tenha sido o pernambucano acariocado Manuel Bandeira (1886-1968), cuja
poesia não envelheceu tanto quanto a dos demais. |
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V |
Mas não se
imagine que Lêdo Ivo alimenta qualquer parti pris contra São Paulo. Na
verdade, o ensaísta é reconhecidamente generoso com aqueles que lhe
proporcionaram algum deleite ou emoção a partir da leitura de seus
textos, independente de onde nasceram. E isso inclui não só os grandes
mestres universais como brasileiros de todas as latitudes.
É assim que, em “A propósito de Orígenes
Lessa”, reconhece o talento de um escritor que, embora dono de vasta
obra, que inclui romances, novelas, contos, reportagens e livros de
viagem, não teve o lugar que merecia na história da Literatura
Brasileira. Orígenes Lessa (1903-1986), observa Lêdo Ivo, foi um raro
escritor que sempre soube usar o diálogo em seus romances e contos, a
ponto de fazer com que “a ação das histórias e a psicologia dos
personagens se revelem através da dialogação”.
Por isso, foi um dos poucos, como
Alcântara Machado (1875-1941), que fez desfilar em sua obra uma variada
população da cidade de São Paulo: os carcamanos, os paus-de-arara (dos
quais saiu até um presidente da República), os japoneses, os
provincianos da grande metrópole, os caipiras, os chineses, as
prostitutas, os trocadores de ônibus. “É realmente notável a capacidade
que ele tem de mobilizar pequenas vidas e pequenos destinos”, diz o
ensaísta.
Por aqui se vê quanto vai perder quem
deixar de ler estes pequenos textos ensaísticos de Lêdo Ivo que,
reunidos, dão uma visão pouco usual da Literatura Brasileira, a ponto de
resgatar até um esquecido modernista, Geraldo Ferraz (1905-1979), e seu
romance Doramundo, publicado em 1956 por um suposto Centro de Estudos
Fernando Pessoa, de Santos, mas escrito em boa parte na cidade de São
Paulo em 1952 e concluído em outubro de 1955 em dias de descanso em
Praia Grande.
Quantas cidades não dariam a vida – se é
que cidades podem ter vida – para ostentar esse privilégio? Pois é, ao
que se sabe, a Prefeitura de Praia Grande ainda mantém o nome do ditador
Garrastazu Médici (1905-1985) dado em tempos nebulosos para sua
biblioteca pública, que, por estes dias, passa por reformas. Santa
ignorância. |
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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