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:::::::::::::::ADELTO GONÇALVES::::::::::::::
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Para
escapar dos escombros e reconstruir a lusofonia |
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MADE IN ANGOLA: ARTE CONTEMPORÂNEA, ARTISTAS E DEBATES,
de
Adriano Mixinge. Paris: L´Harmattan, 306 págs., 2009, 29,50 euros.
E-mail: harmattan@wanadoo.fr
Site: librairieharmattan.com |
I |
Nestes tempos
de sensibilidade à flor da pele, todo cuidado é pouco. Especialmente
depois que o governo brasileiro anunciou para 2010 a criação da
Universidade da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (UniCPLP), em
Redenção, no interior do Ceará, a primeira cidade brasileira a abolir
por sua conta a escravidão. Afinal, os brasileiros já começaram a ser
chamados de novos colonialistas, enquanto a CPLP, nascida para fomentar
o intercâmbio cultural e comercial entre povos afins, corre o risco de
virar troféu de guerra entre a antiga e a nova “metrópole” pela
liderança no mundo de língua portuguesa.
Como em
português nos entendemos e, acima de questiúnculas paroquiais e
nacionais, mantém-se a preservação da lusofonia, não podemos deixar de
comentar as obras que os africanos lusófonos publicam pelo mundo. É o
caso de Made in Angola: arte contemporânea, artistas e debates,
livro de ensaios do historiador e crítico de arte Adriano Mixinge, que
as edições Harmattan, de Paris, acabam de publicar em português.
Patrocinada pela Fundação Príncipe Claus da Holanda, a obra reúne 35
ensaios sobre a arte africana e a condição angolana, num volume de 306
páginas, com capa desenhada pela artista Rosa Cubillo sobre uma
fotografia de Middan Nandignan Campal.
Nascido em
Luanda em 1968, Adriano Mixinge, licenciado em História da Arte pela
Universidade de Havana e doutor em História da Arte pela Universidade
Complutense de Madrid, trabalha como conselheiro cultural na Embaixada
de Angola em Paris. É igualmente membro da Associação Internacional dos
Críticos de Arte (Aica), do Conselho Científico do Ministério da Cultura
e colaborador da delegação de Angola junto à Unesco, além de autor do
romance Tanda (Luanda: Edições de Caxinde, 2006), em que mistura
poesia, crítica literária e de artes plásticas, cartas e outras formas
de discurso, seguindo uma tendência da prosa africana de língua
portuguesa de hoje, que é a diluição das fronteiras entre os gêneros
narrativos.
Como crítico
de artes plásticas, Mixinge é ainda autor de Metáforas angolanas: um
panorama das artes plásticas (1990-2001), livreto de 81 páginas
publicado em 2001 pela Embaixada da República de Angola na França para
apresentar uma exposição que o próprio autor organizou em Paris,
reunindo a produção de pintores, escultores e gravadores.
Em Made in
Angola, Mixinge oferece importante contribuição à História e à
crítica da arte moderna e contemporânea que se vem fazendo em Angola,
mostrando como ela se insere no contexto africano e internacional. Além
disso, trata-se de obra de divulgação de uma produção artística moderna
ainda pouco estudada e de artistas plásticos que, muitas vezes, são mais
(re)conhecidos no restrito círculo europeu das artes do que no Brasil,
pois reúne alguns textos que o autor escreveu originalmente para
catálogos de exposições e outros publicados em revistas ou jornais ou
ainda para serem apresentados em seminários.
Em todos, o
que marca esses textos é a postura independente com que Mixinge denuncia
e discute, sem tergiversar, problemas que preocupam não só os criadores
angolanos como os seus cidadãos e aqueles que acompanham a evolução dos
acontecimentos no mundo africano de língua portuguesa. |
II |
Embora
o autor não faça referência, não se pode deixar de estabelecer pontes
entre o título Made in Angola com o clássico Made in África,
de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), em que o historiador, folclorista
e antropólogo brasileiro, depois de observações que fez durante viagem
realizada em 1965, anotou hábitos, crenças e reminiscências históricas
do continente africano para comprovar as raízes negras da cultura
brasileira.
Se Made in
África já foi definido pela historiadora Camila Lembo Ribeiro como o
livro da descoberta (pelo brasileiro) da África negra portuguesa,
Made in Angola é uma obra que permite a descoberta da arte angolana
pelos demais povos lusófonos. Para isso, portanto, é preciso que alguma
editora brasileira venha a se interessar por sua publicação.
Afinal, se em
Made in África Cascudo estuda e aprofunda pontos de ligação entre
o Brasil, em especial o Nordeste, e o continente africano, especialmente
a sua parte ocidental, em Made in Angola Mixinge o que faz é
mostrar, a partir das ideias de transculturação do antropólogo cubano
Fernando Ortiz (1881-1969), que a experiência cultural angolana é
resultado de um substrato cultural majoritariamente de origem bantu, um
minoritário não bantu e de uma herança judeu-cristã portuguesa, que, por
força da imigração forçada de levas de trabalhadores escravos,
repetiu-se no Brasil em larga escala.
Diz Mixinge
que, no contexto da arte contemporânea angolana, essas experiências
culturais podem estar representadas, por exemplo, nas obras de Miguel
Petchosky, mestiço angolano de mãe cokwê e de pai russo, vivendo em
Amsterdã; Franck Lundangi, bakongo que mora nos arredores de Paris, com
uma obra plástica que evoca as iconografias da época medieval européia;
Antonio Ole, que, vivendo em Luanda, oferece uma obra de estética
pós-moderna, que dialoga com as diversas tradições bantu angolanas; João
Muabaka (Mayembe), que vem diretamente do artesanato e da estatuária
tradicional angolana; “e também parte da obra de Nástio Mosquito, que
consiste numa série de vídeos, em que ele faz reflexões acerca da
identidade individual e das reminiscências do exotismo”.
Mas, a rigor,
essas influências podem ser sentidas nos demais artistas que foram
objeto da análise do crítico, como Viteix, Augusto Ferreira, Jorge Gumbe,
Frederico Ningi, Eleutério Sanches, Afonso Massongui, Gonga, Van Kidá,
Fernando Alvim, Telmo Vaz Pereira. Kissanga, Domingos Barcas, Álvaro
Macieira, Henrique Abranches, Costa Andrade e Edgardo Xavier, entre
outros. Todos estão unidos pela angolanidade, conceito que
reflete uma identidade cultural que se faz também de outras heranças, em
razão da diáspora à que boa parte da população do país teve de se
entregar por causa do drama da guerra civil (1976-1991). |
III |
Mixinge,
porém, não é só historiador e crítico de artes plásticas, mas estudioso
da nova literatura angolana pós-1974, ano que marca o fim da luta do
povo angolano pela sua independência depois de mais de cinco séculos de
domínio colonial e a formação de um governo de coligação nacional que
pouco durou.
A exemplo do
que o crítico uruguaio Ángel Rama (1926-1983) fez em Transculturación
narrativa en América Latina (México: Siglo Veintiuno Editores,
1982), igualmente a partir das observações de Fernando Ortiz, Mixinge
lembra que a nova narrativa angolana – e o exemplo serve para as demais
nações africanas -- é herdeira tanto do patrimônio das línguas e
culturas africanas locais, como a bantu, como do imaginário ocidental
que, por séculos, entrecruzaram-se. Como Luís Kandjimbo, grande ensaísta
e crítico literário angolano, com uma formação humanística aberta à
interdisciplinaridade, Mixinge revela-se também um grande investigador
da história literária angolana. |
IV |
Romancista,
Mixinge mostra-se igualmente memorialista dos bons, como deixa entrever
no ensaio “Arte e guerra”, ao recordar um dia de finais de 1974 em que,
morador na Rua 22 do Rangel, bairro pobre situado na periferia de
Luanda, deixou de ir ao Colégio Nossa Senhora da Paz porque soldados dos
diversos movimentos de libertação nacional (MPLA, Unita e FNLA) entraram
na cidade e houve combates por todas as partes. E viu da varanda de sua
casa D.C., uma criança do bairro, ser escolhido para ajudar a içar a
bandeira da então nova República. Mais de três décadas depois, Mixinge,
filho de “assimilados” – ou seja, africanos que viviam sob a órbita dos
colonizadores --, lembra que, hoje, D.C. vive desiludido, na
marginalidade e afastado de qualquer tipo de retórica ou simbologia da
liberdade, incluindo a do socialismo e da democracia, e que a única
liberdade a que aspira é a dos estupefacientes. Ou seja, a sociedade fez
pouco (ou nada) por D.C. e por “um exército de anônimos (que) vive ainda
em condições similares ou piores”.
Esse episódio
fez recordar a este articulista outros dois ocorridos há quase meio
século, quando, ainda colegial de uma escola mantida por um sindicato
dos operários portuários de Santos, foi escolhido para cumprimentar um
visitante, o então presidente João Goulart (1918-1976), e a lembrança
que lhe ficou foi o de um aperto dado por mão excessivamente suarenta,
mas calorosa. E de quando viu da janela de sua morada a tomada daquele
mesmo sindicato dos portuários por tropas do exército no dia 1º de abril
de 1964.
Havia àquela
época a ingênua crença de que os trabalhadores poderiam ascender ao
poder numa pretensa república sindicalista – que, certamente, não teria
sido pior nem melhor do que aquela em que vivemos hoje --, mas que
serviu, naquele contexto de guerra fria, como pretexto para que
liberdades fossem sufocadas e muitas iniqüidades cometidas, apesar do
esforço atual de alguns antigos colaboracionistas em apagar a memória,
ao procurar qualificar de branda a ditadura militar (1964-1985) que
adveio.
Estes retalhos
da memória são aqui reconstituídos porque, de algum modo, servem para
mostrar que a luta da memória contra o esquecimento, de que dizia Milan
Kundera (1929), passa pela instrução. E que, como disse Naguib Mahfuz
(1911-2006), citado por Mixinge, “a morte começa pela memória, e a morte
da memória é a pior de todas”.
Foi pela
instrução que este articulista deixou um bairro tão degradado como o
Rangel para chegar até aqui e escrever estas linhas, assim como Mixinge
deixou a periferia de Luanda para resgatar a história da literatura e
das artes plásticas de seu povo. Afinal, sem a instrução não haveria
sequer quem escrevesse os Evangelhos e o cristianismo não teria chegado
aos nossos dias.
Portanto, a
maior das lutas de hoje tanto no Brasil como nos demais países de língua
portuguesa é o combate ao analfabetismo e à exclusão cultural. Talvez
pareça contraditório que seja um país como o Brasil, cuja escola pública
está cada vez mais em frangalhos, que se arvore a construir a UniCPLP
para abrigar pelo menos cinco mil alunos dos demais países lusófonos
(Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Timor-Leste). Mas é o
único com condições financeiras para fazer isso. E não se pode condenar
nenhum governo que abra escolas e universidades, quaisquer que sejam os
possíveis interesses políticos que possam existir por trás de cada
iniciativa. Será pela instrução que vamos sair dos escombros e
reconstruir a lusofonia. |
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br |
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