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:::::::::::::::ADELTO GONÇALVES::::::::::::::
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Arte & Cidade -
Menotti e a São Paulo dos anos 1920 |
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A São Paulo de Menotti Del Picchia: arquitetura, arte e cidade nas crônicas de um modernista, de Ana Claudia Veiga de Castro, 298 PP., Alameda Casa Editorial, São Paulo, 2008; R$ 39 |
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I |
Walter Benjamin (1892-1940) sempre considerou o cronista superior ao historiador clássico em sua capacidade de reter o tempo. Como diz o pensador alemão em Magia e técnica, arte e política (São Paulo: Brasiliense, 1985, p.223), numa de suas famosas teses "Sobre o conceito de história", seu último escrito, o cronista narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, levando em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.
Se, para Benjamin, na acepção histórica o cronista é o narrador da História, não se pode dizer que contemporaneamente tenha perdido essa condição, pois ainda hoje sua produção constitui um reflexo da rápida transformação e da fugacidade da vida moderna. Aliás, até o início da era cristã, fazer crônica era fazer história, um registro de acontecimentos ordenados em seqüência cronológica, como se lê em Massaud Moisés (A Criação Literária. Prosa II, São Paulo: Cultrix, 19ª ed., 2005, p.101).
Por isso, Ana Claudia Veiga de Castro, arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), mestre pela mesma instituição e professora de História da Cidade na Escola da Cidade, de São Paulo-SP, embora não tenha citado Benjamin nas referências bibliográficas de seu trabalho, andou bem em exumar as crônicas que Menotti del Picchia (1892-1988) publicou no Correio Paulistano na década de 1920 para escrever a sua tese de mestrado que acaba de virar livro: A São Paulo de Menotti del Picchia: Arquitetura, arte e cidade nas crônicas de um modernista (São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2008).
Embora ao final do século XIX e no decorrer do século XX já não tivesse a intenção de historiar, como em seus primórdios, a crônica, ainda que fugaz e transitória como o jornal e a revista que a publicam, constitui nas mãos do pesquisador um material de interesse para pensar a cidade, pois atua como uma forma de preservação do tempo e da memória, "um meio de representação temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada", como disse David Arrigucci Jr. em Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência (São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.51).
Dessa maneira, a partir das crônicas de Menotti del Picchia, Ana Claudia compõe um panorama dos diversos mundos de uma São Paulo que começa a se tornar metrópole, dentro de um trabalho multidisciplinar de pesquisa sobre o Modernismo e a modernização brasileira, que engloba arquitetura, jornalismo, arte, literatura e história. Ao mesmo tempo, ajuda a resgatar do limbo um autor pouco estudado e até mal visto pela pesquisa acadêmica, talvez porque não só esteve ligado à oligarquia cafeeira, derrubada do poder pelo golpe civil-militar de 1930 a que chamam de Revolução de 30, como ainda acabou por se vincular a um grupo fascista nos anos 1930-1940. |
II |
Como o livro se refere só de passagem a esse período, é preciso lembrar que, antes de ingressar no Correio Paulistano, em São Paulo, o jovem advogado Menotti del Picchia dirigiu a redação de A Tribuna, de Santos, de 1918 a 1919, época em que escreveu vários artigos defendendo a repressão policial às reivindicações dos trabalhadores da Companhia Docas e da Companhia City, empresa de capital canadense que movimentava o serviço de bondes na cidade. Essa repressão, aliás, era comandada pelo delegado regional Ibrahim Nobre (1890-1970), também poeta, que haveria de se destacar na história de São Paulo como um dos ícones da Revolução Constitucionalista de 1932, que exigiu do governo Vargas a devolução do estado de direito ao País.
Da mesma época, era o médico e poeta Martins Fontes (1884-1937) que, embora tivesse no plano político um comportamento revolucionário, de apoio às causas operárias, que contrariava os interesses de sua classe social, era na poesia um parnasiano, fiel até o fim à memória de seu amigo Olavo Bilac (1865-1918). Sua poesia seria desqualificada na Revista Klaxon (nº 8-9, 1922-1923) por Mario de Andrade (1893-1945), corifeu do movimento modernista, que considerou o seu livro Arlequinada "uma porção de alexandrinos fragílimos". E talvez por isso condenada ao ostracismo.
Já Menotti del Picchia, colaborador de Klaxon e um dos mais aguerridos combatentes na fase pré-revolucionária modernista e nos anos subseqüentes a 1922, tem até hoje o seu nome ligado ao Modernismo, embora, tal como Martins Fontes, tenha uma obra nitidamente vinculada à belle époque, naquilo que prolonga o Simbolismo e suas mutações. Nada disso, é claro, desqualifica a obra de Menotti del Picchia, que teve a sua importância, mas que hoje afigura-se como extremamente datada. |
III |
Com o cuidado próprio dos bons pesquisadores, Ana Claudia percorreu cerca de 1700 crônicas que Menotti del Picchia escreveu quase diariamente de 18 de setembro de 1919 a 24 de outubro de 1930, assinadas com o pseudônimo Helios sob a rubrica "Crônica Social", procurando encontrar aqui e ali imagens de um momento de aceleração histórica em que a "cidade moderna" começava a aflorar, embora São Paulo seja hoje, com seu gigantismo e problemas sociais, um exemplo de tudo o que não deve ser uma cidade moderna. Mas isto é outra discussão.
Ana Claudia lembra que o Correio Paulistano, porta-voz oficial do Partido Republicano Paulista, a principal força política do período, que representava os interesses dos oligarcas do café, era lido por parcela expressiva da população letrada, dividindo a preferência com O Estado de S.Paulo, que sobrevive até hoje. E as crônicas de Menotti del Picchia refletiam a construção de uma imagem de cidade que se queria moderna, mas que se revela "muitas vezes ambígua e contraditória".
Na primeira parte do livro, Ana Claudia fez uma breve biografia de Menotti del Picchia, percorrendo sua trajetória, desde o nascimento em São Paulo, filho de um italiano da região da Toscana que viera para o Brasil não para trabalhar na lavoura, como tantos italianos contemporâneos, mas para atuar nas cidades como artesão especializado em construções, uma espécie de arquiteto sem diploma, construtor e mestre-de-obras. Depois de participar da construção do Teatro Municipal de São Paulo, seu pai transfere-se para o interior do Estado em busca de oportunidades de trabalho, a uma época em que os barões do café não só construíam grandes residências como algumas cidades tratavam de erguer seus teatros municipais.
Alfabetizado, o pai de Menotti assinava revistas estrangeiras, o que, com certeza, deve ter despertado a veia intelectual do filho. Vivendo parte de sua infância em cidades do interior, Menotti volta a São Paulo para cursar Direito na famosa Faculdade do Largo de São Francisco, onde se formou em 1913. Um ano antes, casara-se com uma namorada de infância, filha de uma tradicional família de Itapira, cidade de uma região enriquecida com o auge do café. Formado, voltou a Itapira para cuidar da fazenda da família da mulher, mas, em 1918, termina a sua carreira como fazendeiro, ao perder a safra de café depois de "uma chuva de pedra". É, então, que decide ganhar a vida atuando como advogado e jornalista. Primeiro, em Santos, dirigindo A Tribuna e, depois, em São Paulo.
Na segunda parte, a partir das crônicas publicadas no Correio Paulistano, a pesquisadora recupera personagens que se tornam usuários privilegiados dos novos equipamentos e dos novos meios de transporte da cidade juntamente com outros que parecem pertencer a um mundo anterior, o do século XIX, que na visão do cronista mostram-se condenados a desaparecer.
Já a terceira parte concentra a discussão da imagem da cidade de São Paulo através de sua materialidade e arquitetura. As crônicas escolhidas, segundo a estudiosa, ganham interesse porque resgatam uma discussão típica da época, em torno de uma "raça paulista", do lugar de São Paulo e do lugar do imigrante. É dessa época, ressalte-se, a construção do mito do bandeirante por historiadores paulistas, que pouco tem a ver com os verdadeiros "aventureiros paulistas" que emergem dos documentos do século XVIII, a partir até mesmo da indumentária que vestiam.
Resgata a autora que Menotti del Picchia discutia a necessidade de São Paulo ter edificações mais condizentes com o desenvolvimento contemporâneo e, comparando a cidade com a capital da República, dizia que lhe faltavam imponentes palácios para dar ao visitante a noção da grandeza do Estado.
Tudo isso foi resultado de um contexto em que São Paulo procurava assumir-se não só como o Estado-líder da Federação, mas também como a região fundadora da nação brasileira. Portanto, não bastava apenas construir a cidade nova apagando os vestígios do passado, mas era preciso reconstruir um passado do ponto de vista épico, reinventando-o inclusive. Foi o que fez Menotti del Picchia, assumindo como cronista papel semelhante ao dos historiadores paulistas da época. |
IV |
Como se depreende do livro de Ana Claudia, Menotti também se deixou influenciar pelas idéias do ucraniano Gregori Warchavchik (1896-1972), especialmente depois de visitar, em 1928, a casa que este mandara levantar na Rua Mello Alves, a que considerou "uma pequena maravilha". Warchavchik defendia a beleza e a arquitetura de seu tempo como a beleza da máquina, da indústria e da objetividade, tendo conquistado a adesão de muitos jovens arquitetos para a nova concepção que se dizia modernista. Warchavchik dizia que não mais havia sentido em buscar no passado inspiração para a arquitetura do presente, como faziam então os tradicionalistas, mas sim pensar a nova arquitetura como um reflexo dos novos princípios e das necessidades do "espírito do tempo", como observa a autora.
Com a chegada ao Brasil do arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965) ao final década de 1920, a discussão sobre uma nova arquitetura ganha maior ênfase. E Warchavchik sai fortalecido em sua pregação. É a partir daí que surge a arquitetura modernista brasileira, de que Lucio Costa (1902-1908) e Oscar Niemayer (1907) seriam os maiores expoentes.
Mas a respeito de Warchavchik, chegado ao Brasil em 1923, ainda há muito a se descobrir e desmitificar, a partir de um depoimento que o arquiteto João Batista Artigas Vilanova (1915-1985) deu em 1983 à arquiteta Christina Bezerra de Mello Jucá, professora da Universidade de Brasília (UnB), considerando-o "moralmente meio suspeito", pois não tinha "capacidade nenhuma para desenhar" e que "sempre contratava alguém para fazer as coisas para ele, mas para fazer tudo".
É provável que tenha sido um grande falastrão e não mereça tudo o que se lhe é atribuído na concepção da arquitetura moderna no Brasil – e que também tenha levado não só Menotti del Picchia como muitos outros intelectuais modernistas no bico. Mas isso só um novo trabalho de pesquisa deverá mostrar. |
In Observatório da Imprensa, Abril, 2009 |
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br |
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