:::::::::::::::ADELTO GONÇALVES::::::::::::::

 
 

O livro do senhor Soares

 

BUONA NOTTE, SIGNOR SOARES (BOA NOITE, SENHOR SOARES), de Mário Cláudio, tradução para o italiano de Brunello de Cusatis. Perugia: Morlacchi Editore, 141 págs., 2009, 13 euros; Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008.

E-mail: editore@morlacchilibri.com

Site: morlacchilibri.com

 

 

I

 

... .......Publicado em 2008 por Publicações Dom Quixote, de Lisboa, o romance Boa noite, senhor Soares, o mais recente livro de Mário Cláudio (1941) – se bem que é temerário afirmar-se isto, pois o prolífico autor parece que está sempre a publicar uma nova obra –, acaba de ganhar tradução para o italiano pelo professor Brunello De Cusatis, responsável pela cátedra de Literaturas Portuguesa e Brasileira da Universidade de Perugia, na coleção Letteratura Luso-Afro-Brasiliana da Morlacchi Editore, de Perugia, que já editou obras do angolano José Eduardo Agualusa (Frontiere perdute) e do brasileiro José Clemente Pozenato (Il caso del martello) e tem prevista a publicação de Il giorno in cui Paperino s´è fatto per la prima volta Paperina e altre storie, do português João Melo, e Racconti, do brasileiro Sérgio Faraco, todas em português e italiano.

            Em Boa noite, senhor Soares, Mário Cláudio recria a sociedade lisboeta de 1931, por meio do heterônimo Bernardo Soares, de Fernando Pessoa (1888-1935), ajudante de guarda-livros e empregado de escritório na Rua dos Douradores, na Baixa de Lisboa. Como se sabe, o personagem seria o autor hipotético do Livro do Desassossego por Bernardo Soares, obra escrita de forma fragmentária por Pessoa entre 1913 e 1935, ou seja, durante quase toda a sua vida literária. Não há dúvida que este personagem, ou heterônimo, confunde-se com o seu criador, a ponto de não se saber onde começa a ficção e termina a vida pessoal.

            A narrativa, porém, passa-se em torno de Antônio da Silva Felício, candidato a caixeiro-ajudante no armazém de tecidos da Rua dos Douradores, e do senhor Soares, figura apagada e fugidia que trabalha também como tradutor nesse mesmo armazém, a exemplo do que fazia profissionalmente Pessoa. A vida cinzenta, sem maiores lances de ousadia, de Felício permite ao leitor conhecer uma Lisboa bairrista e tradicional nos costumes, em que a mulher desempenhava um papel secundário na sociedade, representado no texto, de forma particularmente dura, pela irmã do narrador, que levava uma vida escrava de dona-de-casa, dividida entre tratar da filha, cuidar da sogra e ainda ter tempo para cozinhar e satisfazer o marido machista, que, provavelmente, preferia ficar a beber nas tascas com os amigos.

 

II

 

            Ainda que o aproveitamento de heterônimos de Fernando Pessoa como personagens de romances não seja novidade, depois que José Saramago (1922) escreveu O ano da morte de Ricardo Reis (Lisboa, Editorial Caminho, 1984), ou mesmo do próprio poeta por autores menos talentosos, Mário Cláudio consegue manter o interesse do leitor com uma prosa fluida em que procura intuir, por meio da memória de Felício, o que teria sido o itinerário da vida de Soares.

                                               “Ainda hoje o senhor Soares passa pela Rua Augusta, pela Rua da Prata, pela                                                                 Rua dos Douradores, e pela Rua dos Fanqueiros, com as abas da gabardine                                                                      desfraldadas ao vento que vem do Tejo. Ela roça o braço nos empregados do                                                                              escritório, nas costureiras, nas secretárias, e nos moços de fretes, e um nó de                                                                  angústia aperta-lhe a garganta, maravilhado e dorido por essa gente que                                                                            transita (...). (p.74).              

            Com extrema habilidade para imitar o texto pessoano ou o estilo de Bernardo Soares, o autor dá vida ao armazém do patrão Vasques e do seu sócio capitalista, Alcino dos Santos Camacho, além resgatar outros personagens-funcionários como Borges, um faz-tudo na empresa, Moreira, o guarda-livros, José, Sérgio e Vieira, os caixeiros de praça, Antônio, o aprendiz de caixeiro, Tomé e Ernesto, os caixeiros-viajantes, Antônio, o moço de recados, e o gato Aladino, além, é claro, de Soares, o ajudante de guarda-livros e tradutor.  Os demais personagens são integrantes da família de Felício, o aprendiz de caixeiro, que nunca fizeram parte do universo de Soares: Florinda, sua irmã, Gomes, o cunhado, Mimi, a sobrinha, a tia Celeste e Serafim, filho da tia Celeste que emigrara para o Brasil.

            Por intermédio de Felício, o narrador, que funciona como ghost writer do antigo ajudante de caixeiro já no ocaso da vida, na década de 1980, trata de reatar os fios soltos de uma Lisboa que não existe mais, que vive apenas na memória do idoso, em suas lembranças mais caras, como aquela do dia em que completou dezoito anos em 1933 e, a convite de seus colegas de escritório, foi até ao Bairro Alto, onde todos jantaram numa taverna, perambularam por vielas e ruas estreitas até que desembocaram na Rua da Rosa, local em que o aniversariante teve a sua primeira experiência sexual, paga pelos amigos do escritório. Foi o seu inesquecível presente de aniversário, a uma época em que nem Sida (Aids) nem outras doenças venéreas assustavam tanto.

             É uma cidade cinzenta, imersa no salazarismo em que o anacoreta de São Bento comandava da vida dos portugueses como se cuidasse de um teatrinho de títeres. Para os bem sucedidos na vida, porém, a vida não seria tão cinzenta: a filha de Camacho, o sócio capitalista, chega à maioridade e o ricaço que vivia num chalé de luxo na Brandoa convida todo o pessoal do armazém para uma festa em sua casa cujo ponto culminante é a entrega à rapariga de um “sobrescrito fechado” como cinqüenta contos de réis de prenda, uma dinheirama e tanto. Da festa, que marca o desnível social entre patrões e empregados, o pessoal do escritório fica apenas com uma fotografia em que ao fundo aparece a figura esquiva do senhor Soares com seus “olhitos piscos”.

             Vivendo agora nas Galinheiras, um bairro degradado e meio esquecido na imensa Lisboa de hoje, o septuagenário Felício sabe que, apesar da vida fosca que levara, tivera a oportunidade de conviver diariamente com um homem que, meio século depois, transformar-se-ia em gênio da raça portuguesa, da estirpe de Luís de Camões (c.1524-1580), mas que em vida fora visto mais como um louco manso que andava nas nuvens e escrevia sem parar (e que, sem que quase ninguém soubesse, deitava as páginas um tanto a esmo numa arca).

            Como não sabe escrever ou, no máximo, assinaria muito mal o nome, Felício começa a pensar num escritor que pudesse resgatar suas lembranças, antes que tivesse de entrar naquele túnel sem volta a que todo ser está condenado. Até que o encontra. E encontra um escriba disposto a escrever a sua história sem lhe cobrar um tostão pela tarefa, embora, por outro lado, não lhe garantisse maior veracidade ao que escrevesse na comparação com o que ouviria:

                                   “(...) Eu utilizo palavras que o senhor é capaz de ignorar, recuso-me a aplicar umas                                                        quantas daquelas que o senhor usa, cometo umas elegâncias que alguns julgam                                                              excessivas, mas de que há quem goste, e acrescento por capricho vários posinhos ao que                                  para certas pessoas mereceria um posinho só”. (...). (p.138).                                            

             Seja como for, ao septuagenário não há alternativa, a não ser confiar naquele que se propõe a ajudá-lo a resgatar do limbo de mais de cinqüenta anos aquelas lembranças fugazes, marcadas mais por gestos tímidos do que por palavras. Até porque o senhor Soares, figura fugaz, era homem de parcas palavras. A ponto de, no seu último dia no escritório do patrão Vasques, ao recolher seus pertences no cacifo e virar as costas em direção à porta da rua, foi com o senhor Soares, vindo na direção contrária, que se deparou. Abraçaram-se. E ouviu um murmúrio, quase um soluço, junto à orelha: “Até sempre, Antônio”. Em resposta, disse-lhe: “Boa noite, senhor Soares”.

 
 
 

III

 

 ...........Mário Cláudio (1941) faz parte de um seleto grupo de escritores portugueses – em número superior ao de brasileiros, apesar da diferença brutal entre o contingente populacional de cada país – que alcançaram projeção internacional, com livros traduzidos para o inglês, francês, alemão, húngaro, croata, checo e italiano.

            Essa notoriedade, como assinala o professor Brunello de Cusatis na apresentação deste livro, teve início a partir das três biografias romanceadas que escreveu: uma do pintor futurista Amadeo de Souza-Cardoso (Amadeo, Lisboa:Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984), outra de uma violoncelista, Guilhermina Suggia (Guilhermina, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986), e a terceira de uma ceramista analfabeta, Rosa Ramalha (Rosa, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988), personalidades de destaque da cultura lusa nos meios cultos europeus. Outra figura ímpar da cultura portuguesa que teve sua biografia escrita por Mário Cláudio foi Camilo Castelo Branco (Camilo Broca, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006).

            Recuperado do espólio literário de Fernando Pessoa, que hoje faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, pelas pesquisadoras Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, o Livro do Desassossego por Bernardo Soares foi publicado pela editora Ática, em 1982, em dois volumes organizados por Jacinto do Prado Coelho. Em 1986, António Quadros deu outra organização ao livro, que saiu pela Europa-América.

            Em 1991, Teresa Sobral Cunha preparou outra edição, que saiu pela editora Presença. No Brasil, em 1986, Leyla Perrone-Moisés organizou uma edição para a editora Brasiliense. E, em 1999, a Companhia das Letras publicou a edição preparada pelo tradutor de Pessoa para o inglês, Richard Zenith, que propôs outra organização para os fragmentos.

 

IV

 

...........Mário Cláudio, pseudônimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nasceu no Porto, numa família da burguesia industrial de raízes irlandesas, castelhanas e francesas ligada à História da cidade nos últimos três séculos. No Porto, cursou o liceu e, em seguida, matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, tendo depois se transferido para a Universidade de Coimbra, onde se graduou em 1966.

            Assumiu a direção da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Gaia, de onde saiu para freqüentar a Universidade de Londres, graduando-se como Master of Arts, em 1976, defendendo uma tese que seria parcialmente publicada com o título Para o Estudo do Analfabetismo e da Relutância à Leitura em Portugal (Porto: Brasília Editora, 1979), o único livro que assinou com o seu nome civil (Rui Barbot Costa). De regresso a Portugal, exerceu funções técnicas no Museu Nacional de Literatura. Em 1985, iniciou-se como professor na Escola Superior de Jornalismo do Porto e, atualmente, é professor convidado da Universidade Católica do Porto e da Fundação de Serralves.

            Em 1969, publicou o seu primeiro livro de poesia, Ciclo de Cypris, em edição de autor financiada por seu pai, à época em que estava na Guiné participando da guerra colonial. Em 1972, publicou Sete Solstícios, também de poesia. Foi em 1974 que deu à estampa o seu primeiro romance, Um verão assim (Porto: Livraria Paisagem, 1974).  Ao final da década de 70 e início dos anos 80, intensificou sua atividade literária, publicando dois romances – As máscaras de sábado (Lisboa: Assírio & Alvim, 1976) e Damascena (Lisboa: Contexto Editora, 1983) –, três livros de contos – Improviso para duas estrelas de papel (Porto, Edições Afrontamento, 1983), Das torres ao mar (Porto, Edições O Oiro do Dia, 1983) e Olga e Cláudio (Porto: Edições Afrontamento, 1984) – e três livros de poesia – A voz e as vozes (Porto, Editorial Inova, 1977), Estâncias (Porto: Brasília Editora, 1980) e Terra Sigillata (Lisboa, Edições & Etc., 1982), seguindo-se outro livro de poesia na década de 90, Dois equinócios (Porto: Campo das Letras, 1996).

            De 1990 a 1997, Mário Cláudio publicou uma segunda trilogia de romances: A quinta das virtudes (Lisboa, Quetzal Editores, 1990; Tocata para dois clarins (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992) e O pórtico da Glória (Lisboa: Publicações Dom Quixote,1997), onde a História volta a cruzar com a ficção, mas desta feita incorrendo na autobiografia familiar. Entre 2000 e 2004 publicou outra trilogia, composta por Ursamaior (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 200) Oríon (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2003) e Gêmeos (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004), e que é descrita pelo autor como relacionada com “situações de alguma marginalidade” e “discurso problemático com o poder”.

            Ganhou o prêmio Associação Portuguesa de Escritores (APE) de Romance e Novela em 1984 com a obra Amadeo. É considerado um dos mais importantes autores portugueses das últimas duas décadas. Embora se tenha dedicado à poesia, ao teatro, à tradução e ao ensaio e estudos literários, tendo publicado no total pelo menos 58 livros, é no romance que Mário Cláudio mais se tem destacado. Em 2004, foi agraciado com o Prêmio Fernando Pessoa.

 
 

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br