:::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
Alguns inéditos de Bocage

OBRA COMPLETA DE BOCAGE: VOLUME III (APÓLOGOS OU FÁBULAS MORAIS, EPIGRAMAS, POESIA SOBRE MOTE, POESIA ANACREÔNTICA, ENDECHAS, ELEGIAS, EPICÉDIOS), edição de Daniel Pires. Porto: Edições Caixotim, 306 págs., 2007, 17 euros.
OBRA COMPLETA DE BOCAGE: VOLUME IV (SÁTIRAS, MADRIGAL, POESIAS VÁRIAS, EPITÁFIOS, ELOGIOS, DRAMAS, FRAGMENTOS E POESIAS VÁRIAS), edição de Daniel Pires. Porto: Edições Caixotim, 304 págs., 2008, 19 euros.
E- mail: edicoescaixotim@mail.telepac.pt Site: www.caixotim.pt

I

Em 2004, pela quarta vez em dois séculos, teve início a publicação da Obra Completa de Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), pela Edições Caixotim, do Porto, sob a direção do pesquisador Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos, de Setúbal. Até o momento, na coleção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, já foram dados à estampa os volumes I, II, III, IV e VII.
O terceiro da série saiu em julho de 2007, constituído por apólogos ou fábulas morais, epigramas, poesia sobre mote, poesia anacreôntica, endechas, elegias e epicédios. O minucioso trabalho de pesquisa facultou a Pires alguns textos desconhecidos de seus biógrafos, inclusive do seu mais recente, este articulista. Constam dos volumes até agora publicados nove composições que nunca haviam sido incluídas nas edições anteriores da Obra Completa. No volume III, inclusive, Pires divulga mais três.
A de maior relevo, diz Pires, é “Água estagnada”, que foi vista como subversiva pelos censores do Santo Ofício porque faz a apologia do hedonismo e uma crítica ao casamento como instituição, o que poderia permitir que fosse vista como um elogio ao amor-livre. Essa obra jamais constou das obras completas de Bocage publicadas anteriormente, mas já havia sido dada à luz por Rodrigo Vicente de Almeida, bibliotecário do Palácio da Ajuda, em Poesias inéditas de Bocage – censuras das mesmas – defesa pelo autor (Lisboa: Henrique Zeferino Livreiro editor, 1896), livro que, no entanto, passou despercebido a Hernâni Cidade, que não o levou em consideração em Opera Omnia, edição crítica da obra bocageana dirigida por Cidade, à frente de vários especialistas, por iniciativa do Ministério da Educação Nacional no âmbito do segundo centenário do nascimento do poeta.
Já este biógrafo, que localizou não só o raro livro impresso como o manuscrito original na Biblioteca do Palácio da Ajuda, reproduziu “A Água estagnada (alegoria tirada de uns versos de Mr.Parny)” em Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa: Editorial Caminho, 2003, pp. 266-267).
Quem fez a censura a esse poema foi Julião Cataldi que, por sinal, era secretário do Conselho Geral do Santo Ofício desde 1796 e que, provavelmente, conheceria Bocage de “vista e de chapéu”, para repetir aqui uma famosa observação de Machado de Assis logo na abertura de Dom Casmurro (1899). Afinal, como se pode constatar no Almanaque para o ano de 1798 (Lisboa, p.2), que pode ser consultado com facilidade na Biblioteca Nacional de Lisboa, Cataldi morou até morrer em 1801 na Praça da Alegria, local de residência de Bocage à época da censura ao poema.
Do volume, há ainda mais duas composições pouco conhecidas: “Sagradas leis que não pretendo”, que consta de uma antologia manuscrita, de 1819, intitulada “Miscelânea curiosa de vários autores para recreio dos eruditos”, obra detectada por Heitor Martins em Bocage e Minas (Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1966, pp.57-59); e “Eis meu rosto macilento”, revelada por Teófilo Braga numa edição comemorativa do aniversário do escritor no jornal O Elmano, de Setúbal, de 16/9/1911.

II

Na introdução que escreveu para o volume III, Pires contesta a tradição segundo a qual Bocage teria levado uma vida quase exclusivamente mundana, em meio a tertúlias de café, fumaça de cigarros e cálices de genebra. E argumenta que a complexidade de sua obra tem como pressuposto o profundo conhecimento da cultura greco-latina, dos teóricos do Iluminismo e da literatura francesa em geral, o que o levou a concluir que “Bocage passou uma parte considerável de sua vida estudando e compondo”, o que não significa que não tenha freqüentado botequins e cafés, locais que reuniam a fina flor daqueles bem pensantes que não aceitavam o absolutismo monárquico.
Seja como for, a verdade é que o conhecimento adquirido por Bocage, em meio a uma existência de dificuldades e de quase indigência, é ainda um mistério que desafia seus biógrafos ou quem se interessa por sua vida e seus escritos. Que não teve uma educação formal que lhe tivesse oferecido acesso a um grande conhecimento, não há dúvida. Sequer pôde freqüentar os bancos da Universidade de Coimbra, privilégio que era reservado apenas ao primogênito de toda família com alguma importância social.
Foi, portanto, seu irmão Gil Francisco quem teve a oportunidade de estudar em Coimbra, a uma época em que seu pai, José Luís Soares de Barbosa, já estava de volta a Setúbal, depois de cumprir pena de 1771 a 1777 na cadeia do Limoeiro, acusado de ter desviado a arrecadação da décima da comarca de Beja referente ao ano de 1769, ao tempo em que lá desempenhava as funções de ouvidor. Em Setúbal, José Luís montou um escritório de advocacia, passando, mais tarde, a ter a ajuda do filho mais velho já formado em Leis. Com o pai na cadeia e sem mãe desde 1775, Bocage, obviamente, não teve oportunidade de adquirir uma educação muito esmerada na infância.
Se a adquiriu foi mesmo na base do autodidatismo, do esforço próprio. Não há dúvida, porém, de que as circunstâncias de sua vida tumultuada talvez tenham contribuído para aperfeiçoá-la. Mas não se pode esquecer que, quando esteve recluso no Convento de São Bento da Saúde, acusado escrever papéis sediciosos e ímpios, já era considerado célebre poeta, “bem conhecido nesta Corte pelas suas poesias e não menos pela sua instrução”, como assinalou o frade que registrou a sua entrada no mosteiro a 17/2/1798. Bocage tinha a esse tempo 32 anos. É provável que a essa época tenha tido a oportunidade de freqüentar a biblioteca do Convento.
Depois, Bocage ainda foi transferido para o Real Hospício de Nossa Senhora das Necessidades, dos padres de São Filipe Nery, junto de Alcântara, onde funcionava a Congregação dos Oratórios, da qual faziam parte os religiosos Joaquim de Foios, António Pereira de Figueiredo e Teodoro de Almeida, eruditos e suspeitos de partidários das “idéias do século”. Foi a esse tempo que Bocage começou a traduzir As Metamorfoses, de Ovídio, a quem passou a considerar um de seus modelos. Aproveitando as relíquias da biblioteca dos religiosos, Bocage teria traduzido também trechos de Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, de A Henríada, de Voltaire, de A Colombíada, de madame Du Bocage, e parte de História de Gil Brás de Santilhana, de Lesage.
No volume III da Obra Completa, organizado por Pires, o leitor terá a oportunidade de entrar em contato com algumas personalidades tutelares na formação de Bocage, como Sócrates, Ovídio, Horácio, Tasso e Parny, além de desfrutar as traduções que fez de fábulas de La Fontaine e outras tantas de sua própria lavra. Para Pires, “a fábula foi uma forma de Bocage desmistificar algumas verdades tidas como intocáveis, de verberar ou pôr a nu comportamentos humanos irracionais; mas foi também um modo de demonstrar que Curvo Semedo (1766-1838), seu êmulo e delator, estava longe de merecer o estatuto de grande poeta e tradutor que a corte lhe concedera, apelidando-o de La Fontaine português”. Pires observa ainda que as traduções de Curvo Semedo “deste autor francês se distanciam consideravelmente do original, em franco contraste com as versões de Bocage”.

III

Em 2008, a Edições Caixotim publicou o volume IV da Obra Completa de Bocage, Sátiras, Madrigal, Poesias Várias, Epitáfios, Elogios, Dramas, Prólogos de Peças Teatrais, Fragmentos, que réune os elogios, os dramas alegóricos, os fragmentos dramáticos e as “poesias várias”, de classificação menos linear, segundo o editor. Em anexo ao volume, encontram-se um soneto inédito e os prefácios das várias edições das Rimas (1791).
A investigação sobre Bocage empreendida por Pires há mais de uma década teve como corolário a identificação de doze poemas nunca incorporados pelos seus editores anteriores. Uns encontravam-se em arquivos, outros disseminados por obras menores que passaram despercebidas aos seus estudiosos. Tal como os anteriores, o volume IV apresenta um inédito intitulado “Ao adorável Mistério da Santa Encarnação”, cujo manuscrito está depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Com este volume IV, encerra-se a obra de criação literária do autor, ficando para os dois próximos e últimos volumes os textos das traduções efetuadas por Bocage. Os volumes V e o VI, que deverão ser publicados em 2009 e 2010, apresentarão versões portuguesas de textos originalmente redigidos em latim, grego e francês.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br