I
José Saramago (1922), Prêmio Nobel de Literatura de 1998, aliás o único da Língua Portuguesa, só por isso, deveria ser um nome acima de qualquer crítica. Mas não é assim. E ainda bem. Porque, afinal, como diria o dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), toda unanimidade é burra. Mas, por isso mesmo, o que se dá em relação a Saramago é que os críticos sempre olham a sua obra com excessivo respeito e, quando criticam qualquer uma de suas facetas, o fazem depois rasgados elogios e reconhecimentos, ou seja, "dão uma no cravo e outra na ferradura, mordem e assopram".
É o que diz Francisco Maciel Silveira (1947), professor catedrático de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, logo na abertura do livro Saramago: Eu-próprio, o Outro?, publicado em edição limitada de 500 exemplares pelo Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro em coleção coordenada pelo professor António Manuel Ferreira. Maciel, por sua vez, passa ao largo desse comportamento dúbio, deixando claro que não perfilha as hostes dos fãs incondicionais de José Saramago, o que não significa que não lhe possa reconhecer os méritos.
Como se sabe, numa carreira que ultrapassou as seis décadas, iniciada em 1947 com o romance Terra do pecado e ainda em progressão -- cujo último fruto é As pequenas memórias (2006) --, o autor já experimentou a crônica, o teatro, o romance, o ensaio, a poesia, a literatura de viagens, os artigos de opinião e a autobiografia, o que significa que, praticamente, não há gênero em que não tenha incursionado. E quase sempre com invejável êxito de vendas, especialmente depois de Levantado do chão (1982), que marcou a ascensão de sua carreira literária.
Mas foi só depois de 1998, com a obtenção do Prêmio Nobel, que as críticas começaram a surgir com maior contundência. Como se o autor, depois da consagração, estivesse obrigado a publicar uma obra-prima a cada dois anos. É de lembrar que a querela de Saramago com António Lobo Antunes, a quem também não ficaria mal o Nobel, à época da conquista do prêmio, deixou claro que os caminhos até a decisão final da Academia Sueca passam por muitas injunções políticas que pouco têm em conta qualidades literárias.
II
Seja como for, a verdade é que todo autor que vende muito é sempre visto com desconfiança. Das duas, uma: ou a capacidade crítica do leitor não é das mais apuradas ou o seu talento foi prostituído a fim de que, descendo ao nível das massas ignaras, pudesse fazer crescer os números das contas bancárias de seu editor e de si mesmo. É claro que isso não passa de um preconceito, embora possamos alinhar aqui vários autores de best sellers que praticam a chamada para-literatura e não têm do que se arrepender, pelo menos do ponto de vista financeiro, embora nunca tenham recebido um elogio sincero da crítica acadêmica.
Não é esse, obviamente, o caso de José Saramago. Seu talento é indiscutível, o que, porém, não quer dizer que tudo o que produza só mereça elogios. Partindo desse princípio, Maciel, em textos bem-humorados, escarafuncha o pensamento saramaguiano, mostrando que boa parte do que o autor escreveu, por exemplo, em Todos os nomes (1997) e O homem duplicado (2002) já estava em Carl Gustav Jung (1875-1961). É claro que as frases não foram tiradas ipsis litteris de Jung - nem isso ficaria bem a um Prêmio Nobel -, mas, visivelmente, o autor parafraseia sentenças junguianas, praticando aquilo que se convencionou chamar de intertextualidade.
Maciel lembra uma frase que consta de Todos os nomes: "Em rigor, não tomamos as decisões, são as decisões que nos tomam a nós". E a compara com esta que consta de Jung - vida e obra, de Nise da Silveira (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, p. 35): "A verdade é que não somos nós que temos o complexo, o complexo é que nos tem, que nos possui".
Seria isto um pecado? Se o foi em outros tempos, já não o é agora, como não era do século 14 ao 18 em que os poetas copiavam uns aos outros, sem que tivessem em conta a questão de direitos autorais, idéia que se afirmaria já no século 19. Foi o que fizeram, por exemplo, Geoffrey Chaucer (c.1343-1400), cuja poesia é traduzida ou parafraseada de outros, William Shakespeare (1564-1616), cujas peças seguem às vezes suas fontes quase literalmente, e John Milton (c.1562-1647), que não fez outra coisa na vida a não ser furtar a Bíblia tanto quanto possível.
E, antes que salte alguém de uma imaginária platéia para acusar este articulista de reles plagiador, é preciso que se diga que foi o crítico Northrop Frye (1912-1991) quem fez estas observações em Anatomia da crítica (1957), antes de acrescentar que se quem é plagiado (ou parafraseado) já é morto, a discussão deixa de existir, pois, nesse caso, a demonstração da dívida de um autor com outro anterior deixa de ser delinquência moral para ser simplesmente erudição.
Nem Maciel acusa Saramago de plágio, mas, isso sim, reconhece que "lendo, atentamente, o capítulo 4, páginas 41-49 de Todos os nomes, percebe-se que o Sr. José Saramago parafraseia sentença de Jung, substituindo complexo por decisões". E apressa-se em reconhecer que A Caverna (2000), de Saramago, por mais que lembre o mito da caverna narrado por Platão no livro VII de A Republica, uma das mais poderosas metáforas imaginadas pela filosofia em qualquer tempo para descrever a situação geral em que se encontra a humanidade, "a ele não pode ser igual, já que não é plágio, nem tampouco reles paráfrase".
III
E ainda bem que é assim. Pois dessa maneira o nosso único Prêmio Nobel de Literatura surge como um autor moderno que soube, a par de preservar a tradição da Língua Portuguesa, modernizar o idioma, não só para abordar coisas modernas como antigas, mas sobretudo para escrever sintonizado com o pensamento contemporâneo, incorporando toda a contribuição extraliterária dos filósofos, dos cientistas, dos psicanalistas, enfim, dos pensadores em geral.
Ao levar a Língua Portuguesa ao reconhecimento mundial com a conquista do Nobel, Saramago, de certo modo, foi quem ensinou aos escritores mais jovens a dar o necessário salto para a linguagem moderna sem perder a raiz lusitana, ainda que em meio a parágrafos caudalosos, pontuação inusitada e "arabescos barrocos de digressões", como bem observa Maciel. E isso serviu também para os escritores brasileiros e para todos aqueles que exercitam a literatura nos demais países de expressão portuguesa.
É de lembrar que na Espanha, em 1989, quando o galego Camilo José Cela (1916-2002) ganhou o Prêmio Nobel, ao contrário do que ocorreu em Portugal em 1998 em relação a Saramago, não foram poucos os que se rebelaram contra a decisão da Academia Sueca porque entendiam que deveria ser outro o escritor espanhol escolhido.
Não só porque Cela era um homem ligado ao pensamento conservador - que lutara na Guerra Civil ao lado das forças nacionalistas -, o que lhe valia a má vontade dos críticos afinados com o pensamento de esquerda, mas porque, sobretudo, era "um grande escritor do século 19" que, embora de muitos méritos literários, não contribuíra para a renovação da língua espanhola, que não se atualizara. Ou seja, embora tenha flertado com os experimentos joyceanos, não chegara à sociedade pós-industrial, à sociedade do pós-guerra, ao contrário de outros, como Juan Benet (1927) e Francisco Ayala (1906). E, portanto, era, praticamente, o último escritor de uma época que já se canonizara e não constituía o nome mais representativo do literatura espanhola do final do século 20. Sem contar que, agora aqui entre nós, era um galego renegado, que se bandeara para os lados de Castela, olhando com desprezo a cultura galaico-portuguesa.
Em outras palavras: seria como se no Brasil, nos anos 70 e 80, o Prêmio Nobel, em vez de contemplar Jorge Amado (1912-2001), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ou João Cabral de Melo Neto (1920-1999), sempre citados como possíveis candidatos, tivesse saído para Menotti de Picchia (1892-1988), que tivera a sua importância nas décadas de 20, 30 e 40, mas que estava esquecido e não mais despertava o interesse dos escritores (e leitores) mais jovens, pois representava uma geração anterior e uma outra maneira de se entender e ver a literatura.
IV
Em seu estudo, Maciel divide a obra de Saramago em três fases: a primeira, de 1947 (Terra do pecado) a 1979 (A noite), batizada pela crítica como seu "período formativo"; a segunda iniciada em 1980, com Levantado do chão e que vai até 1991, com O Evangelho segundo Jesus Cristo, que avança sobre fronteiras nem sempre nítidas entre a história e a ficção e, finalmente, a terceira, de 1995 (Ensaio sobre a cegueira) até ao mais recente romance, Intermitências da morte, publicado em 2005, "caracterizada pela intemporalidade ou universalidade das fábulas alegóricas".
Maciel, porém, concentra-se mesmo na trilogia ontológica formada por Todos os nomes, A caverna e O homem duplicado. E, para abrandar a sisudez acadêmica, tenta, à la Saramago, dar ao ensaio uma forma de ficção. O resultado disto é um texto não só criativo como descontraído, que jorra luz sobre as personagens um tanto obscuras e complexas de Saramago, fazendo ao contrário a viagem imaginada por Platão: assim, em vez de trazer o habitante da caverna platônica para o mundo de fora, totalmente oposto ao do subterrâneo em que fora criado, é a luz que entra na caverna e vai ao seu encontro, desvendando reentrâncias do pensamento saramaguiano.
V
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, com 17 livros publicados e duas dezenas de prêmios, Maciel atua na docência, pesquisa e orientação com ênfase no Classicismo, no Barroco, no Realismo e no Teatro Português.
Entre os seus últimos livros, estão: Ó Luís, vais de Camões? (Jundiaí-SP, Reis Editorial, 2000); Fialho de Almeida: o mundo fora dos eixos (Cotia-SP), Íbis, 2000), organizador com J.B.Medeiros; Fernando Pessoa(s) de um drama (Jundiaí-SP, Reis Editorial, 1999); Antônio José da Silva, o Judeu: textos versus (con)textos (Cotia-SP, Íbis, 1998), organizador com Flávia Maria Corradin; Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandez Torneol (Cotia-SP, Íbis, 1998), organizador com Paulo Roberto Sodré; e Palimpsestos: uma história intertextual da literatura portuguesa (Santiago de Compostela-Galiza: Edicións Laiovento, 1997); A caixa de Pandora: aquela que nos coube (Cotia-SP, Íbis, 1996); e Concerto barroco às óperas do Judeu (São Paulo, Perspectiva e Edusp, 1992).