Não é uma biografia nem um estudo acadêmico e tampouco um livro de conversações. É de tudo isso um pouco, mas, acima de tudo, uma grande reportagem em busca de um perfil biográfico. É assim Mundo Mendoza, livro que o jornalista catalão Llàtzer Moix (1956), editor da seção de Cultura do diário La Vanguardia, de Barcelona, escreveu sobre o romancista Eduardo Mendoza (1943), autor de La verdad sobre el caso Savolta (1975) e La ciudad de los prodigios (1986), os dois romances mais notáveis de uma obra que vendeu só na Espanha mais de quatro milhões de exemplares e está traduzida para mais de vinte idiomas.
Para quem não conhece Mendoza, é preciso dizer que o seu nome apareceu na Espanha sete meses antes da morte do general Francisco Franco, em 1975, quando saiu à luz La verdad sobre el caso Savolta, que ajudou a introduzir na literatura espanhola as características do romance negro, de origem norte-americana, através de um personagem muito ibérico, o pícaro.
À época, Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), com seu detetive galego Pepe Carvalho, seguia nas mesmas pegadas. Mas não se pode dizer que tenham sido os espanhóis que inventaram o pícaro no romance negro, até porque, antes de chegar a Espanha, este subgênero já estava baseado na história de personagens com algumas características picarescas.
Seja como for, a verdade é que, em meados da década de 70, o romance espanhol estava num beco sem saída e afogado num experimentalismo que cansava e afugentava leitores. E Montalbán e Mendoza deram-lhe uma guinada bem-humorada, de volta a um tipo de narrativa mais tradicional, incorporando as novas técnicas e, mais importante, influenciados por um tipo de literatura fantástica produzida por escritores latino-americanos que, nos anos 60 e 70, fugidos das ditaduras que governavam seus países, estabeleceram-se em Barcelona.
Ou, como observou o poeta Père Gimferrer (1945), primeiro editor de Mendoza, à época a literatura espanhola estava dominada por duas correntes: algumas individualidades importantes, de um lado; e, de outro, alguns autores comerciais e obsoletos, que praticavam um realismo social tardio, além daqueles que abusavam do experimentalismo. “Nessa encruzilhada”, diz Gimferrer, “Mendoza encontrou seu próprio espaço, abrindo novos caminhos para a literatura em castelhano, assimilando de maneira moderna uma linguagem literária espanhola que vinha de Cervantes (1547-1616) até Valle-Inclán (1869-1936) e Pio Baroja (1872-1956), com tintas, já fora do âmbito espanhol, dickensianas”.
II
Para escrever esse perfil, Llàtzer Moix entrevistou, além do biografado de maneira exaustiva, é claro, não só as pessoas do círculo familiar de Mendoza como seus amigos, editores e até escritores concorrentes. E só arrancou elogios. Até porque, como sabe quem já entrevistou o escritor catalão, como este articulista o fez em 1990 em Barcelona, Mendoza é um cavalheiro muito educado e cordial, de esmeradas maneiras, “tipo David Niven em traje príncipe de Gales, embora de maior estatura”, como o define Moix.
Formado em Direito, Mendoza, praticamente, nunca exerceu a profissão de advogado, exceto os seis meses em que trabalhou num escritório especializado em Direito trabalhista. Logo, em 1966, mudou-se para Londres, onde permaneceu por um ano aprendendo o idioma inglês. E começou a escrever relatos à maneira de D.H.Lawrence (1885-1930).
De volta a Barcelona, tornou-se funcionário de uma empresa de energia elétrica. E passou a pensar em escrever o romance que seria La verdad sobre el caso Savolta, em que exercita também um experimentalismo a seu modo, recorrendo na primeira parte do livro a temáticas contemporâneas, como o contraponto para apresentar o caso Savolta sob variados ângulos, com narrações em primeira pessoa, cartas, documentos policiais e artigos de jornais. Deixou de lado, porém, um recurso que já lhe parecia gasto: o monólogo joyceano.
Na segunda parte, porém, abandonou essas estruturas e deu ao romance uma forma mais tradicional. Fez do romance uma narrativa linear, mas, ao mesmo tempo, atraente e instigadora da imaginação, com o objetivo de contar uma história e esclarecer um enigma. Recorreu, desta vez, ao tradicional método de um autor onisciente, mantendo apenas o contraponto da narrativa da primeira pessoa de Javier Miranda, que, a exemplo de Lázaro de Tormes, escreve para lançar luz sobre o seu próprio caso: mostrar como chegou à situação em que se encontra.
III
Mas não terminam aqui as aproximações com o Lazarillo de Tormes. Aliás, apenas começam. Miranda, esse joão-ninguém, rapaz de recados de um escritório de advocacia, encontra a oportunidade ao se aproximar de um aventureiro chamado Paul André Lepprince, a quem supõe um homem de negócios de muito futuro. Com ele, encontra a escada que busca para ascender socialmente, ainda que à custa de uma sujeição abjeta. A pedido do chefe, casa-se com a amante de Lepprince. Tal qual o Lazarillo.
Depois de La verdad sobre el caso Savolta, uma obra de mestre, de sucesso imediato, Mendoza escreveu obras menores, El misterio de la cripta embrujada (1979) e El laberinto de las aceitunas (1982), mas que caíram no gosto popular e venderam bastante, apesar da má-vontade da crítica, que esperava outro livro do nível da obra de estréia. Eram livros de leitura fácil, digestiva, sem grandes pretensões, “novelas de avión”, segundo a definição nada pretensiosa do próprio autor.
Desde 1973 em Nova York como tradutor-intérprete da Organização das Nações Unidas, atividade que desempenhou até 1982, Mendoza deixou-se influenciar bastante pelo romance negro norte-americano à la Dashiel Hammet (1894-1961). Mas fez tudo bem à espanhola, com um humor ácrata, introduzindo um personagem inusitado, até porque sem nome: um detetive-louco que, à instância de um comissário de polícia, deixa o hospício para fazer investigações e desvendar mistérios.
IV
A obra-prima de Mendoza seria La ciudad de los prodígios (1986) em que a ação se estende por quase meio século, desde a Exposição Universal de 1888 até a Exposição Internacional de 1929. Isto é: justamente depois da demolição das muralhas medievais da cidade e às vésperas da guerra civil espanhola, um período de ebulição social, econômica e política, de conflitos, mas também de crescimento, pujança e de definição da moderna Barcelona. Aliás, a partir deste livro, Barcelona se torna para Mendoza uma cidade mítica, assim como Macondo para Gabriel García Márquez (1928), Yoknapatawpha para William Faulkner (1897-1962) e Santa Maria para Juan Carlos Onetti (1909-1994).
La ciudad de los prodígios é, segundo a definição do próprio autor, a biografia imaginária de um homem de negócios, Onofre Bouvila, de caráter enérgico, fantástico e canalha, que correspondia ao espírito da Barcelona que o autor queria representar. Acompanhando o progresso desordenado da cidade catalã, Bouvila cumpre o projeto de ascensão de um pícaro moderno, um Lazarillo que deu certo, que, endinheirado, amolda-se ao ambiente social da época, aprende boas maneiras e apura o gosto. Vira um alto prócer barcelonês, exemplar perfeito do burguês que incentivou as genialidades do modernismo espanhol, de que Antoni Gaudí (1852-1926) é o seu maior expoente.
V
Três anos depois, Mendoza abandona momentaneamente o gênero para escrever, com sua irmã Cristina, historiadora, Barcelona modernista (1989), uma imersão nos costumes sociais e na arte barcelonesa dos anos que marcaram a passagem do século XIX para o XX. Aliás, Barcelona só deixa de estar presente na obra de Mendoza em duas oportunidades: Nova York (1986), um guia para quem quer conhecer a cidade norte-americana, e La isla inaudita (1989), quinto título de ficção do autor, mas que tem como cenário Veneza e seus canais.
Nos últimos anos, Mendoza ainda publicou mais quatro romances: El año del dilúvio (1992), Una comedia ligera (1996), La aventura del tocador de señoras (2001) e Mauricio o las elecciones primarias (2006). A maioria de seus livros saiu pela Editorial Seix-Barral, com exceção de Nueva York, publicado pela Destino, e Pio Baroja (2001), ensaio, publicado pela Omega.
Sem contar os folhetins Sin noticias de Gurb, publicado no diário El País em 1990 e por Seix Barral em 1991; La visión del archiduque, publicado em El País em 1992 e inédito em livro; e El último trayecto de Horacio Dos, publicado em El País em 2001 e por Seix-Barral em 2002. Além de contos em revistas e traduções que fez de E.M.Forster (1879-1970) e Lord Byron (1788-1824), Mendoza aventurou-se no teatro com as peças Restauració (1990), escrita originalmente em catalão, Greus qüestions (2004), já encenada, e Glòria (2006), não encenada, mas publicada por Seix Barral/Fnac.
VI
A respeito do romancista, este articulista escreveu Um prodígio de audácia: o mundo picaresco de Eduardo Mendoza, dissertação de mestrado em Letras na área de Língua e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo, defendida em 1992, que nunca despertou o interesse de nenhuma editora brasileira e dorme o sono solto do arquivo acadêmico. Até porque do autor no Brasil só saiu A cidade dos prodígios, em 1987, pela editora Companhia das Letras, de São Paulo, em tradução de Sônia Régis, sem grande repercussão de crítica e público.
Naquela dissertação, diz-se que nos romances de Mendoza – até àquela data, mas que os demais confirmam – o modelo clássico da picaresca dos séculos XVI e XVII apenas sofreu uma “correção de rota” para se adaptar à evolução da técnica narrativa e à realidade do mundo contemporâneo. Bouvila, o pícaro que deu certo, continua a ser um half-outsider, que não aceita a sociedade, mas que tampouco quer destruí-la – até porque o pícaro nunca foi um revolucionário. Por isso, Bouvila foi usado pelo autor para mostrar, através da ironia, da sátira e da paródia, a inconsistência dos valores sociais e a podridão das estruturas em que as instituições da sociedade se estabelecem.
Nesse ambiente, todos, ricos e pobres, vivem e atuam à margem da lei. Roubam, burlam, sonegam, quando podem. Para eles, escrúpulos, moralidade e princípios não existem. Ou só servem para adornar palavras vazias. É esse um ambiente propício para que se movam pícaros de todos os matizes. São produtos da chamada sociedade civilizada, desenhados sem o maniqueísmo do realismo socialista que fazia dos pobres sempre homens bons e dos ricos eternos vilões. São humanos, enfim.
Por tudo isso, pode-se dizer que os romances de Mendoza, firmemente cimentados na tradição picaresca espanhola, são uma recriação da picaresca clássica, adaptada aos padrões do nosso tempo. Portanto, se algo faltou dizer no livro de Llàtzer Moix, foi isso. A obra de Eduardo Mendoza é um exemplo bem acabado de neopicaresca.