:::::::::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
Minas no Setecentos

HISTÓRIA DE MINAS GERAIS: AS MINAS SETECENTISTAS, de Maria Efigênia Lage de Resende e Luiz Carlos Villalta (organizadores). Belo Horizonte: Companhia do Tempo/Editora Autêntica, vol. 1, 589 págs., R$ 87,00; vol. 2, 695 págs., R$ 89,00, 2007. E-mails: companhia do tempo@uol.com.br

autentica@autenticaeditora.com.br

I

A idéia de que D. João V (1689-1750), que reinou de 1706 a 1750, teria sido o mais rico dos monarcas europeus, durante muito tempo, ocupou o imaginário do velho continente. Que não foi bem assim já o historiador inglês Charles Ralph Boxer (1904-2000) mostrou no livro A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, de 1960 (Rio de Janeiro, 3ª ed., Nova Fronteira, 2000), afirmando que, sob certos aspectos, a idade de ouro do Brasil talvez tenha sido tudo, “menos de ouro”. Até porque as plantações de cana-de-açúcar e tabaco, a criação de gado e o povoamento do litoral tiveram igualmente importância na formação da riqueza do Brasil colônia.

Foi a partir dessa perspectiva -- a de que nem Minas nem o Brasil se resumiram ao ouro -- que os historiadores Maria Efigênia Lage de Resende, doutora e professora titular de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Luiz Carlos Villalta, doutor em Ciências e História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da UFMG, organizaram História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas, dois grossos volumes em que reuniram ensaios de vários autores sobre múltiplos aspectos da história mineira do período, que, afinal, constitui ponto fundamental para quem quiser compreender o século XVIII na América portuguesa e no Reino de Portugal e seu Ultramar.

No estudo “A Guerra dos Emboabas: novas abordagens e interpretações”, Adriana Romeiro, doutora em História pela Universidade Estadual de Campínas (Unicamp) e professora do Departamento de História da UFMG, mostra, por exemplo, ao contrário do que se lê numa historiografia mais tradicional, que o que estava em jogo no conflito entre paulistas e reinóis, para além das diferenças culturais e políticas, era uma acirrada disputa pelo poder local. Ou seja: desde que o mundo é mundo, o que move o homem é sempre o interesse mais mesquinho, pessoal. E o historiador, que assume a assertiva dostoievskiana ou a visão schopenhaueriana de que nada de grandioso se pode esperar do homem, nunca erra.

Portanto, por trás da guerra dos emboabas, o que havia mesmo eram questões mesquinhas, como a concessão de cargos, a divisão dos achados minerais, a distribuição das sesmarias, os privilégios junto à Coroa, brigas de grupos etc. Tal como se deu na história da Inconfidência Mineira, que também passa por interesses contrariados, tendo sido articulada por ex-arrematantes dos contratos de entradas, que haviam recolhido muitos impostos, sem repassá-los para a Coroa, obviamente comprando a custo elevado a conivência de governadores, ouvidores e outras autoridades.

Quando a Corte de Lisboa, pressionada pelas circunstâncias e cofres vazios, fez questão de cobrar os atrasados, o “brio” patriótico daquela gente subiu às nuvens, levando de roldão alguns protagonistas de bons propósitos -- que sempre os há. Como quase sempre acontece, os homens de muito dinheiro, à custa de muita corrupção, livraram-se das malhas da devassa. E o rigor da lei caiu mesmo sobre aqueles que estavam por baixo.

Nada disso, é claro, depõe contra aqueles que participaram e deram a vida ou comprometeram seu futuro pelo movimento. Quem estudar a fundo a história dos movimentos sociais vai descobrir que interesses contrariados e o grande capital ou a riqueza são sempre os combustíveis que rompem (ou procuram romper) a ordem vigente. É assim na história de toda nação do mundo.

II

Ainda que o primeiro volume de As Minas Setecentistas tenha estudos extremamente importantes, o melhor mesmo está no segundo que reúne ensaios sobre temas como igreja, clero e irmandades, artes, educação, letras, trabalho, ciência, técnica, cotidiano e vida privada e a Inconfidência Mineira propriamente dita.

Em textos diferentes, por exemplo, os historiadores Luciano Figueiredo, doutor em História Social pela USP e professor da Universidade Federal Fluminense, e Paulo Gomes Leite, graduado em Letras Clássicas pela UFMG, com estudos de aperfeiçoamento nas universidades de Lisboa e Coimbra, desvendam a teia da pedagogia do medo desenvolvida pela Igreja católica que, como assinala Villalta na introdução, teve na Inquisição, nos tribunais eclesiásticos e nas visitações episcopais seus elementos fundamentais. “Revelam como, na ação desse aparato, misturavam-se a intimidação de consciências, os estímulos à delação e à confissão de heresias e de delitos morais, a exemplaridade das punições e as difusões dos preceitos cristãos”, diz.

Em “A Igreja, a sociedade e o clero”, Villalta lembra que a escravidão facilitava as ilicitudes sexuais: os abusos das escravas (e, muitas vezes, dos escravos, como assinala Ronaldo Vainfas em “Sodomia, amor e violência nas Minas Setecentistas”), com muitos senhores levando suas cativas à prostituição, além de criar obstáculos à constituição de famílias legítimas pelos escravos.

“Pululavam os casos de concubinato, de prostituição e de padres amancebados”, diz o historiador, lembrando que a moralidade coletiva, por sua vez, admitia implicitamente algumas relações sexuais “ilícitas”, em particular as travadas por homens de estratos superiores com mulheres de nível mais baixo. “Requeria-se, porém, que tais relações fossem minimanente dissimuladas”, acrescenta.

Ou seja, nada muito diferente do que ocorreu recentemente com o ex-governador de Nova York, Eliot Sptizer, flagrado em um escuta telefônica marcando encontro com uma prostituta de luxo num hotel de Washington.

III

Em “As mulheres nas Minas do ouro e dos diamantes”, Júnia Ferreira Furtado, doutora em História Social pela USP e professora do Departamento de História da UFMG, assinala que a escassez de mulheres na capitania levou a Coroa a proibir a instalação de conventos e recolhimentos, além de dificultar o hábito das famílias mais ricas de mandar as filhas para os conventos em Portugal.

Apesar da escassez de mulheres, o número de casamentos na capitania tendeu a crescer de forma constante, ampliando-se sobremaneira o número de famílias legalmente constituídas, diz a historiadora, lembrando, em seguida, que o amor não era condição necessária ao casamento e dele estava totalmente dissociado. Na verdade, o casamento era assunto de família e resolvido pelo pai, que buscava a construção de alianças que promovessem social e economicamente os envolvidos.

Destaca a historiadora que a maioria das mulheres da elite se casava muito jovem, no início da puberdade, e se ligava a esposos muitas vezes desconhecidos. “Enquanto a maioria dos homens ricos, em geral portugueses, casava-se tardiamente, a partir dos 30 anos, as esposas era muito jovens, estando geralmente na faixa de idade entre 13 e 19 anos e frequentemente descendiam de famílias estabelecidas na terra havia algum tempo”, observa Júnia Furtado.

A professora ressalta que, para os senhores, o casamento de seus escravos era não só forma de aculturação, mas de estabilidade nos plantéis, desestimulando as fugas e mesmo as alforrias, além de fornecer novas crias. Mas o casamento legal também podia ser estratégia dos próprios cativos para fortalecer a solidariedade interétnica e familiar. Autora do livro Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), a historiadora lembra que, no Serro do Frio, Francisca da Silva de Oliveira, a famosa Chica da Silva, companheira do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, casava sistematicamente seus escravos.

IV

No ensaio “Poetas inconfidentes de Minas Gerais: Cláudio, Gonzaga, Alvarenga”, a professora Melânia Silva de Aguiar, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais, embora assinale nas referências o livro Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), de minha autoria, escreve à pág. 345, que o poeta Tomás Antônio Gonzaga “teria morrido provavelmente em 1810”. No ensaio anterior, “A literatura do Setecentos em Minas Gerais: o Arcadismo”, à pág. 330, já havia colocado uma interrogação depois de 1810, como se ainda houvesse dúvida quanto ao ano da morte de Gonzaga.

Aliás, a única lacuna que persiste é exatamente quanto ao dia em que Gonzaga morreu. Porque, em meu livro, está provado com a citação de documentos da secção de Moçambique do Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, que o ex-ouvidor de Vila Rica morreu na semana que vai de 24 de janeiro a 2 de fevereiro de 1810. De 24/1/1810, é o último ofício do governador ao juiz interino da Alfândega da ilha de Moçambique Tomás Antônio Gonzaga (AHU, Moçambique, códice 1377, f.18, 24/1/1810). E de 2/2/1810, o documento da posse de Antônio da Cruz e Almeida no cargo de procurador da Real Fazenda que se achava “vago por falecimento de Tomás Antônio Gonzaga” (AHU, Moçambique, códice 1378, fls.51-51v., 2/2/1810).

Este esclarecimento é necessário para que, a menos de dois anos do bicentenário da morte de Gonzaga, as autoridades universitárias de Minas Gerais e do Porto não tenham dúvida quanto à época em que deverão promover seminários e outras manifestações para assinalar a passagem da data. Quanto aos ensaios da professora Melânia, nada a acrescentar, exceto que são grandes contribuições ao estudo das manifestações literárias no século XVIII mineiro.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br