I
O crítico norte-americano (nascido em Havana) René Garay (1949-2006), ex-professor do City College-Graduate School/City University of New York (Cuny), autor de Judith Teixeira: o Modernismo Sáfico Português (Lisboa, Universitária Editora, 2002), em seus últimos anos de vida, andava às voltas com estudos sobre o poema em prosa. De seu trabalho em parceria com Raúl Romero, publicou o ensaio “Epifanía y poema en prosa (El Livro do Desassossego de Fernando Pessoa/Bernardo Soares“) na Revista Forma Breve, da Universidade de Aveiro (nº 2, 2004, pp.71-80), e na Revista do Centro de Estudos Portugueses, da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, nº 34, v. 25, jan.-dez. 2005, pp.13-22).
Para escrever esse trabalho, pesquisou na Biblioteca Nacional de Lisboa e entrou em contato com investigadores e escritores portugueses. Ao poeta Mário Máximo, em 2005, lançou o desafio de produzir um livro de poemas em prosa, comprometendo-se a escrever um prefácio em que gostaria de acrescentar o que estudara depois da conclusão daquele trabalho que se pretendia inaugural.
No começo de 2006, Garay estava disposto trocar de novo Nova York por Lisboa por alguns meses e dedicar-se ao texto introdutório ao livro de Máximo. Mas não pôde viajar. Uma doença insidiosa, cujos primeiros sintomas sentira durante a temporada que passara a viajar quase diariamente de Sesimbra a Lisboa no começo de 2005, começou a lhe perseguir os passos. No dia 29 de abril, seu coração deixou de bater.
Seis meses depois, saía à luz Hangar de Sonhos (odes brancas), de Mário Máximo (1956), sem o prometido estudo introdutório de René Garay, mas com prefácio que o poeta e crítico Ernesto de Melo e Castro (1932), um dos introdutores e mais persistentes animadores do experimentalismo poético em Portugal, seu teórico e praticante, escreveu em outubro daquele ano, às vésperas da publicação do livro. Na dedicatória, Máximo diz que “sem o impulso e entusiasmo de René Garay este livro nunca teria acontecido”.
II
O poema em prosa, como se sabe, é uma herança do movimento cultural francês do século 19, que nasceu, a rigor, com o livro Gaspard de la Nuit: fantasias à maneira de Rembrandt e de Callot, de Aloysius Bertrand, aliás, Louis-Jacques-Napoléon Bertrand (1807-1841), que se pode encontrar em recente tradução de José Jeronymo Rivera (Brasília, Thesaurus Editora, 2003).
Filho de um militar francês e uma italiana, casal que se fixou em Dijon, na França, depois da queda do império napoleônico, Bertrand nasceu em Ceva, no Piemonte, e, boêmio, morreu jovem, aos 34 anos, sem tempo de ver impresso seu único livro, trabalho de toda uma vida, concluído em 1836 e, desde então, nas mãos de um livreiro-impressor que não o publicou. A obra só sairia à luz em 1842 pelas mãos de outro editor e precedida por uma Notice assinada por ninguém menos que Charles-Augustin Sainte-Beuve (1804-1869).
O livro de Bertrand foi, desde o começo, uma obra rara, acessível apenas a poucos literatos, como Charles Baudelaire (1821-1867), que admitiu tê-lo lido pelo menos vinte vezes numa confissão que fez em Le spleen de Paris, conhecido geralmente por Petits poèmes en prose. Mas, depois da “descoberta” de Baudelaire, foi grande a fortuna crítica do livro de Bertrand, reeditado e analisado na França, lido e traduzido em outras partes.
III
Como observam Garay e Romero no ensaio citado, o poema em prosa é uma manifestação individual de lirismo que não respeita as formas tradicionais e convencionais do verso. E atua como um poema no sentido de que se vale das estratégias e táticas da poesia, da mesma maneira que o verso livre o faz com a métrica e a rima. Ou seja: este subgênero literário se vale dos meios e instrumentos da prosa com os objetivos da poesia. E exige do autor um estado epifânico, semelhante ao estado de iluminação ou relevação típico de uma experiência mística religiosa.
Tal como se vê em Fernando Pessoa (1888-1935) no Livro do Desasossego, atrás do semi-heterônimo Bernardo Soares, dizem Garay e Romero, citando o ensaio “Prosa poética e poema em prosa no Livro do Desassossego”, deste articulista que faz parte do livro Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Universidade Santa Cecília, 1997), que Garay localizou na Biblioteca Nacional de Lisboa, e originalmente saiu na Revista Vértice (Lisboa, nº 59, mar.-abr.1994, pp.120-123).
É também o que se constata em Hangar de Sonhos (odes brancas), de Mário Máximo, que reúne 71 poemas em prosa, de pequeno tamanho, que vão de quatro a 12 linhas, com exceção de uma peça que ocupa uma página inteira e do penúltimo texto que ocupa uma página e meia que, como diz Ernesto de Melo e Castro, “tem a natureza de um metatexto, crítico e justificativo do programa poético a que o livro obedece”.
Que estes poemas em prosa são tributários de Fernando Pessoa/Bernardo Soares, não há dúvida. Basta ler esta peça de Máximo: “Não tenho notícia de nenhuma notícia. Informações de nenhuma fonte. Recado de nenhuma influência. Leio apenas sinais nos desvãos do vento. Chegam-me sinais todos os dias. Todos os instantes de todas as horas”. E compará-la com esta de Fernando Pessoa/Bernardo Soares: “Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e apenas esse, o sentido de minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores de minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela de dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu movimento”.
Quem lê estes dois fragmentos logo percebe que ambos utilizam equilibradamente a linguagem denotativa (simbólica) e a conotativa (subjetiva) e que há ritmo nas palavras, o que é uma condição sine qua non do poema, mas não essencial à prosa. Isto é: o ritmo da prosa obedece ao mesmo ritmo que se observa comumente em poemas. Até porque o ritmo não depende do meio de expressão (linha contínua ou descontínua).
Afinal, se estas linhas fossem divididas em segmentos, também poderiam passar apenas por poemas (sem rima e sem métrica). Até porque nem a rima nem a métrica caracteriza a poesia: pode-se escrever em hendecassílabos uma fórmula matemática, uma receita culinária, o cerco de Tróia e uma sucessão de palavras desconexas, diz Octavio Paz (1914-1998) em O Arco e a Lira (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p.85).
São, portanto, poemas em prosa da mais alta qualidade estes de Mário Máximo, ou seja, constituem pequenas peças líricas em que toda a primazia é do “eu”, o “eu-profundo”, uma voz que reflete o interior do poeta. Como se percebe também neste fragmento: “As paisagens marítimas são paisagens mutantes assim como as do amor e do desejo. Os olhares em forma de fotografia são o que existe nesta disciplina contemplativa. Cada momento do amor é uma fotografia: irrepreensível no rigor da imagem mas irrepetível. As paisagens do amor e do desejo são paisagens marítimas. E por isso mutantes. E por isso únicas”.
IV
Lisboeta, Mário Máximo viveu em Olival Basto, freguesia do concelho de Odivelas, até aos sete anos de idade, morando em Lisboa até aos 35, quando passou a residir em Odivelas, onde está há mais de 15 anos. Desde bastante cedo ligado às questões da literatura e da criatividade literária, deram os jornais a conhecer muitos dos seus poemas, mas também o conto e a crónica. Escrever roteiros para a televisão tem sido outra das suas ocupações. Em 1986, publicou o primeiro livro, Um Milhão de Anos (Perspectivas & Realidades), poemas.
A partir dessa coletânea, sucederam-se o romance A Ilha (Hugin Editores) e mais estes livros de poesia: Meridiano Agreste (Tertúlia Editora,1991); Hedonista (Tertúlia Editora, 1994); Paisagens da Utopia, (Tertúlia Editora, 1996); Arte Real (Hugin Editores); Oração Pagã (Hugin Editores); Dezanove Sonetos (Edições Cesdis, 2003) e Prima Materia (Hugin Editores, 2003). Depois de Hangar de Sonhos, já publicou Diário de uma ilha distante (Editora Sete Caminhos, 2007), poesia. Além de ter participado de várias antologias, desenvolveu, ao longo dos últimos 15 anos, intensa atividade como diseur de textos literários.
O espetáculo As Palavras e a Música na Poesia de Mário Máximo – que apresenta peças originais para piano, flauta, violoncelo e guitarra, compostas para os poemas a dizer – já esteve no teatro A Barraca, no Centro Cultural de Belém e no Auditório Amélia Rey Colaço.
Todo este trabalho culminou com a edição do CD DizerPessoa, que reúne 17 (poemas de Fernando Pessoa e seus heterônimos ditos por Mário Máximo e acompanhados por composições específicas da autoria do compositor Paulo Nazareth. Este CD contou com o apoio das Câmaras de Lisboa e de Odivelas e do Instituto Camões.