I
Foi Manuel de Faria e Sousa (1590-1649) quem, no século XVII, descobriu que havia duas edições de Os Lusíadas, de 1572, e que uma era imitação da outra. Essa constatação resultou numa polêmica que, passados quatro séculos, ainda está longe de esgotada. Tanto que Leodegário A. de Azevedo Filho (1927), professor emérito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Academia Brasileira de Filologia, considerado o maior camoniano da atualidade, acaba de publicar uma edição fac-similar do livro, acompanhada de um alentado estudo filológico sobre a obra de Luís de Camões (c.1524-1580), com prefácio de Arno Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e prefácio de Nicolás Extremera Tapia, professor catedrático da Universidade de Granada, Espanha.
A publicação é feita com base na edição princeps hoje de propriedade do IHGB, mas que pertenceu a D.Pedro II (1825-1891) e que, um dia, fez parte do acervo da biblioteca do Convento de São Bento da Saúde, em Lisboa. Seu proprietário ou custódio era frei João Batista de São Caetano, mas, depois, o exemplar passou a frei José de São Boaventura Cardoso que, ligado às hostes absolutistas que defendiam o trono para D.Miguel, passou ao Brasil em 1834, quando foram suspensas as ordens religiosas em Portugal.
Passando a viver no Desterro (hoje Florianópolis, Santa Catarina), o frade teve a iniciativa de enviar o exemplar a D.Pedro II, pouco antes de uma visita do monarca ao local em 1845. O volume permaneceu na biblioteca imperial até 1889, pois, quando do exílio, depois de apeado do poder pelo golpe militar que redundou na proclamação da República, o imperador o solicitou da Europa juntamente com um manuscrito de José Feliciano de Castilho e Noronha (1810-1879) que o acompanha e que seria publicado em 1925, dentro das comemorações do centenário do nascimento de D.Pedro II, como se lê na apresentação escrita por Arno Wheling, Depois, o exemplar passou à princesa Isabel (1846-1921), que o conservou até morrer. Quatro anos mais tarde, seu filho, o príncipe D.Pedro de Orleans e Bragança, faria a doação ao IHGB.
II
Diz o professor Leodegário que, segundo tradição vinda do século XVIII, o exemplar teria pertencido ao próprio Luís de Camões. Mas disso, acrescenta, não se tem certeza, embora nas páginas iniciais do livro haja, com letra do século XVI, a seguinte informação: "Luís de Camões seu dono". Para o camonista responsável pelos oito volumes da Lírica de Camões, publicados desde 1985 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (IN-CM), de Lisboa, bem como por outros tantos livros sobre o vate, não há prova aceitável que justifique essa atribuição de propriedade.
Encarregado pelo IHGB de cuidar da edição fac-similar do livro, o professor Leodegário pôs-se a comparar o exemplar em causa, que pertence à chamada edição Ee, com o da edição fac-similada publicada pela IN-CM em 1982, da chamada Edição E. Ficou perplexo com a imensa quantidade de variantes textuais encontradas nesta edição em confronto com o exemplar do IHGB. Observe-se, desde logo, que na capa do exemplar em causa, claramente, vê-se o desenho de um pelicano com a cabeça voltada para a esquerda do leitor, ao contrário do que se vê na outra.
Leodegário lembra ainda que o tempo destruiu as páginas correspondentes a onze estâncias iniciais do primeiro Canto de Os Lusíadas. Tais estâncias aparecem copiadas à mão, mas a partir de um exemplar da edição E (e não da edição Ee). Além disso, todas as cópias manuscritas apresentam variantes da Edição E, em face da Edição Ee.
III
Em breve visão histórica, o professor lembra que, para Faria e Sousa, a edição original, isto é, a primeira, publicada em 1572, seria a posteriormente chamada Edição E. Assim, a chamada Edição Ee seria a segunda tiragem feita de forma mais cuidadosa em face do manuscrito camoniano, que se perdeu. Opondo-se a tal interpretação, o professor Nicolás Extremera Tapia, observa Leodegário, com base na teoria da ultracorreção ou hipercorreção, passou a defender o ponto de vista de que a verdadeira editio princeps seria a que tem, na portada do volume, a cabeça de um pelicano virada para a esquerda do leitor.
Leodegário lembra ainda a posição do professor Vítor de Aguiar e Silva (1939), da Universidade do Minho, segundo a qual, no século XIX, é que se foi impondo a tese de que a primeira edição impressa em vida de Camões, em 1572, certamente revista por ele, era a Edição Ee, com a cabeça do pelicano virada para a esquerda do leitor, devendo a outra ser uma edição espúria e apócrifa. A tese de que a autêntica editio princeps é a que tem o colo do pelicano, na xilogravura da portada do volume, voltado para a esquerda do leitor e que inautêntica seria a Edição E, teve dois defensores de peso: Tito de Noronha (1834-1896) e Teófilo Braga (1843-1924).-
Depois de relacionar idéias defendidas por eminentes filólogos como Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), Wilhelm Storck (1829-1905), Aquilino Ribeiro (1885-1963), Jorge de Sena (1919-1978) e, mais recentemente, pelo professor Kenneth David Jackson, da Universidade de Yale, Leodegário inclina-se para a tese de que houve, sim, uma editio princeps em 1572 e que esta editio princeps é a que apresenta as leituras incontestáveis da Edição Ee, em face das ultracorreções apresentadas, por despreparo ou ignorância do editor, nos exemplares da Edição E.
Quanto às edições mistas, que resultam das contaminações recíprocas entre as edições Ee e E, apontadas por Kenneth David Jackson, também estas, segundo Leodegário, só podem ser fraudulentas e levadas a público por editores inescrupulosos, que teriam aproveitado a fama do poeta para imprimir exemplares contaminados com o propósito de auferir lucros financeiros.
Leodegário diz que essa conclusão só se reforça com a análise do exemplar do IHGB, que, segundo ele, não se apresenta como nenhuma edição mista ou penosamente contaminada, com exceção dos versos da parte manuscrita, que teriam sido copiados de um exemplar da Edição E, o que levou o filólogo a restaurar em apêndice as estrofes da edição Ee, "pois estas é que pertencem ao livro".
IV
Depois de apontar dezenas de diferenças textuais entre as duas edições de Os Lusíadas, ambas com data de 1572, Leodegário inclina-se pela hipótese segundo a qual a verdadeira editio princeps é aquela que tem, na portada do volume, a cabeça do pelicano virada para a esquerda do leitor, não passando a outra de uma edição fraudulenta, como já defendia Tito de Noronha. Para ele, a teoria da ultracorreção ou hipercorreção só vem reforçar a tese de que a verdadeira editio princeps é a chamada Edição Ee, como o exemplar agora editado em fac-simile.
Para quem não sabe, o professor ressalta que ultracorreção ou hipercorreção significa interpretar como incorreta uma forma rigorosamente correta de linguagem para, em seguida, substituí-la por uma forma errada, mas que se acredita seja a certa. Portanto, a ultracorreção resulta de uma ação ou interferência no sentido de querer corrigir o que está certo, por falta de cultura ou de adequado conhecimento lingüístico-filológico.
Como exemplo, o professor cita o verso "Quando as infidas gentes se chegárão", da Edição Ee, II, 1, v.7, que na Edição E passa a "Quando as fingidas gentes se chegárão", lembrando que, facilmente, verifica-se que Camões escreveu infidas e não fingidas, optando pelo latinismo erudito, enquanto fingidas, palavra popular, denotaria a banalização ou trivialização do verso. "(Infidas) é o que melhor se ajusta ao texto", garante, observando que a palavra entrou na língua no século XVI, época de relatinização do idioma. "E entrou pelas mãos de Camões".
Portanto, não há dúvida que a publicação desta edição fac-similada de Os Lusíadas, sob os cuidados do professor Leodegário, constitui uma contribuição inestimável para uma futura edição crítica ou uma edição diplomático-interpretativa que, como se sabe, ainda não se fez de modo satisfatório, ainda que já tenham sido publicadas tanto em Portugal como no Brasil edições que foram e continuam sendo muito úteis para o estudo da obra camoniana.