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::::::::::::::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
João Alexandre Barbosa:
de uma vida de leitura à leitura de uma vida
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LEITURAS DESARQUIVADAS, de João Alexandre Barbosa. Cotia: Ateliê Editorial., 243 págs, 2007. E-mail: atelie@atelie.com.br
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA: O LEITOR INSONE, de Plínio Martins Filho e Waldecy Tenório (organizadores). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 456 págs., 2007. Email: edusp@usp.br
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I |
Qual a diferença entre uma biografia e um ensaio biográfico? Quem dá a resposta é o escritor, crítico e professor de literatura João Alexandre Barbosa (1937-2006), antigo docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador nas áreas de Teoria Literária e Literatura Comparada, no ensaio “Lembrança de Roberta Ventura”, que faz parte de Leituras Desarquivadas (Cotia, Ateliê Editorial, 2007). Ali, ele recorda o que disse, certa vez, a ficcionista inglesa Virginia Woolf (1882-1941), autora de uma biografia do crítico britânico e homem de letras Roger Fry (1866-1934), membro do famoso grupo intelectual de Bloomsbury, no texto “Granito e Arco-íris”, que hoje faz parte do livro de ensaios com esse título. Virginia Woolf construiu essa metáfora para dizer que, para escrever uma biografia, é preciso defrontar-se com a verdade e a personalidade. Uma seria algo como a solidez do granito e outra teria a intangibilidade do arco-íris. O objetivo da biografia seria juntar essas duas qualidades num conjunto homogêneo. A partir daí, Barbosa observa que tudo isso compreende a relação entre aquilo que se traduz em termos de pesquisa (dados e datas) e aquilo que o biografado expressou “em termos de obras que, por sua vez, traduziram os movimentos principais da personalidade”. E acrescenta que, muitas vezes, cabe ao biógrafo o papel de romancista para, a partir de fragmentos de uma existência, tentar “reconstruir uma individualidade inteiriça e dotada de coerência de verossimilhança, fundindo granito e arco-íris”.
Portanto, diz Barbosa, o trabalho do biógrafo envolve simultaneamente tudo o que se refere a levantamento de dados (e não só a repetição do que se lê em livros já impressos) e a busca de dispersos e inéditos, além da criação até certo ponto imaginária, “o que não significa dizer gratuita, de uma rede de imagens e metáforas que possam traduzir para o leitor da biografia o teor das relações estabelecidas pelo biógrafo entre o granito escavado pela pesquisa e a composição de um arco-íris que foi possível ter e apreender por meio daquela criação”. |
II |
Eis aqui uma definição perfeita do trabalho do biógrafo, que Barbosa estende àquele que, com certeza, teria sido o maior biógrafo de Euclides da Cunha (1866-1909), se não tivesse sido alcançado pela fatalidade em pleno vôo, o pesquisador Roberto Ventura (1957-2002), que também foi professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Ventura estava em fase avançada em sua pesquisa, quando morreu num acidente automobilístico. E, assim, o que saiu à luz foi Euclides da Cunha -- esboço de uma biografia (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), o arquivo que Marcia Zoladz, sua mulher, e o amigo Mario Cesar Carvalho localizaram no computador do autor.
Os organizadores do livro -- o jornalista Mario Cesar Carvalho e o professor José Carlos Barreto de Santana -- entenderam que, por seu tamanho e conteúdo, o arquivo corres- ponderia ao esboço da biografia que o autor vinha escrevendo. Ventura já havia realizado um rigoroso levantamento documental: entrevistara descendentes de Euclides da Cunha e de seus contemporâneos, recuperara documentos e dialogara com os principais especialistas sobre o escritor e a Guerra de Canudos (1896-1897) no interior do Estado da Bahia.
O grande mérito do texto, porém, seria a idéia de aproximação de destino entre Euclides da Cunha e Antônio Conselheiro (1830-1897) em que o autor estava a meio caminho. Ambos eram órfãos, tiveram uma experiência traumática com o adultério, foram construtores -- Euclides de pontes e o Conselheiro de igrejas -- e tiveram trajetórias marcadas pelo advento da República. O biógrafo entendia que o Conselheiro seria uma combinação da projeção psicanalítica e criação literária de Euclides. Para Ventura, Antônio Conselheiro seria a encarnação dos piores fantasmas de Euclides. Por fim, ambos teriam vidas marcadas pela tragédia. Assim como o biógrafo.
Por isso, Barbosa, que escreveu seu ensaio antes de Euclides da Cunha -- esboço de uma biografia sair à luz, entendia que Ventura, ao morrer de maneira trágica, exatamente quando voltava de uma conferência que dera sobre o escritor no interior do Estado de São Paulo, encontrava-se exatamente na passagem da fase do granito para a do arco-íris, pois já dominava de tal maneira o tema que não lhe era difícil estabelecer relações entre os vários e numerosos ensaios escritos e publicados por Euclides da Cunha, ou mesmo aqueles deixados dispersos ou inéditos, a correspondência do escritor e outros documentos a que tivera acesso.
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III |
Dividida em cinco partes, a coletânea Leituras Desarquivadas reúne ensaios mais recentes e outros com mais de quatro décadas, publicados em jornais e revistas ou como prefácios de livros, mas que são as marcas das obsessões do crítico, o seu itinerário textual como professor, editor e ensaísta, como observa na apresentação que fez para este livro póstumo Manuel da Costa Pinto, que foi editor da revista Cult, na qual Barbosa assinou a coluna de crítica “Entrelivros” entre 1998 e 2002.
Como este articulista, Barbosa tinha ascendentes no concelho de Paços de Ferreira, Norte de Portugal, e não perdia também a oportunidade de acompanhar a Literatura Portuguesa tanto a clássica como a contemporânea. Era amigo de dois Albertos portugueses: Alberto de Lacerda (1928-2007), que nasceu na Ilha de Moçambique, na África Oriental, e morreu um ano depois de Barbosa, e de Alberto Pimenta (1937), nascido no Porto, que, tendo fugido da repressão salazarista, lecionou em Heildelberg, às margens do rio Necker, na Alemanha, e que vive hoje em Lisboa, onde foi professor da Universidade Nova e escreve crônicas em jornais.
Aos dois se refere no ensaio “A poesia afinada de Alberto Pimenta” em que lamenta que não tivessem tido muita sorte editorial no Brasil. Lacerda não teve obra publicada aqui, enquanto de Pimenta só saíram à luz O Discurso do Filho-da-Puta e A Encomenda do Silêncio. Aliás, o ensaio de Barbosa foi originalmente publicado como apresentação deste último livro, que saiu pela Odradek Editorial, de São Paulo, em 2003.
Desta antologia de Pimenta, Barbosa diz reunir poemas que poderiam ser definidos como antipoesia “que não se descola de uma tendência simultânea para a sátira e para o silêncio”. Poesia de teor social, a poética de Pimenta é toda marcada por “irreverência, desobediência e anarquia”, segundo o crítico.
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IV |
Para prestar uma homenagem ao amigo que se foi, o editor Plínio Martins Filho, doutor em editoração pela USP e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, e o jornalista Waldecy Tenório, doutor em Filosofia pela USP, organizaram João Alexandre Barbosa: o leitor insone (São Paulo, Edusp, 2007), que conta um pouco da trajetória do grande crítico e professor. Por meio de textos preparados por aqueles que tiveram a sorte de conviver com o mestre, o livro destaca as várias facetas de sua atuação na universidade e fora dela, como a de administrador, seu papel na reestruturação da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), sua atuação como crítico literário e como professor, que marcou algumas gerações de estudantes.
No prefácio, Waldecy Tenório, autor de A Bailadora Andaluza: a Explosão do Sagrado na Poesia de João Cabral, sua tese de doutoramento que teve a orientação e apresentação de João Alexandre Barbosa, conta que a inspiração para o título do livro veio do próprio professor, que, certa vez, contou-lhe de um detalhe que observara no romance Ulisses, de James Joyce, em que, numa determinada página, um lenço cai e só muitas páginas adiante aparece alguém que diz a outro: “Aqui está o seu lenço”. Dizia isso para lembrar que o leitor, que já havia esquecido o incidente, não saberia de que lenço se tratava. E acrescentava: “Joyce parece que imaginava que o leitor que não tem sono e não pára de ler”. Exatamente o leitor que, segundo Tenório, era o seu professor-orientador: um leitor insone.
Os artigos do livro dividem-se em três blocos. Aos depoimentos pessoais e resenhas das duas primeiras partes do livro, somam-se os artigos da terceira, nos quais críticos como Antonio Candido, Silviano Santiago, Boris Schnaidermann e Luiz Costa Lima, entre outros, reafirmam suas convergências intelectuais através da análise de autores e temas que foram caros e afins ao professor e amigo. |
V |
Nascido em Recife, João Alexandre Barbosa cursou Direito em sua cidade natal e foi professor de Teoria Literária na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal de Pernambuco, antes de se transferir para a Universidade de Brasília, de onde foi expulso em 1965 por forças da repressão ligadas ao regime militar (1964-1985). Em 1969, foi contratado pela USP, por indicação do professor Antonio Candido. Em 1970, defendeu sua tese de doutoramento Linguagem da Crítica e Crítica da Linguagem. Um Estudo de Caso Brasileiro: José Veríssimo. Em 1980, sucedeu a Antonio Candido na cadeira Teoria Literária. Foi ainda pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da USP entre os anos de 1990 e 1993. Como escritor, produziu obras como João Francisco Lisboa: trechos escolhidos (Rio de Janeiro, Agir, 1967), A Tradição do Impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo (São Paulo, Atica, 1974), A Metáfora Crítica (São Paulo, Perspectiva, 1974), A Imitação da Forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto (São Paulo, Duas Cidades, 1975), Opus 60: ensaios de crítica (São Paulo, Duas Cidades, 1980), As ilusões da modernidade: notas sobre a historicidade da lírica moderna (São Paulo, Perspectiva, 1986), A Leitura do Intervalo (São Paulo, Iluminuras, 1990), A Biblioteca Imaginária (Cotia, Ateliê Editorial, 1996), Entrelivros (Cotia, Ateliê Editorial, 1999), Folha explica João Cabral de Melo Neto (São Paulo, Publifolha, 2001), Alguma Crítica (Cotia, Ateliê Editorial, 2002), Mistérios do Dicionário (Cotia, Ateliê Editorial, 2004) e A Comédia Intelectual de Paulo Valéry (São Paulo, Iluminuras, 2007). |
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
Textos em: Academia Brasileira de Filologia Abrafil (www.filologia.org.br)
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