Fidelino de Figueiredo (1889-1967) foi um intelectual de ponta da cultura portuguesa no século XX que, nos últimos tempos, andava um pouco esquecido. Foi para tirá-lo de um injusto limbo que veio à luz Fidelino de Figueiredo e a crítica da teoria literária positivista, de José Cândido de Oliveira Martins, professor da Universidade Católica Portuguesa, de Braga, publicado pelo Instituto Piaget, de Lisboa. Poucos intelectuais portugueses e brasileiros terão tido a sorte de receber a respeito de sua obra um estudo tão alentado quanto este de Oliveira Martins a respeito de Fidelino de Figueiredo.
Autor de A épica portuguesa no século XVI (Lisboa, IN-CM, 7ª ed., 1987), História de literatura clássica, História da literatura romântica e História da literatura realista, entre outros livros de uma obra extensa e significativa, Fidelino cedo distanciou-se do Positivismo dogmático de Teófilo Braga (1843-1924), que então dominava o cenário literário português, e do filologismo erudito de Carolina Michaëlis de Vasconcelos ((1851-1925).
Leitor de Benedetto Croce (1866-1952), de quem traduziu e prefaciou em 1914 o livro Breviário da Estética, Fidelino rompeu com o modelo da razão positivista, “assente no determinismo mecanicista dos fatores biológicos, sociais e históricos, na acumulação elefantíaca de fatos e numa estéril erudição”, como afirma o professor Vitor Aguiar e Silva, da Universidade do Minho, no prefácio que escreveu para esta obra que, originariamente, constituiu a tese de doutoramento que o professor Oliveira Martins apresentou em 2003 à Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa.
II
Ainda jovem, Fidelino fundou e dirigiu a Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos e a Revista de História, que circulou em Portugal de 1912 a 1928. Exilando-se na Espanha em finais da década de 20 por razões políticas, foi contratado como professor de Literatura pela Universidade Central de Madri. Já na década de 30, depois de anistiado e de regresso a Portugal, celebrizou-se nas atividades de conferencista e professor convidado de Literatura em várias universidades européias e norte-americanas. Espírito cosmopolita, ensinou também na Universidade da Califórnia (Berkeley), na Universidade Nacional do México e, no começo da década de 1960, na então recém-criada Universidade do Brasil, em Brasília.
Em 1938, contratado pela Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, Fidelino tornou-se professor de Literatura Luso-Brasileira da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que ficava à Rua Maria Antônia, na área central de São Paulo. Em 1948, iria criar anexo à cadeira de Literatura Portuguesa, que substituíra a de Literatura Luso-Brasileira, o Instituto de Literatura, embrião do atual Centro de Estudos Portugueses (CEP) da USP, experiência que iria repetir na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro. Desse núcleo, nasceria um dinâmico grupo de discípulos, entre os quais se contam prestigiados docentes e investigadores, como Antônio Soares Amora, Cleonice Berardinelli, Segismundo Spina, Carlos de Assis Pereira, Massaud Moisés e outros.
Além dos vários cursos de graduação e pós-gradução, dirigiu e colaborou ativamente na Revista de Letras (1938-1954), da USP. Doente, em 1966, deixou as funções docentes no Brasil, regressando definitivamente a Portugal, à sua morada de Alvalade, em Lisboa.
III
Para escrever este sólido estudo do pensamento e da obra de Fidelino de Figueiredo, Oliveira Martins pesquisou exaustivamente a bibliografia ativa do autor, beneficiando-se ainda de informações colhidas com ex-alunos do mestre português, especialmente em São Paulo, onde pôde manter-se com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Pôde, assim, pesquisar assiduamente na biblioteca que Fidelino doou à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e que, hoje, constitui a parte essencial do acervo do CEP.
Diz o professor Aguiar e Silva que um dos grandes méritos -- que não são poucos -- desta tese consiste na análise, a partir dos textos de Fidelino, “de questões fulcrais da teoria da literatura da primeira metade do século XX e de algumas problemáticas nucleares, sob o ponto de vista histórico-literário, comparativista e antropológico, da literatura portuguesa”.
Nesse sentido, é de lembrar que Fidelino foi um dos primeiros historiadores a usar o conceito de Pré-Romantismo aplicado à evolução da Literatura Portuguesa, que assimilou a partir da leitura dos livros de Paul van Tieghem (1871-1948) -- aliás, com quem se correspondia --, especialmente Le Préromantisme. Études d´Histoire Littéraire (1924-1947) no amplo contexto da literatura européia, que, por sua vez, referiu-se especificamente a Filinto Elísio (1834-1819) e Bocage (1765-1805) como imitadores da poesia noturna e sepulcral de Edward Young (1683-1765).
Como se sabe, Pré-Romantismo é uma das maneiras que a crítica encontrou para definir um período de transição, pois uma escola literária nunca substitui outra de maneira abrupta, da noite para o dia. Assim, a palavra pré sempre é muito útil para explicar algo que nunca é feito de maneira incisiva, mas aos poucos, como o momento de crise e dissolução de uma estética diante da afirmação de outra que a sucede.
Assim, os últimos cultores de um determinado tipo de estética sempre acabam sendo vistos como precursores da estética seguinte. Foram os casos de José Anastácio da Cunha (1744-1787), Bocage, Marquesa de Alorna (1750-1839) e João Xavier de Matos (1730-35/1789), que sempre se mostraram mais refratários à disciplina arcádica. Por isso, passaram a ser definidos como pré-românticos.
De acordo com essa concepção, não seria possível o fenômeno do Pré-Romantismo, como fase preparatória do Romantismo “fora de uma perspectiva européia, capaz de apresentar uma síntese da nova concepção de Poesia e das nouvelles influences que determinaram a mudança da idade clássica para o Romantismo”, como observa Oliveira Martins, lembrando que a influência do Romantismo germânico, por meio do magistério da Marquesa de Alorna, sobre a formação estético-literária de Alexandre Herculano (1810-1877), será realçada por Fidelino em vários estudos, e merecerá de Vitorino Nemésio (1901-1978) uma aprofundada investigação”.
IV
Oliveira Martins aponta em Fidelino também uma precoce oposição à velha e positivista opção do teórico francês Gustave Lanson (1854-1934) que se baseava no esquema vida/obra, que, em Portugal, teve um seguidor de peso, Teófilo Braga. Para Fidelino, já não havia sentido em se fazer História Literária nos moldes lansonianos, o que, de certo modo, antecipava as polêmicas da Nova Crítica francesa e dos defensores da Estética da Recepção dos anos 60 e 70 do último século. “Depois da Teoria da Crítica e da Teoria da História literárias, ganhava corpo, aos olhos de Fidelino, a necessidade de uma nova disciplina na área dos Estudos Literários, com articulações necessariamente interdisciplinares, que ele designa repetidamente por Filosofia da Literatura”, acrescenta.
Hoje, é a Estética da Recepção que predomina amplamente nos meios universitários, a ponto de visão positivista ter virado uma acusação letal, muito utilizada por quem pretende desqualificar o trabalho alheio sem maiores aprofundamentos. Já não estamos mais ao tempo em que os biógrafos liam versos como chave para abrir as portas do que havia sido a vida de seus autores, mas também não podemos desprezar in limine as idéias de Lanson, que antecipou muitas das reflexões teóricas de hoje.
Na História Literária, a par das idéias sempre defendidas pelos adeptos da Estética da Recepção, ainda é fundamental o trabalho de pesquisa em arquivos, assim como na História tradicional, pois o que se vê muito por aí são trabalhos que, a pretexto de aprofundar o diálogo com a bibliografia, praticamente, só repetem informações que constam de livros impressos. Assim, por exemplo, se um historiador do século XIX errou ou leu equivocadamente um manuscrito do século XVIII-- o que não era difícil de ocorrer --, essa informação acaba por ser repassada ad infinitum, ganhando foros de verdade, porque poucos vão ao arquivo ler de novo o documento original. Ou procurar outros.
Mas é claro que tudo precisa ser feito com equilíbrio, na justa medida. E isso Fidelino já via com muita sabedoria, condenando o culto da erudição, da acumulação de fatos e documentos, sem a necessária interpretação, observando que “os documentos são os alicerces indispensáveis da história, mas ainda não são a história”, como escreveu em Sob a cinza do tédio: romance de uma consciência (Coimbra, 4ª ed., Nobel, 1925, pp.45-46), apud Oliveira Martins (p.81).
Portanto, é com prazer que percorremos esta obra extensa que, embora marcada pelas exigências acadêmicas naturais de um doutoramento, constitui uma oportunidade rara de constatarmos que muito daquilo que aprendemos nos bancos da USP ao tempo dos estudos de pós-graduação já vinha de uma tradição iniciada por Fidelino. E ainda que não tenha exercido em Portugal a influência que Hernâni Cidade (1887-1975) exerceu -- até porque o exílio a que teve de se entregar o impossibilitou --, há que se admitir que muito do que se escreve hoje a respeito da Literatura Portuguesa ainda é tributário do pensamento precursor de Fidelino de Figueiredo.
V
José Cândido Oliveira Martins na Universidade Católica Portuguesa, em Braga, tem lecionado as disciplinas de Teoria da Literatura, Literatura Portuguesa Moderna, História da Arte Moderna e Retórica e Argumentação. Além de participar de seminários e de obras coletivas e publicar artigos em revistas acadêmicas, publicou os livros Teoria da paródia surrealista (1995), Para uma leitura de Maria Moisés, de Camilo Castelo Branco (1997), Naufrágio de Sepúlveda. Texto e Intertexto (1997), Para uma leitura da poesia de Bocage (1999) e Para uma leitura da poesia neoclássica e pré-romântica (2000).
Organizou ainda a edição dos livros: Eusébio Macário/A Corja (2003) e Novelas do Minho (2006), de Camilo Castelo Branco (2003); Poesias completas (2004) e Poesias dispersas e inéditas (2005), de António Feijó; e Poesias e outros dispersos (2006), de Teófilo Carneiro.
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