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:::::::::::::ADELTO GONÇALVES:
Camilo: uma vida sem segredo
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CAMILO E ANA PLÁCIDO:
EPISÓDIOS IGNORADOS DA CÉLEBRE PAIXÃO ROMÂNTICA|, de Manuel Tavares
Teles. Porto: Edições Caixotim, 280 págs., 2008, 18 euros.
E- mail: edicoescaixotim@mail.telepac.pt Site: www.caixotim.pt |
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I |
A vida do romancista Camilo Castelo Branco
(1825-1890) foi, com certeza, a que mais biógrafos atraiu na Literatura
Portuguesa. Uma vida, senão rocambolesca, ao menos completamente
devassada não só pela exposição pública a que se submeteu ao se deixar
levar pela paixão romântica por uma mulher casada como por seu hábito de
aproveitar detalhes de sua existência pessoal e daqueles com os quais
conviveu ou atritou-se como fonte de inspiração para seus romances e
poemas.
Mas, apesar do empenho de seus biógrafos, especialmente Sousa Costa
(1879-1961), autor do ensaio Camilo no drama da sua vida (Barcelos,
1959), Alberto Pimentel (1849-1925), autor de O romance do romancista:
vida de Camilo Castello Branco (1890), e Alexandre Cabral (1917-1996),
autor do famoso Dicionário de Camilo Castelo Branco (1989), com quem
dividi espaço muitas vezes nas mesas da primeira fila da Biblioteca
Nacional de Lisboa em 1994, muitos fios ainda parecem soltos na
tumultuada vida de Camilo. Um deles é o que se refere à paternidade de
Manuel Augusto Plácido, primeiro filho de Ana Plácido, que, ao longo dos
anos, foi tido por muitos biógrafos como concebido por Camilo, embora
diante das leis e perante a sociedade fosse legalmente filho de Manuel
Augusto Plácido, o marido de Ana.
Para defender essa tese, Manuel Tavares Teles escreveu Camilo e Ana
Plácido: episódios ignorados da célebre paixão romântica, lançado por
Edições Caixotim, do Porto, no qual procura convencer o leitor e a si
mesmo de que as evidências indicam que o verdadeiro pai de Manuel
Augusto seria António Ferreira Quiques que, antes de Camilo, mantivera
um affair com dona Ana Plácido. Com isso, contraria o que escreveram
Sousa Costa e Alexandre Cabral, entre outros. Por contestar Cabral,
Tavares Teles parece até pedir desculpas, reconhecendo que o
camilianista era um cidadão exemplar e encantador.
Embora conhecida, é preciso que se faça aqui um breve retrospecto da
vida de Camilo. De uma família da aristocracia de província, o escritor
ficou órfão de mãe quando tinha um ano de idade e de pai aos dez anos.
Criado por uma tia e, depois, por uma irmã mais velha, casou, em 1841,
quando tinha apenas 16 anos, mas o matrimônio pouco resistiu. De
temperamento instável, teve outros relacionamentos tumultuados,
inclusive, com uma freira.
De novo sem o compromisso do casamento, tentou o curso de Medicina no
Porto que não concluiu, optando depois por Direito. A partir de 1848,
levou uma vida de don juan, repartindo o seu tempo entre os cafés e os
salões burgueses, dedicando-se, porém, ao jornalismo. Foi por volta de
1858 que se apaixonou por Ana Plácido, mulher casada com o comerciante
Manuel Pinheiro Alves, um “brasileiro” – ou seja, um português que
retornara enriquecido do Brasil -- que o inspirou como personagem em
alguns de seus romances e novelas, quase sempre em tom depreciativo.
Raptou Ana Plácido e viveram juntos, até que foram capturados pelas
autoridades e, depois, julgados. Naquela época, o caso emocionou a
opinião pública pelo seu conteúdo tipicamente romântico do amor
contrariado. Ana Plácido, inclusive, emergiu com ares de heroína porque,
em nome da paixão, jogara para o alto uma confortável existência
burguesa para viver uma vida de dificuldades e atropelos.
Depois de absolvidos do crime de adultério, Camilo e Ana Plácido
passaram a viver juntos. Ana Plácido levou para o casamento um filho,
teoricamente do seu antigo marido, e ainda teve mais dois de Camilo.
Quando o ex-marido de Ana Plácido morreu em 1863, o casal passou a viver
em sua casa, em São Miguel de Seide. Com família numerosa para
sustentar, Camilo passou a escrever a um ritmo alucinante, retirando o
seu ganha-pão dos livros e dos artigos publicados em jornais,
tornando-se o primeiro escritor da língua portuguesa a se
profissionalizar. Só a 9/3/1888 casou-se, oficialmente, com Ana Plácido. |
II |
Até aqui, todos os biógrafos davam Manuel
Plácido como filho de Camilo, mas Tavares Teles mostra que não há
evidências de que o romancista já tivesse algum relacionamento mais
sério com Ana Plácido ao tempo da concepção de seu primeiro filho. Para
o autor, há fortes razões para se suspeitar de que Pinheiro Alves fosse
estéril – até porque Ana Plácido foi mãe quando já se haviam passado
sete anos de seu casamento. Diz Tavares Teles que António Ferreira
Quiques estava no Porto quando Ana Plácido engravidou, lembrando ainda
que Camilo o denunciou como amante dela em carta posterior apenas 30
dias ao momento da concepção.
Tavares Teles recupera ainda um testemunho da época que dá Quiques
como pai da criança, “reproduzindo, com toda certeza, a convicção
generalizada na cidade, convicção que se terá formado ainda em 1857,
decerto fundada em confidências de Quiques, pois apenas por este motivo,
por a convicção se ter formado antes de Camilo ter aparecido em cena, se
compreende que nunca este fosse considerado, como seria natural que
tivesse sido, pai do filho da amante”.
Mas não se pense que Quiques fosse desconhecido de Camilo. Teriam
sido amigos do peito e de farras, a tal ponto que o escritor dedicou a
ele o romance Vingança, publicado em abril de 1858. Em favor de Ana
Plácido, acrescente-se o ódio que ela sempre sentira pelo primeiro
marido, o que está claro numa correspondência que deixou: “Sete anos
resisti ao cancro devorador da sociedade, sete anos me conservei presa
dum desejo mesmo de transgredir a lei de Deus, que me dava para marido o
último dos homens que eu aceitaria de bom grado (...)”.
Com base nessa confissão por escrito, obviamente, os biógrafos
concluíram que Ana Plácido rendeu-se à transgressão em 1857, ano da
concepção de Manuel Plácido. E, por extensão, chegaram à conclusão que o
pai seria Camilo. Acontece, porém, diz o biógrafo, que Camilo nunca
afirmou que Manuel Plácido era seu filho. E acrescenta: “Nunca pude
aceitar que o caráter de Camilo lhe permitisse recusar a paternidade de
um filho”.
Autor de vários e fundamentados estudos sobre Camilo, Tavares Teles
diz que as idéias que defende “foram familiares a gerações de leitores e
são inéditas apenas pela comezinha razão de estes não escreverem,
permanecendo os frutos das suas intuições ignorados e conservando a
virtualidade de serem novamente intuídos por outros leitores, que
continuaram a ler textos que mantiveram, década após década, os seus
mistérios, que afinal não o seriam, pois apenas por facilidade de
redação assim se poderiam qualificar”.
Outro episódio que Tavares Teles procura esclarecer é a respeito do
baile em que Camilo conheceu Ana Plácido, garantindo que isso se deu a
13/2/1849, num dia de Carnaval, em casa particular pertencente a uma
amiga da mãe dela. Tinha ele 24 anos e ela 17. Não se falaram, mas
Camilo registrou a passagem numa crônica de jornal. Só quase uma década
mais tarde é que Ana Plácido viria a se tornar o grande amor de sua
vida. |
III |
Formada por cinco ensaios biográficos,
esta obra procura contribuir para o esclarecimento de outros episódios
da vida do romancista que, por diversas razões, mantiveram-se no limbo
ou foram mal interpretados. Entre essas razões, estiveram pressões de
ordem social, inclusive pela alta burguesia do Porto da época. Por isso,
as revelações contidas neste livro tratam de mostrar até onde foi
possível esconder uma verdade, ou “várias” verdades, que envolveram
figuras de projeção nacional e o meio culto da época.
Na introdução que escreveu para este
livro, Tavares Teles reconhece que, em razão do número de obras que
descrevem e comentam a vida de Camilo e que foram publicadas nos últimos
115 anos, seria difícil que, neste começo de século XXI, ainda houvesse
oportunidade para alguma descoberta factual, por insignificante que
fosse. Mas não é assim que se dão as coisas porque, afinal, não é o
número excessivo de textos impressos que consagra uma verdade, embora o
nazista Joseph Goebells (1897-1945) soubesse muito bem por que dizia que
“uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
E são igualmente muitos os biógrafos,
historiadores e jornalistas que continuam a ganhar dinheiro com a
produção de livros rasteiros e apressados em que se limitam a repetir o
que lêem em obras impressas, sem se dar ao trabalho de enfrentar o pó
dos arquivos em busca de fontes originais. Ou seja, se um autor cometeu
um equívoco no século XIX, por esse método continuaremos a ler (e
aceitar) o mesmo erro no século XXI. Sem contar que, em todos os tempos,
nunca faltaram os investigadores por palpite, dos quais o santo
padroeiro sempre foi Teófilo Braga (1843-1924), como muito bem aponta
Tavares Teles.
Basta ver que foi necessário que este
articulista, também biógrafo, saísse do Brasil disposto a vasculhar os
papéis do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e do Arquivo Distrital de
Setúbal para “descobrir” que a verdadeira casa onde nasceu o poeta
Manuel Maria de Barbosa Du Bocage (1765-1805) em Setúbal não fica à Rua
de Edmond Bartissol, antiga Rua de São Domingos, como sempre se pensou,
porém mais abaixo, no Largo de Santa Maria com a Rua António Joaquim
Granjo, a antiga Rua das Canas Verdes. Portanto, quem se dedicar com
afinco a revirar papéis em arquivos, fatalmente, encontrará reparos a
fazer nas biografias anteriores.
Até porque as histórias de vida de nossos
poetas (e grandes personagens da História) sempre andaram mal contadas.
O diabo é que o chamado público-leitor, por má formação educacional,
está sempre disposto a comprar o livro de fácil digestão, com poucas
páginas, sem muitas notas de rodapé, repleto de historietas engraçadas,
mas sem comprovação documental, quando deveria começar pelo final para
saber exatamente quais arquivos o autor freqüentou. E assim continua a
comer gato por lebre, como provam as listas dos livros mais vendidos em
2008. |
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br |
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