I
Ainda está por ser estudada em profundidade a influência do historiador e cientista social português Joaquim Pedro Oliveira Martins (1845-1894) na cultura brasileira, mas o ensaio que o professor Paulo Franchetti dedica ao tema já oferece quase todas as pistas para quem tiver disposição de fazer esse trabalho de rastreamento, que não será fácil, já que essa sombra é imensa e chega até aos nossos dias. O ensaio “Oliveira Martins e o Brasil” faz parte do livro Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa, que Franchetti acaba de lançar, reunindo outros 16 textos que abrangem os três núcleos de interesse do seu trabalho de pesquisa - a poesia brasileira, o romance oitocentista português e o exotismo.
Como o autor informa na apresentação, os textos foram quase todos publicados anteriormente em revistas acadêmicas ou na Internet. De assuntos variados, o que os distingue é que foram escritos de olho num público amplo, não especializado, o que os torna leitura agradável, nada acadêmica.
Em “Oliveira Martins e o Brasil”, Franchetti alerta para o fato de que as idéias do historiador oitocentista ainda são parte da cultura brasileira “de uma forma muito mais intrínseca do que poderia parecer a uma primeira vista de olhos”. E cita como exemplo que, em 1995, quando do lançamento do filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, o escritor Antonio Callado (1917-1997), ao escrever uma resenha para o jornal Folha de S.Paulo, deixou explícita a sua admiração por História de Portugal, de Oliveira Martins.
Jornalista consagrado e autor de Quarup, hoje um clássico da literatura brasileira, Callado nunca foi historiador, o que talvez justifique as referências elogiosas que fez ao filme, um pastiche de todos os estereótipos que Oliveira Martins escreveu sobre a figura balofa do príncipe regente D. João e sua mulher ninfomaníaca, Carlota Joaquina. Sem qualquer rigor histórico, o filme não agradou não só por seu descompromisso com a História como por seu orçamento modesto que obrigou a diretora a excessivas cenas de estúdio.
Depois de Dom João V no Brasil: 1808-1821, obra máxima de Oliveira Lima (1867-1928), publicada em 1908, e do recente Carlota Joaquina na corte do Brasil, de Francisca L. Nogueira de Azevedo (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003), entre outros tantos livros compromissados com o rigor documental, não dá mais para levar a sério as imagens parciais construídas a partir da abordagem da vida pública e privada tanto de D. João como de Carlota Joaquina. Como se sabe, tudo isso fazia parte da propaganda subterrânea empreendida pelos republicanos que, como na França, o que pretendiam unicamente era desmoralizar e fazer ruir a monarquia a qualquer preço.
II
Não se faz aqui uma defesa do absolutismo monárquico, longe disso, mas apenas de uma maneira isenta e rigorosa do ponto de vista documental desse trabalho incessante que é a (re)interpretação da História. E Oliveira Martins nunca se preocupou com esse rigor. Talvez porque as circunstâncias da época em que viveu até o impediam. Se vivesse hoje, não lhe faltariam figuras bizarras de presidentes republicanos e seus ministros para expor ao ridículo.
Franchetti observa que, do ponto de vista de Oliveira Martins, a pujança de Portugal como nação não vai além do reinado de D. João II, atribuindo-se a senectude e decadência do país aos reinados de D. Manuel, D. João III e D. Sebastião. A Restauração de 1640, para Oliveira Martins, produzirá outra nação, igualmente sem força, fruto artificial das necessidades do equilíbrio europeu e, depois, reduzida a um protetorado britânico cujos feitores seriam os reis da dinastia de Bragança. Sem contar o interregno em que o general britânico William Beresford (1768-1854) comandou pessoalmente o país, depois da expulsão dos franceses.
Escarafunchando o pensamento de Oliveira Martins, Franchetti pergunta: como se processou a colonização do Brasil a uma época em que a metrópole morria? Para Martins, teria sido o caráter aventureiro dos paulistas que respondeu pela manutenção do gênio explorador português nesta parte do país, enquanto as demais regiões o perdiam pela vida ociosa, apoiada na escravidão e no luxo sem medidas. Talvez Oliveira Martins não suspeitasse que os paulistas dessa época teriam do português talvez apenas a fala, mas já um tanto arrevesada, e o espírito aventureiro ou heróico, pois eram de pele escura e cabelos lisos, como os paraguaios e os bolivianos de hoje. E sequer andavam no mato de botas, mas descalços.
Para Franchetti, foi Oliveira Martins quem, ironicamente, mais argumentos ofereceu ao discurso antilusitano e antibragantino que se organizou no Brasil pelo menos até os anos trinta do século XX. E que reaparece, por exemplo, em Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), e igualmente em A América Latina - males de origem, de Manoel Bonfim (1868-1932), que desenvolve a tese segundo a qual o mal de origem da América Latina seria o parasitismo das metrópoles, “perpetuado, depois, no parasitismo das classes dominantes”.
III
Franchetti lembra que Bonfim aproveita amplamente a visão de Oliveira Martins da história portuguesa, atribuindo os principais males do Brasil à (des)organização social da metrópole que teria sido transmitida à colônia. Mais: Bonfim usa não só a base ideológica como o próprio vocabulário de historiador luso, deixando de lado, porém, suas idéias racistas sobre a inferioridade congênita dos negros e a teoria segundo a qual os povos formados a partir do negro e do índio seriam incapazes para o progresso.
Para quem não recorda o vocabulário pitoresco de Oliveira Martins, Franchetti reproduz até um trecho de O Brasil e as colônias portuguesas (Rio de Janeiro, Topbooks, 1993), exatamente aquele em que o autor se refere à transferência da família real para o Rio de Janeiro em 1808: “Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século XVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o digerir mais à vontade (...)”.
Com isso, diz Franchetti, Bonfim, baseado numa autoridade insuspeita, por ser portuguesa, desenvolve o argumento de que boa parte dos males brasileiros resulta dos vícios da metrópole, inclusive, atribuindo à separação em 1822 a conchavos palacianos para manter privilégios parasitários, sem a participação popular. Diga-se de passagem que falar em participação popular, no começo do século XIX, é um tanto anacrônico. Mas que a independência brasileira não saiu de um movimento arquitetado pelas elites coloniais, como na América espanhola, é bem verdade.
IV
Franchetti encontra igualmente na obra de Gilberto Freyre (1900-1987) a gênese do pensamento de Oliveira Martins, embora não desenvolva a reflexão sobre que pontos, de fato, o antropólogo pernambucano absorveu as idéias do pensador luso. Não vai além por que considera o seu ensaio apenas o balanço parcial de um trabalho ainda inconcluso, o que prenuncia que deverá ser ele mesmo quem irá a fundo nessa tarefa de buscar as raízes do pensamento de Oliveira Martins na cultura brasileira.
Como se vê, se um instigante ensaio de 21 páginas já suscita tantas idéias e questionamentos, é por que estamos diante de um pensador de inegáveis méritos, capaz de transitar com segurança não só pela literatura como pela história comum de Portugal e Brasil e por vários de seus melhores autores, de Camilo Castelo Branco (1825-1980) e Almeida Garret (1799-1854) a Eça de Queirós (1845-1900) e Wenceslau de Moraes (1854-1929), de Gonçalves Dias (1823-1864) a José de Alencar (1829-1877), para terminar na poesia brasileira depois de João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Paulo Franchetti é professor titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou, entre outros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989) e Nostalgia, exílio e melancolia - Leitura de Camilo Pessanha (2001), além da edição crítica de Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995), a edição comentada de O Primo Basílio (1998), de Eça de Queirós, e Iracema (2007), de José de Alencar, a antologia Haikai (1990) e a novela O sangue dos dias transparentes (2003).
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