Que a proclamação da República a 15 de novembro de 1889, no Rio de Janeiro, não foi um ato dos mais brilhantes da nossa História nem todo brasileiro sabe. Por isso, não custa lembrar que foi, isso sim, um golpe militar muito mal organizado que teve tudo para dar errado, inclusive falta de apoio do povo que assistiu bestializado aos acontecimentos, sem entender o que se passava, segundo o testemunho isento de um republicano da época e ministro do governo provisório, Aristides Lobo.
Um exemplar da Gazeta de Notícias, de 16/11/1889, que tenho aqui ao lado já em frangalhos, conta, em sua primeira página, que por pouco a República não foi pelo ralo. E só não o foi por causa da má pontaria do barão de Ladário, ministro de D. Pedro II, que, intimado pelo general Deodoro da Fonseca a entregar-se, sacou do bolso um revólver e deu-lhe um tiro, que, porém, desviou-se. Em seguida, praças do exército que acompanhavam o general revidaram, ferindo o ministro, que seria transportado de maca para o palacete do Itamaraty, na Rua Larga de São Joaquim e, em seguida, para sua residência no Cosme Velho.
Eram assim aqueles tempos. A República nascia aos trambolhões pelas mãos de um general que, até então, havia jurado lealdade eterna ao monarca. E que, ao que tudo indica, só se decidiu por colocar a tropa na rua porque, militar mais velho e de mais alta patente, temia que outros mais jovens e afoitos tomassem à sua frente no movimento. Pela Rua do Ouvidor naquela sexta-feira, grupos de patriotas, como diz o jornal, ergueram vivas à república e alguns poucos distintos cidadãos proferiram discursos. A maioria, porém, estava mesmo era ansiosa pelas notícias sobre a sorte do imperador. Parece que foi só.
Naquele dia, as pessoas de poder e cultura, na maior parte, evitaram sair de casa. Ou, se saíram, logo retornaram porque nada funcionou. A maioria não viu com bons olhos aquela aventura, pois, como se sabe, a questão não é saber como começa um golpe de força, mas sim como acaba. Depois de 117 anos, não se pode dizer que a República brasileira, que conhecemos até aqui, tenha tido uma trajetória digna: pelo menos cerca de 38 anos foram de arbítrio, perseguições e atentados ao estado de direito. Sem contar que a anarquia militar tem sido a regra. Os tempos de hoje, de sossego na caserna, são uma bem-vinda exceção, aliás.
Entre as pessoas que acompanharam, céticas e preocupadas, o desenrolar dos acontecimentos de 1889 estava um funcionário régio, de 50 anos de idade, o escritor Machado de Assis (1839-1908). Era vizinho do barão de Ladário no Cosme Velho e não lhe deve ter passado em branco o estado de saúde do ex-ministro — atingido por tiros em quatro lugares. Que Machado de Assis não apoiava a República, pode-se facilmente deduzir das crônicas que publicou na imprensa carioca antes e depois do 15 de novembro de 1889.
Quem tiver interesse pelo assunto não deve deixar de ler Por um novo Machado de Assis, livro recém-lançado do professor inglês John Gledson, especialmente os ensaios “Bons dias!”, “O patriotismo de Machado de Assis” e “A semana 1892-3: uma introdução aos primeiros dois anos da série”. Com a percuciência que já exibiu em outros grandes trabalhos sobre o maior romancista brasileiro de todos os tempos, Gledson mostra que, embora cauteloso em assuntos de política, Machado nunca escondeu sua preocupação com a atuação exaltada dos republicanos.
Se a monarquia de D.Pedro II não havia sido o melhor dos mundos, Machado temia que a República pudesse ser muito pior. Dois anos depois daqueles acontecimentos no quartel-general que redundaram em quatro tiros em seu vizinho, ao começar a escrever crônicas dominicais para a Gazeta de Notícias, o romancista já testemunhara a confirmação de seus piores temores: como diz Gledson, tinha previsto com acerto que o federalismo só daria poder às oligarquias locais e destruiria toda esperança de democracia que pudesse ser abrigada por republicanos históricos e idealistas.
Sem o poder moderador do imperador, o Brasil encontrava-se na iminência de seguir o caminho de seus vizinhos hispano-americanos, retalhados e divididos em republiquetas sem expressão. Machado sabia que, bem ou mal, fora o poder monárquico que conseguira manter a unidade nacional, ligando pelo idioma regiões tão distantes umas das outras. Fora o centralismo da monarquia e seus poderes imperialistas, mais a intrepidez de um povo acaboclado, que atirara os espanhóis em direção ao Pacífico.
Agora, nas mãos dos militares, o Brasil vivia à matroca: não havia paz nem parlamento nem partidos. “Com o parlamentarismo tivemos longos anos de paz pública”, suspirava o cronista no dia 21/8/1892. Afinal, o primeiro ano da República fora marcado por uma febre de negócios e de especulação financeira, o chamado Encilhamento, como resultado de fortes emissões e facilidades de crédito. Muita gente perdera dinheiro, enquanto alguns espertalhões se locupletaram com os favores do novo poder.
No início de 1891, estourou a crise, com a falência de estabelecimentos bancários e empresas. Eleito presidente por um Congresso manietado, Deodoro logo entrou em crise com congressistas que se recusavam a lhe conferir maiores poderes. Fez o que todo ditador faria: fechou o Congresso, prometendo novas eleições. Sem condições de governar, renunciaria a 23/11/1891, deixando o posto para o seu vice, o general Floriano Peixoto, que até então nada mais fizera do que conspirar contra o titular. Foi pior. Floriano, em abril de 1892, prendeu mais de 150 pessoas, encarcerando algumas e desterrando outras, disseminando o “terror político”, na definição de Machado.
O resultado foi que, em fevereiro de 1893, estourou no Rio Grande do Sul uma guerra civil entre federalistas e legalistas, ambos os grupos liderados por caudilhos no pior estilo latino-americano. Por último, no auge da anarquia militar que caracterizou a república nascida da espada, o almirante Custódio de Melo, que fora decisivo na demissão de Deodoro, pensava agora mandar Floriano para casa. Içou a bandeira da revolta na baía da Guanabara, mas o que conseguiu foi endurecer ainda mais o governo de Floriano.
Diz Gledson que é provável que Machado de Assis odiasse não só Deodoro como Floriano, “o primeiro por causa da corrupção associada ao Encilhamento; o segundo pela intolerância e pelas tendências ditatoriais”. Para o escritor, a cisão em si e a ameaça de guerra civil eram mais importantes do que quaisquer outras questiúnculas.
Quem já leu Machado de Assis conhece bem seu pessimismo, resultado provavelmente de suas leituras de Arthur Schopenhauer. O escritor sabia que quem mandava, de fato, por trás dos militares que haviam dado um pontapé no traseiro de D.Pedro II, mandando-o para a Europa, eram os fazendeiros de São Paulo e Minas Gerais e uma classe de proprietários, comerciantes e atravessadores do Rio de Janeiro. O que o preocupava, porém, eram as rupturas no seio dessa oligarquia, que poderiam levar a um colapso da ordem e à ditadura mais deslavada.
Sabia que os homens nunca compartilham o poder de boa vontade: tenham o que tiverem, quererão sempre mais, advertiu numa crônica de 26/2/1893. Por isso, imaginava que um sistema representativo seria sempre o menor dos males. Em suas crônicas desse período e até mesmo em seu romance Esaú e Jacó, publicado em 1904, não disfarça a nostalgia que sente do antigo regime que permitia, pelo menos, aos governos mudar pacificamente e com alguma aparência de ordem. “Assim aconteceu até 1889 com a monarquia e não há razão para que não aconteça depois de 1889, com a República”, escreveu.
Até então, o mundo, para Machado de Assis, parecera sempre mais estável. Fizera carreira no funcionalismo, na maior parte do tempo no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, chegando a ocupar o cargo de oficial de gabinete do ministro, em 1881. À época da proclamação da República, fora nomeado diretor da Diretoria do Comércio, um cargo altamente honroso para quem era neto de escravos alforriados.
Na verdade, não tinha muito do que se queixar da monarquia, que lhe abrira as portas para a ascensão social. Com a República, esse mundo fora virado às avessas: por ter apoiado na véspera um ou outro militar, muitos perdiam o emprego. Portanto, não seria recomendável ao cronista Machado de Assis escrever com desenvoltura, sem travas no pensamento. Como assinala Gledson, Machado escrevia para um mundo que cada vez mais detestava, à medida que envelhecia.
John Gledson (1945) é doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Princeton e aposentou-se pela Universidade de Liverpool. É autor de pelo menos mais dois livros excepcionais, Machado de Assis: impostura e realismo e Machado de Assis: ficção e história, além de ter organizado uma coletânea de contos machadianos, Contos: uma antologia. Publicou ainda livros sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade e outros autores brasileiros. |