Qualquer que seja a antologia que se faça de contos de Machado de Assis (1839-1908) — e quaisquer que sejam os critérios —, nada há de dar errado. É claro que nem todos os contos de Machado de Assis — hoje reconhecido como o maior romancista brasileiro de todos os tempos — são de primeira grandeza e há até alguns que são bem frouxos, escritos ao correr da pena para publicação imediata em revistas de duração efêmera em troca de recompensa pecuniária e que, se dependessem da vontade do autor, continuariam imersos no olvido dos arquivos. Mas há muitos que continuam brilhantes e a desafiar o tempo. E que, mesmo traduzidos para outras línguas, não perdem o viço dos primeiros anos.
É o caso, por exemplo, dos treze contos enfeixados neste livro destinado ao público russo, que, com certeza, pouca familiaridade tem com as literaturas de expressão portuguesa. São contos da fase realista de Machado de Assis, que começa com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881 , e inclui notáveis livros de contos, como Papéis Avulsos (1882), Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896) e Páginas Recolhidas (1899), dos quais foram extraídos os textos reunidos neste livro.
A primeira fase é marcadamente romântica e seus livros mais representativos — os romances A Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) — já pouco atraem o leitor mais sofisticado, embora neles já se possa perceber a preocupação do autor em não construir personagens lineares, temperando a sua ação com boa dose de reflexão.
A segunda fase marca a disposição do autor tanto como romancista como contista de buscar temas em que pudesse refletir sobre o espírito humano e suas fraquezas (a crueldade, a ingratidão, a deslealdade, o adultério, a soberba, a mesquinharia, a corrupção, a sensualidade e outros demônios da alma). Para tanto, quaisquer historietas ou mesmo ações banais serviam. Porque o que importava era mostrar que a mais eficaz consolação em toda desgraça é descobrir que sempre há mais desgraçados do que nós. Um remédio que, como dizia Arthur Schopenhauer (1788-1860), autor de cabeceira de Machado de Assis, encontra-se sempre ao alcance de todos.
Nisso Machado de Assis se aproxima de Dostoievski (1821-1881), seu contemporâneo, embora seja pouco provável que o russo possa ter exercido qualquer influência sobre o brasileiro, ainda que este numa crônica publicada em 1889 tenha citado o romancista eslavo. É que ambos refletem o pensamento pessimista do século XIX, de que nada de grandioso se pode esperar do homem, como dizia Dostoievski. Olhando agora para o que foi o século XX, de fato, esse pessimismo não era nada fortuito.
Talvez por isso esses grandes autores ainda inspirem tanto interesse nos dias de hoje, embora tratem de assuntos bem pouco atuais e suas posições políticas tenham atualmente bem poucos seguidores. Machado de Assis, por exemplo, era um empedernido monarquista, embora fosse neto de escravos africanos alforriados, enquanto Dostoievski defendia um pan-eslavismo imperialista. Como explicar que sejam ainda hoje lidos com tanta sofreguidão?
É que os temas de que tratam, embora ligados à crônica política e policial da segunda metade do século XIX, são de uma atualidade surpreendente e permanente. Afinal, tanto os romances como as narrativas curtas de Machado de Assis e Dostoievski constituem tratados da psicologia humana. E ninguém pode deixar de lê-los sem que faça um exame da própria consciência. Afinal, o homem continua o mesmo, ou seja, uma criatura intrinsecamente maligna, sempre assolada por baixos instintos, capaz dos atos mais vis.
Esses demônios da alma, aliás, assolam o homem desde os mais tenros anos, como Machado de Assis procura mostrar em “Conto de escola” (Várias Histórias) em que Pilar, um “pobre estudante de primeiras letras”, ao facilitar uma lição a um colega mais atrasado em troca de uma pratinha que, já à primeira vista, lhe “fez pulsar o sangue no coração”, é denunciado ao professor por outro colega. No final, os dois sofrem um castigo exemplar que serviria para preparar Pilar para o mundo dos homens, conhecendo desde cedo as vantagens e desvantagens da corrupção e da delação.
Em “Verba testamentária”, de Papéis Avulsos, Nicolau manifesta desde menino a vocação para a inveja, que o leva a destruir os brinquedos dos outras crianças. Adulto, vai levar pela vida afora o mesmo impulso agressivo, neurastênico, que o faz passar por um casamento fracassado e o condena a uma velhice de solidão, a ruminar sua bílis, “continuamente verde, irritado, olhos vesgos”.
Em “Teoria do medalhão”, publicado originalmente na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1881, e em Papéis Avulsos, Machado conta a história de um pai que, após o jantar de aniversário de seu filho, chama-o para uma conversa. Discutem o futuro do filho e o pai passa a aconselhá-lo que, para garantir a recompensa de seu esforço, ele deve, além de sua profissão, cultivar o "ofício" de medalhão, um “ofício” que requer uma pessoa que não pense muito nem tenha idéias próprias, que viva para ser popular e chamar a atenção.
Esse “ofício” exige uma pessoa que quer ter o seu nome lembrado, mas sem muitos esforços, parecendo ser culto, sábio, agradando a todos, para se mostrar simpático, quando, na verdade, não o é. Para tanto, não pode exibir idéias que divirjam das demais, deve ser conivente com a maioria das pessoas, ser tido como necessário em todos lugares, eventos sociais e festas. Como não associar a figura do medalhão aos nossos políticos de hoje, seres invertebrados que usam as ideologias políticas ao bel prazer de suas conveniências pessoais?
Já “O Segredo do Bonzo”, também de Papéis Avulsos, é narrado em primeira pessoa e tem como subtítulo "capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto". Para a perfeita compreensão do texto, é preciso saber que o viajante e mercador português Fernão Mendes Pinto (c.1510-1583) escreveu Peregrinação (1614) em que narra a sua vida aventurosa pelo Oriente, onde, durante cerca de vinte anos, percorreu os mares, da Arábia ao Japão, passando pela Etiópia, Índia, Tartária, Samatra e outros pontos longínquos. E que por contar tantos fatos exóticos e fabulosos passou a ser considerado um grande mentiroso.
O conto de Machado de Assis surge da narração de um fato absurdo, mas que possui um profundo sentido: a virtude e o saber têm existências paralelas — uma no sujeito possuidor, outra, no espírito de quem ouve ou contempla, pois "não há espetáculo sem espectador". Para o narrador do conto, "uma coisa pode existir na opinião sem existir na realidade" e vice-versa. Por isso, "não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos". Portanto, o conto analisa a capacidade que alguns homens têm de persuadir o próximo. E se dar bem na vida.
Em “Conto alexandrino”, de Histórias sem Data, ambientado na Alexandria dos Ptolomeus, em nome da ciência, um cientista mata lentamente milhares de ratos, procurando comprovar a teoria de que, ao beber o sangue de um animal, o homem adquiria suas características morais. Ao tomar o sangue de uma aranha, por exemplo, o homem desenvolveria o dom da música e, ao tomar o sangue de ratos, viraria ratoneiro, ou seja, ladrão. Stroibus e Pítias, os dois cientistas, aplicam, um no outro, doses de sangue de rato e tornam-se ladrões, roubando, primeiro, idéias um do outro e, depois, até manuscritos da Biblioteca de Alexandria. Flagrados, são condenados à morte.
Na prisão, como os demais, seriam entregues a experiências, sempre em nome da ciência. Escrito em pleno apogeu das teorias evolucionistas de Charles Darwin (1809-1882), discípulo e continuador da obra de Lamarck (1744-1839), este conto de Machado de Assis é uma sátira ao amor cego à ciência, ao mostrar que a mesma teoria aplicada aos animais pode ser aplicada ao homem de tal modo que ele acaba torturado. De certo modo, o autor antecipa, de modo premonitório, o terror nazista e as experiências do médico alemão Joseph Mengele (1911-1979) no campo de extermínio de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial.
Em “Evolução”, incluído em Papéis Avulsos, Machado de Assis expõe o relato de Inácio a respeito de seu amigo Benedito, alguém de caráter semelhante ao protótipo do conto “Teoria do medalhão”, um tipo capaz de usar as pessoas e as idéias alheias na medida de seus interesses. Como se vê, nestes e nos demais contos machadianos é difícil encontrar personagens que revelem pureza de alma, bondade, desprendimento, vontade de ajudar o próximo. Quando isso ocorre, há sempre sentimentos subalternos a mover tais atos.
Ainda que devoto leitor da Bíblia, Machado de Assis nunca foi religioso. Tampouco disfarçou o ateísmo de quem não acreditava na existência de um Deus pessoal, que pudesse distribuir castigos e recompensas e salvar o homem de um destino trágico. Até a natureza é vista por ele como inimiga, pois nada contribui para evitar o sofrimento humano. É isso que o leva a olhar a humanidade com uma sabedoria melancólica, pois tem consigo que o que guia os passos do homem é mesmo o azar, o caos do Universo, que tanto pode levá-lo à consagração como ao fracasso.
Essa é a mensagem que deixa em “A cartomante”, conto de Várias Histórias em que Camilo, o protagonista, com base no que lhe dizem as cartas, parte com a paz de espírito restituída ao encontro de um amigo, certo de que este nada desconfia dos amores ilícitos de sua mulher com ele. Ao descobrir o erro das cartas, seria tarde demais.
Assim é Machado de Assis: irônico, pessimista, melancólico. Como o leitor há de perceber nos contos aqui reunidos, a grandeza de Machado de Assis está em sua capacidade de ir ao ponto nevrálgico, reservando sempre desenlaces enigmáticos, jamais suspeitados por quem o lê. É por isso que para conhecê-lo não basta uma leitura, mas várias, pois são muitos os disfarces e armadilhas que espalha pelo caminho. Talvez venha daí a sedução que exerce ainda nos leitores de hoje. E que tradução nenhuma pode apagar, o que faz com que seja fácil prever que cada vez mais terá leitores por todo o mundo.
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