I
Com quase dois anos de atraso - o que não é raro, tratando-se de publicações académicas em todo o mundo -, saiu à luz o volume que reúne as 15 comunicações apresentadas ao Colóquio Internacional Leituras de Bocage (séculos XVIII-XXI), organizado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), por ocasião do bicentenário da morte do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), a 28 de Outubro e a 24 e 25 de Novembro de 2005.
Organizadora do livro e autora da introdução, a professora Maria Luísa Malato Borralho, da FLUP, assina também um apurado ensaio, "Os sons, pincéis febeus. Para uma retórica da música e do sublime", em que destaca o inegável gosto de Bocage em inventar palavras, mots-valises, "combinando sinestesicamente características de sensações distintas", muito antes de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Mia Couto, para citar alguns autores contemporâneos que se destacaram por produzir uma literatura permeada de palavras inventadas.
E lembra que no poeta "o som e o horror tornam-se horríssonos; o penedo que provoca o naufrágio é navífrago; o quadro trágico da morte da Natureza no Inverno é trágico-invernoso; o brilho do ouro é aurifulgente; o que tudo faz brilhar é omnifulgente; o queixume doce é dulcíssono".
II
Já a professora Maria de Fátima Marinho, também da FLUP, em "Bocage revisitado", procura preocupar-se com a figura de Bocage e o modo como ela foi romanceada, já que a recriação do passado é absolutamente impossível, pois "a ideologia do autor está sempre subjacente a qualquer enunciado, por maior que seja a preocupação de rigor e objectividade". Embora essa tenha sido uma preocupação oitocentista, obras do século XX ainda incorrem nesse logro - e, se calhar, algumas do século XXI também.
A professora cita como exemplo A verdadeira paixão de Bocage (1926), de Artur Lobo d´Ávila e Fernando Mendes, em que os seus autores se preocupam em recuperar a "cor local", bem na linha dos ditames de Herculano, que tinha "a preocupação de legitimar o discurso, transformando-o numa réplica do real, tanto mais ingénua, quanto mais, aparentemente, perfeita".
Entre outros exemplos, Maria de Fátima cita Bocage: Episódios de sua vida (1936), de Rocha Martins, em que o autor segue na esteira de d´Ávila e Mendes, "realçando a conjuntura política, a Nova Arcádia, a realização de outeiros ou o fanatismo do confessor de D. Maria I". Em ambos os livros e outras tentativas biográficas, diz a ensaísta, a transcrição de poemas, à falta de documentos de arquivo, parte de uma leitura biográfica dessas peças, "não havendo qualquer transposição para um nível secundário de análise".
Por fim, ressalta que, em 2002, José Jorge Letria, com Já Bocage não sou, assume um tipo de narração que se afasta consideravelmente do utilizado no romance histórico tradicional, lembrando que o processo de autobiografia fictícia pretende atingir a verdade através de uma falsa premissa, uma vez que é sempre uma transposição literária de algo que só idealmente seria verdade.
Com o uso da primeira pessoa do singular neste tipo de texto, diz Maria de Fátima, a subjectividade ganha foros de cidadania, uma vez que a voz do narrador se anula para, ficticiamente, ceder a palavra ao protagonista. De facto, como observa a autora, o uso da primeira pessoa tem como consequência o aparecimento de considerações demasiado íntimas para que possam ter pretensões a verdades absolutas.
III
Por sua vez, o professor J.Cândido Martins, da Universidade Católica Portuguesa, de Braga, em "Ler e ensinar Bocage hoje: para o estudo da recepção de Bocage", faz um percurso alentado de boa parte do que se publicou a respeito do vate setubalense, ressaltando a mais recente contribuição ao desenvolvimento dos estudos bocageanos que se deu em 2004 com o início da publicação da quarta edição da Obra Completa de Bocage, pelas Edições Caixotim, do Porto, a cargo de Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos, de Setúbal, depois das edições de Inocêncio Francisco da Silva, Teófilo Braga e Hernani Cidade.
Até o momento, apenas três dos sete volumes projectados saíram à luz, mas, como observa Cândido Martins, já é possível ressaltar os méritos da edição dirigida por Pires. Entre outros méritos, afirma, a edição tem o de acrescentar textos inéditos de Bocage e actualizar e uniformizar os critérios de transcrição textual, ser uma edição cuidadosamente anotada, que pensa no grande público, e de vir em cada volume sempre acompanhada por importantes estudos introdutórios.
IV
O próprio Daniel Pires comparece em Leituras de Bocage com "Inocêncio Francisco da Silva editor de Bocage" em que considera a publicação da obra completa de Bocage em 1853, por iniciativa de Inocêncio, como o preenchimento de uma lacuna, 48 anos depois da morte do poeta, já que as tentativas anteriores haviam sido permeadas pela atribuição abusiva de poemas, por incúria na transcrição e pelo oportunismo de alguns editores pouco escrupulosos.
Pires traça ainda um paralelo entre Bocage e o seu mais notável editor, lembrando que ambos foram vítimas do descaso do poder público português. Como se sabe, Bocage morreu na miséria e os seus restos mortais se perderam numa vala comum, que abrigou também os de Nicolau Tolentino e António Lobo de Carvalho. Já Inocêncio só muito tardiamente, já próximo da cegueira, teve uma redução de horário no seu emprego estatal para cuidar do seu Dicionário Bibliográfico Português, obra ainda hoje fundamental para os pesquisadores. Sem contar, diz Pires, que o Estado português nada fez para impedir que a extensa biblioteca de Inocêncio fosse desmembrada e posta em leilão.
V
Num dos mais interessantes ensaios deste livro, Marie-Hélène Piwnik, da Universidade de Paris-Sorbonne/Paris IV, "Racismo e anti-semitismo em Bocage?", faz um estudo de uma faceta pouco explorada até aqui do vate setubalense: o racismo e um certo anti-semitismo que são flagrantes em alguns dos seus sonetos. A estudiosa, porém, lembra que é preciso situar o contexto em que Bocage desenvolveu este tipo de poesia, a uma época em que essas opiniões eram menos chocantes do que aquilo que se pode pensar hoje.
Depois de fazer um retrospecto dos preconceitos colectivos mágico-religiosos que marcaram o século XVIII, a professora lembra que o jovem Bocage chegou ao Estado da Índia "cheio de preconceitos, de facto, normais na época", colocando a sua verve a serviço de uma sátira convencionada que recorre ao desprezo à mestiçagem.
Mais maduro e de volta à Corte, o poeta encontra na figura do judeu ou do cristão-novo também um motivo já consagrado na literatura da época. Não se pode, é verdade, deixar de reconhecer o carácter racista de muitos poemas bocageanos, mas é preciso também olhar o tempo com a devida indulgência, para que não se caia em anacronismos. É a mensagem que Marie-Hélène Piwnik deixa no seu ensaio.
VI
Em extenso trabalho, "Já Camões não sou! A impossibilidade de centralidade para Bocage no campo literário no século XIX", Elias J.Torres Feijó, da Universidade de Santiago de Compostela, observa que ainda hoje somos devedores da construção da história da literatura que se deu no século XIX e dos interesses que a permearam. E lembra que autores como Bocage e outros, a princípio, foram excluídos do Paraíso literário português porque não atendiam aos interesses de então em favor da construção da nacionalidade lusa. Para Torres Feijó, Bocage foi vítima da lógica positivista e do programa político e historiográfico de Teófilo Braga, "cujo apriorismo necessariamente o conduzia a nom singularizar em Bocage nenhuma das virtudes nacionais que esse programa político e de acçom perseguia".
Segundo o professor, tanto Teófilo Braga quanto Herculano, Garrett e Luiz A. Rebello da Silva valorizaram Bocage, mas sem deixar de defini-lo como êmulo sem fortuna de Camões, carente da sua grandiosidade e fruto de uma época que não lhe permitiu desenvolver como podia o seu talento. Dessa maneira, trataram de assinalar o caráter relativamente ilegítimo em que se assentaria a popularidade de Bocage.
Afinal, os textos de Bocage tidos por obscenos ou pornográficos sempre funcionavam contra a sua aceitação no campo literário da altura. E, naturalmente, um professor de literaturas, como Teófilo Braga, ligado aos meios oficiais, sempre se sentiu incómodo em avalizar para os seus alunos e leitores a obra de um "poeta maldito". Diz Torres Feijó que, para Braga, Herculano, Garrett, Rebello da Silva e outros responsáveis pela formação do cânone literário português, Camões sempre gozou de popularidade e reconhecimento merecidos. Bocage, não. E isso só seria revertido muito tempo depois.
O volume Leituras de Bocage ainda traz textos de Francisco Ribeiro da Silva, Maria Ivone de Ornelas de Andrade, Miguel Benítez, Jean-Charles Darmon, José Jorge Letria, Cristina Marinho, Ofélia Paiva Monteiro, Florence Nys e deste articulista.
VII
PS. A propósito do artigo "Brasil-África: aproximações", publicado n´O Primeiro de Janeiro, do Porto, de 8/10/2007, recensão do livro Brasil-África: como se o mar fosse mentira, de Rita Chaves, Carmen Secco e Tânia Macêdo (orgs.), recebi por correio eletrónico a mensagem da professora Yeda Pessoa de Castro, que agradece as referências elogiosas que fiz ao seu trabalho incessante de mais de trinta anos na tentativa de mostrar aos nossos linguistas e filólogos que o português brasileiro descende também da família de línguas Niger-Congo.
"Parece que, agora, como verifiquei em recente congresso internacional da AILP no Rio de Janeiro, estamos vencendo os preconceitos históricos que se instalaram na nossa academia contra as línguas africanas, desprezando os seus 4 milhões de falantes que foram trazidos para o Brasil", disse a professora Yeda, doutora em Línguas Africanas, a única em sua especialidade no Brasil.
Do escritor e pintor moçambicano João Craveirinha, sobrinho do poeta José Craveirinha (1922-2003), também recebi mensagem em que diz que o tema abordado no artigo é, de facto, pertinente, indo também ao encontro do preconizado pela Unesco sobre o resgate das línguas em extinção no mundo.
Craveirinha tem uma lista de algumas línguas levadas pelos africanos (escravos) para o Brasil das quais algumas são bantas como as dos baKongo (língua kiKongo), do antigo Império da Lunda (Angola/Kongo/Zambia), o kiM´bundo e kiUmbundo, kiOko, e da Costa Oriental de África (Moçambique) como o Yao (Ajaua), êMakhwa, kiMakonde, guiTonga, xiLengue etcetera. "Esses dados existem em arquivos no Brasil até com imagens da época", acrescentou Craveirinha, ressaltando que, identificados os grupos étnicos desses africanos convertidos à escravatura, seria fácil saber a língua, visto ainda existir a maioria desses idiomas, desde a Mauritânia, Senegal, Guinés, Gana, Nigéria, Serra Leoa, Benin, Camarões, Congo, Lunda e Moçambique".
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