Muita tinta já se gastou para discutir o pensamento político de Fernando Pessoa (1888-1935). Mas nenhum crítico foi tão a fundo como o italiano Brunello De Cusatis, professor responsável pela cátedra de Literaturas Portuguesa e Brasileira da Universidade de Estudos de Perúgia, que publicou pela Edições Caixotim, do Porto, Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa: uma visão de conjunto. Num ensaio denso, De Cusatis mostra à exaustão que Pessoa nunca foi fascista e muito menos salazarista, apesar do que insinuaram alguns críticos que se mostraram incapazes de distinguir os muitos matizes do pensamento político do maior poeta português do século XX.
Antes, porém, de procurar definir o perfil político do poeta, o autor tratou de esclarecer tanto quanto isso seja possível o pensamento gnóstico e esotérico de Pessoa, pois seria impossível compreender suas posições políticas sem procurar primeiro desvendar essa sua face oculta. Não é essa uma tarefa fácil, até porque o esoterismo de Pessoa é de tal maneira complexo e diversificado que mesmo um especialista em ciências ocultas teria dificuldades para resumi-lo no espaço de um breve ensaio, como admite De Cusatis.
Além disso, como se sabe, o que Pessoa transmitiu nessa área o foi por meio de considerações e reflexões que podem ser encontradas apenas ao longo de alguns artigos e cartas a amigos ou mesmo em poemas que a crítica já definiu como esotéricos ou rosacrucianos. De seu espólio constam fragmentos, esboços e projetos de livros sobre o tema, “alguns quase acabados, mas sempre incompletos”, como diz De Cusatis, que já freqüentou com assiduidade os papéis pessoanos da Biblioteca Nacional de Lisboa.
De antemão, o que o crítico deixa claro é que, ainda cedo, Pessoa afastou-se da Igreja Católica, influenciado por um anticlericalismo comum a muitos outros intelectuais da época. Por algum tempo, o poeta flertou com o paganismo, tendo até imaginado um “movimento neopagão português”. Depois, em razão de sua atividade como tradutor, entrou em contato com as idéias da teósofa Annie Besant. Para De Cusatis, é provável que nas teorias de Annie Besant sobre os “Mensageiros da Loja Branca” e sobre o advento de um novo “instrutor do mundo” Pessoa tenha encontrado uma legitimação para a sua concepção do Quinto Império. A partir do seu interesse pela teosofia, não teria sido difícil a Pessoa cair nas práticas ocultistas e espíritas.
Depois de uma fase em que mergulhará no estudo das chamadas ciências ocultas, que coincide com o seu namoro com Ofélia, sua colega de escritório na Baixa, Pessoa passará, na parte final de sua vida, a um cristianismo gnóstico. Para De Cusatis, são esses aspectos que explicam o motivo pelo qual Pessoa definiu-se numa carta a Adolfo Casais Monteiro como “um nacionalista místico, um sebastianista racional”.
Isto posto, o crítico, na segunda parte do seu ensaio, dedica-se a esquadrinhar os caminhos que formaram o pensamento político pessoano, a partir de um componente excessivamente nacionalista que se valeu das antigas profecias de Bandarra, das descrições hiperbólicas de Camões e de todo o conteúdo mítico construído sobre a história das Descobertas. Num escrito de 1925, citado por De Cusatis, Pessoa chega ao exagero de afirmar que Portugal criou “o mundo moderno”.
Para quem imaginava isso, não seria difícil concluir que Portugal devia esse pretenso período de auge à monarquia absolutista que conduzira os destinos do país àquela altura e, portanto, tanto a monarquia constitucional que a sucedeu e, ainda mais, a república parlamentarista que estava em voga seriam reflexos da “decadência” portuguesa. Foi mais ou menos isso o que intuiu no artigo “Como organizar Portugal”, de 1919, como se observa no roteiro traçado por De Cusatis.
Como boa parte dos pensadores da primeira metade do século XX — não foi à toa que nesse período floresceram os totalitarismos de direita e esquerda —, Pessoa sempre teve um profundo desprezo às massas, o que o levou a posições antidemocráticas e até antipartidárias. Sebastianista, sempre idealizou um salvador da pátria, o que fica claro na ode dedicada ao general Sidónio Pais, a quem chamou de “Presidente-Rei”, comparando-o ao Encoberto, ao Desejado das gentes.
É de imaginar a desolação que teria tomado conta de Pessoa quando a 14 de dezembro de 1918 Sidónio Pais foi assassinado. Depois da morte do “Presidente-Rei”, haveria o caos, ao menos na visão conservadora de Pessoa: a república parlamentar contou com 29 governos no espaço de sete anos, de 1919 a 1925. Uma instabilidade que favoreceria o golpe de estado de 1926, que acabaria por abrir caminho para a ditadura do professor Oliveira Salazar que mergulharia Portugal nas trevas até 1974.
Se era anticatólico e defensor de regimes autoritários, ainda que não totalitários, é óbvio que Fernando Pessoa, apesar de seu pensamento conservador, não pôde ver com bons olhos a ascensão do professor Salazar e a chegada do Estado Novo em 1933, como fica claro no opúsculo “Interregno: defesa e justificação da ditadura militar em Portugal”. É certo que, nesse texto, o poeta defende uma ditadura transitória, mas não a ditadura de Salazar e seus acólitos.
Por isso, De Cusatis considera ingênua e inútil a tentativa de alguns críticos de defender Pessoa da acusação de fascismo e salazarismo. Não o podia ser fascista nem salazarista, diz o crítico, devido à respectiva natureza dos dois regimes, substancialmente de “massa”, de caráter católico-romano e portador de uma “autodisciplina dos espíritos” que ele não podia de forma alguma aceitar.
Há 24 anos, trilhei por essas mesmas sendas que o professor De Cusatis andou em busca do âmago do pensamento pessoano, como pode constatar quem percorrer a bibliografia deste livro. Revisitando o que escrevi àquela época, descubro que o professor chegou a conclusões semelhantes: se Pessoa não nutria simpatias pela ditadura salazarista, advogava, por outro lado, outra espécie de regime forte, mas com Estado mínimo, sem a intervenção estatal na vida do indivíduo e sem a coação partidária.
Quem o definiu com precisão foi o professor Raúl Morodo, catedrático de Direito Constitucional na Universidade Complutense de Madrid e ex-embaixador da Espanha em Portugal, que o considerou “um anarquista utópico de direita”, como lembra De Cusatis. Uma definição que já serviu para explicar também o pensamento do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre.
Se o meu ensaio que saiu em 1986 num livro editado pela Fundação Cultural Brasil-Portugal, do Rio de Janeiro, com os vencedores do Prêmio Fernando Pessoa e foi lido pelo professor De Cusatis na Biblioteca Nacional de Lisboa, serviu para alguma coisa, fico-lhe grato. Serviu também para que o escritor Antonio Tabucchi, do alto de sua empáfia, tentasse desqualificar o trabalho do professor De Cusatis num artigo publicado no Corriere della Sera, de Roma, a 31/5/2001, acusando-o de se basear em estudiosos menores e desconhecidos (“un certo Edoardo Frias o un ignoto brasiliano, Adelto Gonçalves”), entre outros ataques.
Por trás de tudo, sabe-se agora, o que estava em jogo eram questiúnculas paroquiais, além de um certo despeito de Tabucchi, que, provavelmente, imagina que seja o único italiano autorizado a escrever sobre Pessoa. Tanto que a publicação do artigo no Corriere della Sera deu-se uns meses antes dos concursos a catedrático a que o professor De Cusatis se submeteu na Itália, com a mulher do próprio Tabucchi, Maria José de Lancastre, como integrante do júri. Por questões de foro íntimo, De Cusatis preferiu até agora não contestar as acusações de Tabucchi, mas chegou a deixar a resposta pronta.
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