A única biografia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) está de volta às livrarias, 13 anos depois de seu lançamento. E o pior é que o seu autor, José Maria Cançado (1952-2006), jornalista, crítico literário e doutor em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, já não está entre nós, falecido em julho de 2006, pouco depois do lançamento da segunda edição de sua obra. O trabalho é o resultado de dois anos de pesquisa durante os quais entrevistou mais de cem pessoas e consultou centenas de jornais e revistas em busca de rastros do poeta.
Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade, segundo o autor, é uma tentativa de reconstruir a vida daquele que é considerado o maior poeta brasileiro do século XX, mostrando como pano de fundo a história do Brasil e seu panorama cultural durante várias épocas. Jornalista de formação, que cuidou da redação da extinta revista Leia Livros em São Paulo, Cançado fez um texto que nada tem de ranço acadêmico, sem as obrigatórias notas de rodapé ou de fim.
Com isso, obteve uma escrita fluente e extremamente acessível e bem construída, já que seu compromisso profissional durante a feitura do texto era apenas com a Fundação Bolsa Vitae, que financiou a sua pesquisa, e não com as exigências de uma banca acadêmica. Isso já não se deu no texto que produziu em 2003 para o seu doutoramento na área de Literatura Brasileira em que, por força das regras acadêmicas, teve de se valer das citações para escrever Memórias videntes do Brasil: a obra de Pedro Nava (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003). Nada disso, porém, invalida ou depõe contra uma ou outra obra porque ambos os textos são fiéis ao registro histórico, sem perder o viço e a leveza da prosa ficcional.
Em Os sapatos de Orfeu, Cançado dividiu a obra em três grandes seções ou livros: a primeira, que cobre o período que vai de 1886 a 1930, incluindo a origem familiar do poeta; a segunda, de 1930 a 1950, que recupera as relações pessoais, profissionais e políticas de Drummond paralelamente à publicação de seus primeiros poemas em jornais e revistas e em livros; e a terceira, de 1950 a 1987, a época de seu amadurecimento como poeta até o ano de sua morte.
A primeira parte inclui ainda a aproximação do jovem Carlos Drummond de Andrade em Belo Horizonte a um grupo de intelectuais paulistas que estava de visita à capital mineira e às cidades históricas de Minas Gerais. Entre eles, destacavam-se Mário de Andrade e Oswald de Andrade, os corifeus do movimento modernista brasileiro. Para reconstituir esse encontro, porém, Cançado valeu-se da memória de Pedro Nava, que deixou suas lembranças dessa noite no livro Beira-Mar. A partir desse encontro, tem início uma intensa e duradoura troca de cartas entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Numa das cartas, Mário de Andrade teve a oportunidade de ler em primeira mão um poema drummondiano de 1924, “No meio do caminho”, ainda hoje um dos mais conhecidos da Literatura Brasileira.
Drummond viveu até idade avançada, mas sempre teve a preocupação de manter sua intimidade praticamente indevassável, dando poucas entrevistas a jornalistas ou historiadores literários. Um desses historiadores foi o professor Arnaldo Saraiva, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, autor de Do berço ao livro (Universidade do Porto), que na década de 1970 esteve no Brasil pesquisando pioneiramente a vida e a obra do poeta. Suas pesquisas incluíram longas conversas não só com Drummond, mas com Dolores, com quem o poeta casou ainda muito jovem e que suportou com estoicismo e a resignação das mulheres de sua época os numerosos casos de infidelidade conjugal do marido famoso.
Sem a camisa-de-força acadêmica, que não admite que versos constituam fontes históricas fidedignas, Cançado pôde pinçar livremente de vários poemas os acontecimentos pessoais do poeta, sem cair no reducionismo típico das biografias literárias do final do século XIX e da primeira metade do século XX. Como observa na apresentação o crítico literário Ronald Polito, responsável pela introdução, transcrição e notas de A Conceição: o naufrágio do Marialva (São Paulo, Edusp, 1995), poema do desterro moçambicano de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), não foi esta uma tarefa nem um pouco simples, em razão mesmo da discrição de Drummond “em relação à sua vida privada”.
Diz Polito, com acerto, que Cançado não se deixou cair nas armadilhas típicas da forma biográfica, “que ora reduzem o homem à obra, ora deduzem os textos de eventos biográficos discretos, supondo com isso ter explicado o indivíduo ou seu trabalho”. Eis aqui a grandeza da obra detectada por Polito: Cançado traçou sempre com extremo cuidado as linhas possíveis entre um verso e um acontecimento da vida de Drummond, sem se deixar levar por conclusões ingênuas, mas para procurar recuperar um perfil que só os mais íntimos do poeta talvez tenham conhecido.
Extremo cuidado Cançado também teve ao resgatar a militância política de Carlos Drummond de Andrade, que, em meio a uma atividade profissional como funcionário público marcadamente ligado às forças conservadoras de seu Estado e do País, ainda teve tempo para flertar com o Partido Comunista Brasileiro, mas sem se comprometer a fundo, ao perceber logo que o estalinismo que dominava a orientação da agremiação o que mais queria eram pessoas dispostas a cumprir tarefas sem questionar ou pensar. Chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde da ditadura de Getúlio Vargas, Drummond também não demoraria a ser descoberto pela facção anticomunista que dominava as páginas dos grandes jornais do Rio de Janeiro.
Drummond com certeza não era “intransigente defensor” de grupo nenhum, escreve Cançado, para lembrar, porém, que o poeta tinha, sem dúvida, uma intransigente antipatia pela pregação anticomunista do pensador católico Alceu Amoroso Lima. Em 1936, ao pedir demissão do cargo sem sucesso, escreveu ao ministro para confessar que sentia uma viva inclinação intelectual pela esquerda, além do desencanto que vivia ao ver o país rumar célere ao fascismo. Era, porém, um homem extremamente habilidoso, acostumado mineiramente a ficar em cima do muro.
Quer dizer: como funcionário público, era um homem afinado com os interesses daqueles que mandavam no País e haviam chegado — ou permanecido — ao poder por meio de um golpe de Estado dos mais reles, no pior estilo sul-americano. Mas, como poeta, deixava o pensamento extravasar e se sentia de esquerda, pelo menos no sentido da solidariedade universal com os humildes, os perseguidos e os deserdados da terra.
Com extremo cuidado e elegância, o biógrafo não deixou de registrar com mínimos detalhes o que foi a paixão amorosa que tomou conta do poeta já cinquentão e bem posto na vida, atraído por uma moça morena, que num dia de agosto de 1951 aparecera na diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde ele trabalhava, para assumir o cargo de bibliotecária. Trinta anos depois, sem deixar o casamento com Dolores, o poeta ainda reverenciava a dona de doces pernas que o havia encantado entre as mesas e os escaninhos de uma repartição pública. E com quem passou a manter uma vida de encontros regulares e nem tanto clandestinos.
Ex-professor da PUC de Minas Gerais, José Maria Cançado é autor ainda de Marcel Proust: as intermitências do coração e Um colégio nos trópicos. Participou da seleção e organização dos volumes 50 poemas pré-60: a experiência do século e 50 poemas anos 60: política & vanguarda. No campo da criação literária, publicou ainda o volume de poemas O transplante é um baião-de-dois (Scriptum, 2005). Não o tivesse alcançado a morte numa época em que os intelectuais costumam ser mais produtivos, com certeza, ainda teria muito que acrescentar na história da Literatura Brasileira. |