A picaresca clássica não se repete e só tem sentido se associada aos séculos XVI e XVII. É um gênero que reúne obras que refletem uma visão irônica e pessimista do homem e uma perspectiva cética em relação à sociedade espanhola de sua época. Constituem ainda o reflexo da tensão provocada pelo confronto entre o indivíduo e uma sociedade extremamente opressora.
A gênese do romance picaresco, como se sabe, é o Lazarillo de Tormes, que conta a história do jovem Lázaro que, para sobreviver, vira guia de cego. Não surgiu do nada, pois, à época em que ganhou vida literária, histórias inspiradas no imaginário medieval — inclusive, nas novelas de cavalarias, já em fase de degenerescência — eram leituras constantes de todo homem culto do Renascimento.
O Lazarillo é de 1554, mas La Celestina, de Fernando de Rojas, de 1499, já trazia muitas características que marcariam o romance picaresco, sem contar que sua influência se faz presente no Lazarillo quanto à agressividade geral contra a sociedade, em Guzmán de Alfarache (1599), de Mateo Alemán, e em certa passagem de El Buscón (1626), de Francisco de Quevedo. Se o Lazarillo inaugura a modalidade, Guzmán de Alfarache e El Buscón dão continuidade e foro de gênero ao romance picaresco. Até porque o termo pícaro não aparece no Lazarillo e só passa a ser aplicado a Lázaro em razão de suas semelhanças com a personagem de Mateo Alemán.
O pícaro não surge apenas como resultado da revolta popular em relação à depravação daqueles que deveriam ser os guardiães da moral e dos bons costumes — os religiosos. Surge também como conseqüência da ausência de uma política econômica e da consciência de que são os homens — e não mais Deus — os culpados pelo estado de insegurança e miséria em que vive a esmagadora maioria da população. Há alguma semelhança com o Brasil de hoje?
Muitas são as definições que os críticos buscaram para definir o pícaro. Alexander Parker recorreu ao termo inglês delinquent para defini-lo como transgressor das leis morais e civis, mas não um gângster ou assassino, apenas um tipo sem honra e anti-social, que nunca recorre à violência. Já Marcel Bataillon preferiu usar a palavra cinismo para definir o comportamento do pícaro.
Para José Antonio Maravall, a palavra que mais bem expressaria a maneira de se comportar do pícaro seria desviación, no sentido de que todo pícaro opta por uma conduta desviada. Jenaro Taléns prefere o conceito de transgressão, colocando o pícaro como transgressor das leis da sociedade. Quem melhor definiu o pícaro, porém, foi Cláudio Guillén, chamando-o de half-outsider, ou seja, um tipo que fica sempre a meio caminho entre a vagabundagem e a delinqüência.
Em outras palavras: o pícaro é sempre um pobre, a quem todas as saídas para a ascensão social foram vedadas. É sempre alguém que está à margem da sociedade. E que, como está de fora, vê melhor as suas mazelas. Não é, porém, um revolucionário. O pícaro não quer mudar a sociedade, gostaria, isso sim, de fazer parte dela, de usufruir seus bens e privilégios. É, portanto, um frustrado, na definição de Maravall. Ou, como diria Eduardo Mendoza, é um vírus que percorre o interior da sociedade, um perro callejero (um cão vira-latas), que sabe se virar com as sobras. E que, para isso, se vale apenas de sua astúcia.
Ao contrário do que se pode imaginar, o pícaro não se tornou fenômeno exclusivamente espanhol. Correu o mundo, surgindo como personagem de romances na Alemanha (com O aventureiro Simplicissimus, de Grimmelshausen), na Inglaterra (com Moll Flanders, de Daniel Defoe), na França (com Histoire de Gil Blas de Santillane, de Lesage), em Portugal (com a Tercera Parte de Guzmán de Alfarache, de Félix Machado da Silva Castro e Vasconcelos, Marquês de Montebelo, inédita até 1927, e Novelas Exemplares (1650), de Gaspar Pires Rebelo, e outros), no México (com O Periquillo Sarniento, de José Joaquín Fernández de Lizardi) e em outros países da América espanhola. No Brasil, está representado por Leonardo, protagonista de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, obra publicada como folhetim no Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853.
Foi Mário de Andrade quem rotulou Leonardo como pícaro, embora Antonio Candido, num artigo já clássico da literatura brasileira, “Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias)”, de 1970, tenha contestado a rotulação, argumentando que nem Lazarillo de Tormes nem Estebanillo González (1646), ambos de autores desconhecidos, influíram diretamente sobre o romance de Manuel Antônio de Almeida. Para Candido, Leonardo não é um pícaro saído da tradição espanhola, mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, “malandro que seria levado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma”.
Mas, para o professor Mario Miguel González, onde Antonio Candido diz “malandro” pode-se ler “neopícaro”, pois, de qualquer forma, o leitor está diante de um anti-herói marginalizado e trapaceiro que protagoniza uma série de aventuras que expõem as vísceras da sociedade. Apesar desses exemplos clássicos da literatura brasileira, a literatura picaresca ou neopicaresca sempre foi um gênero pouco explorado no País. Mesmo assim, é possível lembrar aqui de personagens de Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, João Antônio e outros que até permitiriam a elaboração de uma tese de doutoramento sobre a recriação da picaresca clássica na literatura brasileira contemporânea, ou seja, a neopicaresca.
Uma personagem que se vem juntar a essa galeria de neopícaros é Biazulmi, protagonista de Cenas de amor perdido, de Antônio José de Moura, que acaba de estrear como autor da Editora Record, do Rio de Janeiro. Em sua adolescência numa pequena cidade do interior de Goiás, Moura conheceu o projeto de dândi que o inspirou a escrever o romance Cenas de amor perdido. Um tipo acaboclado, mistura das três raças que construíram o país, esse Don Juan dos trópicos fazia muito sucesso entre as mulheres e despertava o ciúme dos homens, em razão de sua astúcia e perspicácia para envolver com sua lábia o sexo feminino.
Biá-Príncipe-Biazulmi, essa figura libertina, serve para Moura construir uma sátira rocambolesca de costumes. Ao contrário da picaresca clássica, que sempre coloca o pícaro a narrar as suas histórias em primeira pessoa, Moura, para contar essa fábula, usa dois interlocutores. São professores universitários, uma da terra e outro recém-chegado de férias, que, à beira do rio Araguaia, que corta o Estado de Goiás, bebem cerveja, extasiados com a imensidão de céu e água, e encontram Valquíria, mulher outrora bonita, agora abandonada e indiferente aos homens, que tenta se recuperar de uma perda amorosa irreparável. Ela se torna o ponto de partida para a narrativa que reconstitui a trajetória do neopícaro Biazulmi.
Se faz uma crítica da sociedade contemporânea, como os livros-gênese da novela picaresca, Cenas de amor perdido não repete o esquema clássico do narrador-protagonista. Mas, igualmente, recorre a um recurso próprio dos textos clássicos, construindo um diálogo entre um mestre e seu discípulo. Ao contar a trajetória de Biazulmi, a conversa entre os dois narradores — uma conversa debochada, sem-vergonha, sobre mulheres, o principal assunto de qualquer conversa de mesa de botequim — atira em tudo, falando das mazelas do judiciário, da literatura provinciana, do mundo pervertido da televisão, do comportamento desviado de um representante do clero, da política extremamente corrupta do Brasil de hoje.
Antônio José de Moura exerceu a profissão de jornalista por mais de duas décadas e, como escritor, publicou mais oito livros, os dois primeiros de poesia, Quilômetro um e Porta sem chave. Os demais foram Notícias da terra, Magrinha, Mulheres do rio (contos) e os romances Dias de fogo, Umbra e Sete léguas de paraíso. Recebeu vários prêmios e figura em diversas antologias no Brasil e em Portugal. |