::::::::::::::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
Auerbach e o Brasil de hoje

ENSAIOS DE LITERATURA OCIDENTAL, de Erich Auerbach, com organização de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr. e tradução de Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo e João Ângelo Oliva Neto (citações em latim). São Paulo: Editora 34/Livraria Duas Cidades, 380 pags., 2007.
E-mail: editora34@editora34.com.br

I

Não há crítico literário digno desse nome nos séculos XX e XXI que não tenha lido e se deixado influenciar por Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo, Editora Perspectiva, 1970), de Erich Auerbach (1892-1957), obra de 1946 que se tornou clássica nos estudos de literatura porque, a rigor, abriu novas possibilidades de análise e leitura dos grandes textos da criação literária. Basta ver que professor Antonio Candido (1918), decano dos críticos literários brasileiros, sempre reconheceu que sua atividade foi fortemente influenciada por Auerbach.

            Agora, meio século depois da morte do autor, a Editora 34 e a Livraria Duas Cidades, de São Paulo, depois de negociar com os herdeiros da obra, colocam nas livrarias Ensaios de Literatura Ocidental: filologia e crítica, coletânea organizada pelos professores Samuel Titan Jr. e David Arrigucci Jr. e que reúne 15 ensaios escritos entre as décadas de 1920 e 1950, período em que Auerbach se dedicou aos estudos literários, iniciado com sua tese de doutoramento Sobre a técnica da novela no início do Renascimento na Itália e na França (1921) e que se concluiu com Linguagem literária e pública na tardia Antigüidade latina e na Idade Média (1958).

            Esta nova edição, porém, só inclui 14 dos 26 ensaios da edição originária em alemão, agregando ainda “Sermo Humilis” e seu apêndice “Gloria Passionis” (1941), republicados apenas em Linguagem literária e pública na tardia Antigüidade e na Idade Média, obra póstuma. Para o crítico Luiz Costa Lima, em resenha publicada em O Estado de S.Paulo em 14/10/2007, foi pena os organizadores não tivessem se lembrado de incluir nesta edição o Epilegômenos ao Mimesis (1953), “que, de igual relevância, ainda não foi incorporado a algum livro do autor”.

            De Auerbach, aliás, já haviam saído no Brasil Introdução aos estudos literários (São Paulo, Cultrix, 1970), tradução de José Paulo Paes; “La cour et la ville” em Teoria de literatura e suas fontes (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975), com organização de Luiz Costa Lima; Dante, poeta do mundo secular (Rio de Janeiro, Topbooks, 1997), com tradução de Raul de Sá Barbosa; Figura (São Paulo, Ática, 1997), com tradução de Duda Machado e revisão da tradução de José Marcos Macedo e Samuel Titan Jr.; e “As flores do mal e o sublime” na revista Inimigo rumor, nº 8, 2000, com tradução de José Marcos Macedo e Samuel Titan Jr. É de assinalar que tanto “La cour et la ville” como “As flores do mal e o sublime” aparecem agora de novo na edição de Ensaios de Literatura Ocidental.

II                                                     

Um dos mais notáveis dos 15 ensaios reunidos é mesmo esse “La cour et la ville” em que Auerbach procura estudar a vida privada da burguesia na França do século XVII não a partir de documentos de arquivo, mas das peças de Moliére (1622-1673) que tratam diretamente desse ambiente, como L´avare, Le bourgeois gentilhomme, Les femmes savantes e Le malade imaginaire. Auerbach reconhece que, através desses textos, nunca ficamos sabendo nada a respeito da ocupação destas famílias burguesas – nenhuma delas jamais diz alguma palavra sobre atividade econômica produtiva, pois a usura era ocupação de um rentier, sempre vista com maus olhos.

            Auerbach faz uma descrição da vida burguesa na França que lembra muito à da brasileira do século XX que se caracterizou pelo assalto aos cofres públicos, com o desvio de fundos de obras que, quando não foram diretamente para contas em “paraísos” fiscais, para a Suíça ou para os EUA, acabaram aplicados aqui mesmo, especialmente na construção imobiliária. Há quem diga que boa parte dos grandes edifícios da orla das cidades litorâneas do Nordeste foi erguida com recursos que deveriam ter sido aplicados em obras contra o flagelo da seca. As famílias humildes do Nordeste, obviamente, continuam a amargar ano a ano os rigores da falta d´água em época da estiagem.

            A corrupção chegou a tal ponto que bastou o Brasil ter sido anunciado como país-anfitrião da Copa do Mundo de Futebol em 2014 para que os jornais, refletindo a expectativa popular, já tenham começado a especular sobre as possibilidades de superfaturamento das muitas obras que terão de ser construídas para deixar estádios e cidades aptas a receber as seleções dos demais países. Quer dizer: as obras nem começaram, mas a roubalheira já é dada como certa, tamanha é a movimentação dos urubus em torno da carniça.

            Mas voltemos a Auerbach. Vejamos o que diz da nascente burguesia francesa no século XVII. Aqueles que ocupavam posições oficiais, na maioria, eram venais e podiam tornar seus cargos hereditários mediante o pagamento de certas taxas. Assim também era em Portugal e suas colônias naquele século e no seguinte. Era uma prática que começara ao final da Idade Média e fora legitimada na França ao começo do século XVII.

            Esses burgueses queriam que seus filhos desfrutassem de uma posição social alta e evitar que arriscassem a fortuna das famílias em novos negócios, diz Auerbach. Criavam-se, assim, cargos que exigiam pouca ou nenhuma atividade. Havia nomeações puramente decorativas que deixavam seus ocupantes em completo ócio – algum paralelo com o Brasil de hoje em que o governo federal bate recordes de nomeações e mais nomeações?

            “Esse fenômeno de fuga em massa da vida produtiva mostra-nos um novo aspecto da ville, que aponta para o que ela tinha em comum com la cour”, diz Auerbach, lembrando que, mais uma vez, uma classe inteira distanciava-se de seus fundamentos econômicos e orgânicos. É claro que havia funcionários competentes na administração e no aparato judicial, mas eram poucos. O homem interessado e competente em sua ocupação passara a ser olhado cada vez mais como um rabugento, um tolo, uma criatura mesquinha e desprezível – vê o leitor alguma semelhança com o Brasil de hoje?

            De fato, em Molière, quando um juiz, um advogado ou um médico aparecem no palco, é sempre num papel cômico e repugnante. Aliás, os juízes daquela época tratavam de nomear parentes e mais parentes para que trabalhassem sob as suas ordens. E ainda exercitavam o rigor na hora de condenar aqueles que denunciavam a prática de nepotismo – o leitor vê de novo alguma semelhança com o Brasil de hoje?

            Auerbach cita ainda o Roman bourgeois, de Antoine Furetière  (1619-1688), que faz um retrato nada lisonjeiro da burguesia de sua época: materialista, egoísta e ambiciosa, disposta a ganhar dinheiro, mas não com o esforço produtivo, não com a indústria e o comércio, e sim com a fraude e a tramóia parasitárias. Os personagens são advogados inescrupulosos que enriquecem à custa de seus clientes, cavam indicações políticas no governo. É provável, diz Auerbach, que haja um pouco de exagero no quadro que Furetière pinta da burguesia de seu tempo, mas não dá dúvida de que o próprio exagero sempre requer um certo fundo de autenticidade. Caso contrário, não funcionaria.

            Mas fiquemos por aqui. Até porque há outros ensaios igualmente imperdíveis, especialmente “As flores do mal e o sublime”, “Marcel Proust: o romance do tempo perdido”, “Sermo humilis”, “Vico e o historicismo estético”. E os textos de Auerbach sempre oferecem demasiados motivos para reflexão.

III

            Erich Samuel Auerbach nasceu em Berlim, em abastada família judia, que lhe permitiu estudar no Französisches Gymnasium daquela cidade, tendo iniciado em 1911 os estudos jurídicos. Em 1913, tornou-se doutor em Direito pela Universidade de Heidelberg, às margens do rio Necker, entre montanhas e dominada pelo Castelo Palatino, que, aliás, este articulista teve a oportunidade de conhecer em julho passado. No ano seguinte, começou os estudos de Filologia Românica em Berlim e, em outubro de 1914, teve de se alistar como voluntário para lutar na Primeira Guerra Mundial, quando foi ferido e condecorado.

            Depois da guerra, retomou os estudos filológicos e doutorou-se três anos mais tarde pela Universidade de Greifswald. Em 1923, casou-se com Marie Mankiewitz, com quem teve seu único filho, Clemens, e no mesmo ano tornou-se bibliotecário na Pruessische Stastsbibliothek em Berlim. Em 1929, sucedeu a Leo Spitzer na cátedra de Filologia Românica da Universidade de Marburg, onde permaneceu até 1935, quando foi exonerado por pressão do regime nazista.

            Forçado ao exílio, voltou a suceder Leo Spitzer como professor de Filologia Românica na Universidade de Istambul, na Turquia. Foi em Istambul, sem acesso a grandes bibliotecas, que escreveu os ensaios de Mimesis, considerada obra-prima da crítica literária do século XX. Depois da Segunda Guerra Mundial, em 1947, emigrou para os Estados Unidos, onde se tornou professor da Universidade da Pensilvânia de 1949 a 1950 e, em seguida, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de Yale, onde lecionou até a morte em New Haven, Connecticut.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br