Reconstruir o passado. É o que faz Alberto da Costa e Silva ao recuperar fragmentos de uma vida e uma época, demonstrando a importância do contexto histórico na formação da subjetividade. Trata-se de um relato em que o autor rememora, reinterpreta e mesmo exorciza alguns fantasmas da história recente de Brasil e Portugal, trazendo-nos de volta, como gente de carne e osso, figuras que já fazem parte da História canonizada destes países no século XX.
Ao mesmo tempo, estabelece uma íntima conexão entre subjetividade e História ao compartilhar histórias cotidianas de toda uma geração, ou seja, daqueles que neste século começam a se aproximar das oito décadas de existência. Nada mais justificável, portanto, do que o subtítulo que deu ao livro: ficções da memória.
A exemplo do que já fizera em Espelho do príncipe (1994), memórias da infância, Costa e Silva dramatiza em Invenção do desenho a inter-relação do público com o privado, dando continuidade a suas lembranças pessoais do período que vai de sua adolescência até os 30 anos de idade, ou seja, do afastamento imposto pelos militares ao ditador Getulio Vargas (1882-1954) em 1945 até a inesperada renúncia de Jânio Quadros (1917-1992) à presidência da República em 1961.
Não é à toa que uma dessas lembranças se situa por volta de 1946, quando o rapaz de 15 anos que vivia no Rio de Janeiro, filho do poeta Da Costa e Silva (1885-1950), viu descer de um bonde um senhor parecidíssimo com o presidente Dutra. Era mesmo o presidente, que vinha acompanhado de seu secretário, sem a presença de um só agente de segurança. Viera do Palácio do Catete rumo ao Centro do Rio de Janeiro, atravessando a Avenida Rio Branco em direção a um barbeiro que havia na Rua de Santa Luzia, sem que ninguém dele se aproximasse, ainda que com discreto aceno de cabeça respondesse a um e a outro cumprimento.
De sua juventude, recorda-se Costa e Silva do Congresso Internacional de Escritores, realizado em 1954, dentro das comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo, e de vários de seus participantes, como Miguel Torga, com seu estilo “carrancudo e quase intratável”, um montanhês perdido na urbe, ou o norte-americano William Faulkner, que ficou quase todo o tempo no hotel, entre o bar e o quarto, e só compareceu a uma sessão plenária de poesia, ou ainda do professor M.Rodrigues Lapa, que fascinou a platéia ao falar sobre as origens da poesia lírica medieval portuguesa.
Com uma prosa delicada e extremamente lírica, Costa e Silva resgata ainda as peripécias de suas primeiras viagens como diplomata ao vasto continente africano. Na Nigéria, conta que se surpreendeu ao conhecer uma cidade chamada Porto Seguro, um vilarejo tipicamente brasileiro, com pequenas casas de alvenaria pintadas de branco, azul ou amarelo, em que algumas casas comerciais se destacavam porque tinham no alto das fachadas ou em placas de madeira os nomes Lima, Barbosa, Da Rocha, Oliveira, Medeiros, Sousa e Da Silva. Eram casas de agudás, brasileiros descendentes de ex-escravos que haviam retornado do Brasil para a África.
Como se vê, este é também um livro de viagens. E não só daquelas que são feitas por intermédio dos livros, trajeto igualmente cumprido pelo autor, cujo percurso intelectual teve início ainda na adolescência, com a leitura de clássicos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. E é também um livro de retratos, e não só daqueles que privaram da amizade do autor, mas também de grandes figuras que marcaram o século luso-brasileiro, para o bem ou para o mal.